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Boas práticas de governança corporativa e a legitimidade ativa dos acionistas minoritários

Manifestação recente da Comissão de Valores Mobiliários reacende a discussão quanto à interpretação do art. 246 da Lei das S.A.

26/4/2023

Boas práticas de governança corporativa buscam estabelecer um sistema por meio do qual empresas são dirigidas, monitoradas e incentivadas com o objetivo de “preservar e otimizar o valor econômico de longo prazo da organização, facilitando seu acesso a recursos e contribuindo para a qualidade da gestão da organização, sua longevidade e o bem comum”1.

A fiscalização dos atos de acionistas controladores por acionistas minoritários desempenha um papel fundamental na criação desses sistemas. Segundo os Princípios da OCDE sobre Governança Corporativa, a legitimidade ativa de acionistas minoritários para ajuizar ações judiciais em nome da companhia, inclusive em face de acionistas controladores, é uma das formas de garantir seus direitos e de coibir o abuso do poder de controle2. No Brasil, esse direito é garantido por meio do art. 246 da lei 6.404/1976 (“LSA.”).

Uma questão societária altamente relevante envolve a interpretação da regra contida no dispositivo, cujo caput estabelece que a sociedade controladora é obrigada a reparar os danos que causar à companhia por atos praticados com abuso de poder. Já o §1º - que traz o ponto de maior questionamento - dispõe sobre a legitimidade ativa para deflagração dessa ação de responsabilidade, nos seguintes termos: 

“Art. 246. (...)

§ 1º A ação para haver reparação cabe:

a) a acionistas que representem 5% (cinco por cento) ou mais do capital social;

b) a qualquer acionista, desde que preste caução pelas custas e honorários de advogado devidos no caso de vir a ação ser julgada improcedente. (...)”

A dúvida hermenêutica gira em torno da operacionalização dessa ação de responsabilização movida pelos acionistas minoritários da Companhia. De forma concreta, discute-se sobre a necessidade ou não de prévia aprovação da assembleia geral da Companhia para que os acionistas minoritários – nas hipóteses das alíneas “a” e “b” do dispositivo – possam deflagrar a ação (em uma aplicação analógica da exigência prevista no art. 159 da LSA). Controverte-se, também, sobre os efeitos de eventual ação manejada posteriormente pela Companhia em relação à demanda anterior dos minoritários.

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça se deparou com essas questões ao analisar conflito entre dois procedimentos arbitrais - o primeiro instaurado por acionistas minoritários da Companhia em face de seus controladores, atuando em nome da S.A. com fulcro no art. 246 da LSA3; o segundo deflagrado anos mais tarde pela própria Companhia, também em face de seus controladores ex-administradores, com fulcro no art. 246 e 159 da LSA, respectivamente.

Em interpretação contrária à literalidade do dispositivo, o STJ decidiu pela prevalência do procedimento iniciado pela Companhia, com a consequente extinção do primeiro processo (de autoria dos minoritários), por entender que a ação do art. 246 da LSA dependeria de prévia autorização assemblear. Ao fazê-lo, contudo, acabou por esvaziar o sentido do dispositivo e restringir o direito fundamental de fiscalização dos acionistas minoritários, na contramão das boas práticas de governança corporativa e do movimento ESG, que vêm ganhando força mundo afora.

Há, ainda, outro fator recente que precisa ser considerado nessa discussão. É que, em 28/2/23, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) –competente para regular o mercado de capitais – manifestou-se formalmente sobre os seguintes pontos suscitados por acionistas minoritários: (i) se a realização de prévia deliberação assemblear seria requisito para a propositura de ação por parte de minoritários da companhia; e (ii) se a propositura posterior de ação de reparação de danos pela Companhia geraria a extinção automática da ação deflagrada anteriormente pelos acionistas minoritários4.

Quanto ao primeiro ponto, o voto do Diretor João Accioly traçou uma importante análise interpretativa da LSA. Conforme demonstrado, diferentemente da hipótese específica disciplinada pelo 159 da LSA (que trata da ação de responsabilidade civil contra o administrador e exige expressamente “prévia deliberação da assembléia-geral”), o art. 246, §1º da lei não traz qualquer exigência de prévia aprovação assemblear. Não houve omissão alguma do legislador: nesse caso, quis-se atribuir maior legitimidade para atuação dos acionistas minoritários.

Como bem pontuado pelo Diretor João Accioly, “se a ação compete aos acionistas titulares de percentual mínimo, ou a qualquer um que caucione os custos de sua possível sucumbência, a ação cabe a eles e ponto final.” Em suma, não há necessidade de se complementar o dispositivo da lei com regras específicas de outro dispositivo: o legislador foi claro e delimitou com precisão os requisitos e exigências aplicáveis à ação objeto do art. 246 da LSA.

