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A relativização do requisito da probabilidade do direito na concessão de tutelas de urgência

O requisito do fumus boni iuris para a concessão da tutela de urgência pode ser relativizado ou até ignorado em situações que justifiquem a concessão da medida, desde que preenchidos outros requisitos.

26/4/2023

A morosidade judicial, especialmente no Brasil, é notável e representa um problema que parece praticamente sem solução, o que certamente prejudica a sociedade como um todo e apresenta um risco ao próprio direito que se pretende proteger com a tutela jurisdicional.

Sabendo disso, o legislador criou a figura da chamada “tutela de urgência”, que prevê a possibilidade de o julgador, verificando a existência da probabilidade do direito e o perigo na eventual demora para a tutela pretendida.

Os requisitos para a concessão da tutela de urgência são simples e estão previstos no artigo 300 do Código de Processo Civil:

Art. 300. A tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo.

Importante ressaltar que o próprio CPC cuidou de prever a possibilidade de antecipar a tutela jurisdicional provisoriamente sem o requisito da urgência, o que recebeu o nome de “tutela de evidência”, prevista no artigo 311. 

O questionamento proposto aqui é sobre a possibilidade de o juiz, em contrariedade ao dispositivo expresso da lei, conceder a tutela de urgência mesmo sem o requisito da probabilidade do direito, somente presente o perigo de dano e ao resultado útil do processo.

Apesar de o CPC não prever expressamente a possibilidade de antecipação da tutela sem que exista um lastro probatório mínimo para apuração sumária da probabilidade do direito da parte, é certo que algumas situações práticas podem levar a necessidade lógica para tanto.

Dotado do chamado “poder geral de cautela” ou “poder geral de tutela”, o juiz não apenas pode como deve determinar as medidas provisórias que julgar adequadas para evitar danos graves ou de difícil reparação à parte, algo que era previsto expressamente no art. 798 do CPC/73 e foi ainda ampliado no CPC de 2015.

Não obstante, nos princípios previstos no CPC/15, o legislador previu a necessidade de o juiz observar, mais do que a lei em si, mas os direitos fundamentais do cidadão, bem como os princípios basilares do estado democrático brasileiro. É como dispõe o artigo 8º do CPC:

Art. 8º Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana             e          observando   a          proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.

Não basta, portanto, que o juiz aprecie apenas se estão preenchidos os requisitos da tutela de urgência, devendo ele também, ao aplicar a lei, observar se sua decisão não colocará em risco os direitos fundamentais e sociais das partes e terceiros do processo.

Dito isso se tem as raras hipóteses em que é possível que o juiz, mesmo sem que esteja presente o requisito da probabilidade do direito.

A primeira delas está diretamente ligada ao artigo 8º do CPC, que é quando ocorre uma desproporção dos bens jurídicos a serem protegidos pela tutela.

Mediante uma valoração de direitos, se ao conceder a tutela de urgência estiver se protegendo um direito demasiadamente mais relevante que o outro, deve o juiz assim proceder.

Caso muito comum e melhor exemplo acontece quando se é necessário proteger o direito à vida em face do direito financeiro, como ocorre quando um plano de saúde se nega a cobrir uma cirurgia necessária para manter a vida de uma pessoa. 

Não seria razoável admitir o risco de uma pessoa ter sua vida, dignidade ou integridade extirpada em razão de uma necessidade primária de dilação probatória, apenas para proteger direito menos relevante que pode ser buscado posteriormente.

Em tais casos, já há entendimento jurisprudencial que defende a concessão da tutela de urgência mesmo que ausente o requisito do fumus boni iuris:

DIREITO PROCESSUAL CIVIL. Deferimento liminar da tutela antecipada de urgência. Irresignação. Decisão fundamentada com proficiência. Incensurável. Sabido ser a saúde um dos atributos da dignidade humana. Dessarte, bem jurídico de valor inestimável que se sobrepõe a qualquer outro, merecedor de tutela jurídica quando ameaçado. Por outro lado, importante se frisar que, no confronto dos interesses em conflito, impõe-se salvaguardar o de maior relevância, qual seja, a saúde, quiçá a vida da ora agravada postergando-se para outro momento, a análise da questão econômica do problema em causa. (...). Desprovimento. (0073188-89.2021.8.19.0000 - AGRAVO DE INSTRUMENTO. Des(a). ADOLPHO CORREA DE ANDRADE MELLO JUNIOR - Julgamento: 17/02/2022 - NONA CÂMARA CÍVEL) 

AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONTRATO DE PLANO DE SAÚDE. CUSTEIO DE MEDICAMENTO POR INDICAÇÃO MÉDICA. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. PRESENÇA DE PROBABILIDADE DE DIREITO E PERIGO DE DANO. DIREITO À SAÚDE. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PREVALÊNCIA. ASTREINTES. EXCESSIVIDADE NÃO CONFIGURADA. 1. O CPC dispõe em seu artigo 300 acerca do instituto da tutela de urgência, destacando que sua concessão ocorrerá quando houver demonstração da probabilidade do direito e do perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo. 2. (...) 3. A saúde, de inquestionável relevância à vida e à dignidade humana, foi elevada pela Constituição da República à condição de direito fundamental. Conclui-se, portanto, que diante de confrontos entre o bem "vida" e questões de natureza econômico-financeiras de empresas operadoras de planos de saúde, o primeiro deve prevalecer, sob o risco de dano irreparável e irreversível. 4. (...). 5. Agravo de instrumento conhecido e improvido. (Acórdão 1398900, 07335859820218070000, Relator: ANA CANTARINO, 5ª Turma Cível, data de julgamento: 9/2/2022, publicado no PJe: 18/2/2022. Pág.:  Sem Página Cadastrada.)

 

Outra hipótese que deve ser levada em consideração é quando, apesar de equivalentes os direitos a serem protegidos, as consequências do deferimento da tutela são mínimas se comparados ao seu não deferimento.

Tal circunstância pode ocorrer quando, por exemplo, se pretende proteger a saúde financeira de uma pessoa hipossuficiente em face do direito de recebimento de valores ínfimos a uma grande corporação.

Nessas situações, é comum se ver decisões determinando a obrigação de uma grande empresa em não inscrever o nome de um consumidor em cadastros de inadimplente por dividas questionadas judicialmente.

Ao deferir a tutela de urgência, o juiz impede danos graves a uma parte hipossuficiente enquanto cria-se risco de danos praticamente desprezíveis a outra, o que justifica o deferimento da tutela mesmo sem uma analise aprofundada das provas produzidas até então.

Em qualquer situação que se cogite a possibilidade de deferimento da tutela de urgência relativizando o requisito da probabilidade do direito, é essencial a análise da reversibilidade da medida.

O próprio CPC prevê em seu artigo 302 que “a parte responde pelo prejuízo que a efetivação da tutela de urgência causar à parte adversa”, o que resguarda o direito de quem teve a tutela deferida em seu desfavor de pleitear os danos que lhe foi causado.

Na hipótese anterior do plano de saúde, por exemplo, poderia a empresa administradora do plano cobrar da parte os gastos com a cirurgia e tratamento que forneceu à parte por força da determinação judicial.

Já na hipótese da inscrição nos cadastros de inadimplentes, nada impede que a empresa que cobra a dívida volte a cobrar a dívida pelos meios legalmente admitidos, inclusive com o protesto pretendido.

Fato que é, independente da relevância do bem jurídico protegido ou da desproporcionalidade das consequências da decisão, a medida deve ser reversível sem maiores dificuldades, sob pena de a tutela jurisdicional servir para fomentar injustiças lastreadas em meras comparações de direitos.

Conclui-se que, pelo poder geral de cautela e por previsão do próprio diploma processual cível, é possível o deferimento da tutela de urgência mesmo quando ausente, em análise sumária, a probabilidade do direito, desde que em situações excepcionais e que permitam a reparação por eventuais danos causados pela concessão da tutela.

Fernando da Cunha Pereira
Sócio e advogado cível do Cunha Pereira e Massara Advogados Associados.

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