Na verdade, conforme destacado pela CVM, o propósito da lei é evitar que o controlador influencie a formação da vontade social e impossibilite (ou dificulte) a deflagração da competente ação de responsabilidade civil pelos minoritários. Há aqui, inclusive, uma preocupação consequencialista legítima externada pela autarquia: a restrição do escopo da norma tem o potencial de trazer mais obscuridade e insegurança na sua aplicação. Afinal, nas palavras do Presidente da CVM, João Pedro Nascimento, tal exigência “pode acabar por prejudicar o delicado equilíbrio de incentivos que o legislador teve em mente ao criar um sistema de responsabilidade efetivo.

A CVM também discorda da conclusão de que a ação prévia dos minoritários precisa ser extinta em razão do advento posterior de demanda formulada pela Companhia. Segundo ressaltado por seu Presidente, o “sistema de responsabilidade seria bastante prejudicado caso se entendesse que a ação de responsabilidade anterior contra os controladores ajuizada pelos acionistas minoritários seria automaticamente extinta assim que interposta a mesma ação pela companhia.” Com efeito, não há lógica processual em se extinguir a primeira ação. Como bem pontuado pelo Relator Diretor João Accioly, a situação deveria ser resolvida ou por reconhecimento de litispendência (com a extinção da ação que se iniciou depois, e não antes), ou pela reunião dos processos.

Vale, por fim, trazer a seguinte conclusão apresentada pelo Diretor João Accioly em seu voto:

“199. Pelo contrário, como demonstrado nos tópicos anteriores, há uma série de características pelas quais tal solução se revela inadequada: ela é oposta às finalidades da lei (de buscar efetiva responsabilização por eventuais abusos), prejudicial aos interesses da coletividade dos acionistas (e portanto incompatível com a interpretação pela negociação ideal – CC, art. 113, §1º, V), vedada pela lei societária ainda que estabelecida em cláusula estatutária (por elidir de instrumento assecuratório de direito, LSA, art. 109, §2º), e reputada nula pelo direito das obrigações ainda que expressamente prevista em qualquer contrato (por sujeitar direito subjetivo a condição puramente potestativa, CC, art. 122); tantas e tamanhas incompatibilidades parecem explicar a ausência de paralelo a tal regra no direito positivo, por mais remota que seja a analogia.”

Enfim, as instâncias são independentes, mas a lógica é uma só. E não há como ignorar a interpretação qualificada de quem, no ordenamento jurídico brasileiro, tem a específica capacidade institucional para regular o mercado de capitais e interpretar a LSA. Que os influxos da CVM sejam devidamente considerados nas discussões judiciais pertinentes à correta interpretação da sistemática do art. 246 da LSA. São diversos os ganhos dessa postura dialógica: além de se resgatar a relevância dos direitos dos minoritários assegurados pela LSA e a higidez do mercado de capitais de forma mais ampla, fortalecem-se as boas práticas de governança corporativa. Assim em linha com as mais recentes preocupações de ESG que se espraiam mundo afora, para as quais o Brasil não pode fechar os olhos.

_____________

1 INSTITUTO BRASILEIRO DE GOVERNANÇA CORPORATIVA. Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa. Disponível em: https://conhecimento.ibgc.org.br/Paginas/Publicacao.aspx?PubId=21138. Acesso em: 20/04/2023. P. 20.

2 OCDE. G20/OECD Principles of Corporate Governance. Disponível em: https://www.oecd-ilibrary.org/g20-oecd-principles-of-corporate-governance_5js09wmjzz45.pdf?itemId=%2Fcontent%2Fpublication%2F9789264236882-en&mimeType=pdf. Acesso em: 20/04/2023.

3 https://www.infomoney.com.br/mercados/minoritarios-criticam-termos-do-acordo-para-encerrar-arbitragem-entre-jbs-jbss3-e-jf/. Acesso em: 25/04/2023.

4 Trata-se do Processo Administrativo CVM SEI nº 19957.007423/2021-12. Os votos mencionados nestes trabalhos estão disponíveis no seguinte link: https://conteudo.cvm.gov.br/decisoes/2023/20230228_R1.html. Acesso em: 20/04/2023.

Francisco Defanti
Mestre em Direito da Regulação e especialista em Direito Societário e Mercado de Capitais pela FGV Direito-Rio. Advogado sênior do escritório Gustavo Binenbojm & Associados.

Joana Nabuco
Mestre em Direito (LLM) pela NYU School of Law. Advogada sênior do escritório Gustavo Binenbojm & Associados.

Filipe Seixo
Especialista em contencioso pela FGV Direito-Rio. Advogado sênior do escritório Gustavo Binenbojm & Associados.

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