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A reversibilidade do recebimento da denúncia

Em que pese não ser o recebimento da denúncia o momento propício para o exame aprofundado da prova, é cediço que não basta a motivação genérica a respeito, sendo preciso declinar concretamente a prova indiciária acostada ao processo que possibilita o início da ação penal contra o imputado/a.

25/4/2023

É assente na jurisprudência o entendimento segundo o qual o recebimento da denúncia não impede que, após o oferecimento da resposta do acusado (arts. 396 e 396-A do Código de Processo Penal), o Juízo reconsidere a decisão prolatada e, se for o caso, impeça o prosseguimento da ação penal." (AgRg no REsp 1.218.030/PR, Quinta Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe de 10/4/14).

Isso porque o fato de a denúncia já ter sido recebida não impede o juízo de primeiro grau de, logo após o oferecimento da resposta do acusado, prevista nos arts. 396 e 396-A do CPP, reconsiderar a anterior decisão e rejeitar a peça acusatória, ao constatar a presença de uma das hipóteses elencadas nos incisos do art. 395 do CPP, ainda que as partes não tenham feito tal alegação em preliminar, uma vez que trata-se de matéria de ofício, cognoscível, inclusive, de ofício pelo Julgador.1

Contrariamente ao que se possa crer, o recebimento da denúncia não é irreversível (nem poderia), tampouco constitui um obstáculo intransponível pelo contraditório. Alertado pela defesa - ou até mesmo de ofício -, o magistrado pode impedir o prosseguimento de um processo que, em verdade, nem deveria ter sido admitido.2

Sobre o tema, vejamos.

APELAÇÃO CRIMINAL. TRÁFICO DE DROGAS E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. RECURSO DA DEFESA. ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. EXORDIAL QUE NÃO DESCREVEU OS FATOS CRIMINOSOS E SUAS CIRCUNSTÂNCIAS. DISPOSTO NO ART. 41 DO CPP NÃO OBSERVADO. INÉPCIA RECONHECIDA, DE OFÍCIO. TRÁFICO DE DROGAS. PLEITO ABSOLUTÓRIO. TESES DE NEGATIVA DE AUTORIA E FRAGILIDADE DE PROVAS. ACUSADO FLAGRADO AO ARREMESSAR CRACK PELA JANELA DE VEÍCULO. APREENSÃO DE UMA PORÇÃO MAIOR DE CRACK NA RESIDÊNCIA DO RÉU. DEPOIMENTOS DOS POLICIAIS FIRMES E COERENTES A RESPEITO DA MERCANCIA. CONDIÇÃO DE USUÁRIO COMPATÍVEL COM O TRÁFICO. DESCLASSIFICAÇÃO PARA A CONDUTA DO ART. 28 DA LEI 11.343/06 INVIÁVEL. CONDENAÇÃO MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. PERDIMENTO DO VEÍCULO DECRETADO NA SENTENÇA. AUSÊNCIA DE MOTIVAÇÃO A RESPEITO DA UTILIZAÇÃO DO AUTOMÓVEL DE FORMA CONTÍNUA NO COMÉRCIO ILÍCITO. SOBRESTAMENTO DO CONFISCO DETERMINADO, DE OFÍCIO, PELO PRAZO E PARA OS FINS DO ART. 123 DO CPP. (Apelação Criminal 2013.072610-4, Terceira Câmara Criminal, Rel. Des. Torres Marques, j. em 26-11-2013, v.u., grifou-se).

APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME DE TRÂNSITO. HOMICÍDIO CULPOSO NA CONDUÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR (ART. 302, CAPUT, DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO). SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DEFENSIVO. RECONHECIMENTO DE OFÍCIO DA INÉPCIA PARCIAL DA DENÚNCIA. PEÇA ACUSATÓRIA QUE NÃO DESCREVEU À SACIEDADE O FATO DELITUOSO E SUAS CIRCUNSTÂNCIAS. DESCUMPRIMENTO DO DISPOSTO NO ART. 41 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. RECURSO PREJUDICADO. DELITO DE EMBRIAGUEZ AO VOLANTE (ART. 306 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO). MATERIALIDADE E AUTORIA DELITIVAS SOBEJAMENTE DEMONSTRADAS. CONDENAÇÃO QUE SE IMPÕE. (Apelação Criminal 2014.018594-7, Quarta Câmara Criminal, Rel. Des. Rodrigo Collaço, j. 24-7-2014, v.u., grifou-se)

Como se vê, não há por que dar início à instrução processual se o magistrado verifica que não lhe será possível analisar o mérito da ação penal, em razão de defeito que macula o processo. Além de ser desarrazoada essa solução, ela também não se coaduna com os princípios da economia e celeridade processuais.

Configuraria verdadeiro contrassenso, do ponto de vista da limitação à atividade cognitiva, que o juiz, após o recebimento da denúncia, possa rever tal decisão, mediante exceção, no que toca à ilegitimidade de parte, mas não possa fazer o mesmo com a impossibilidade jurídica do pedido, a inépcia da denúncia ou queixa ou qualquer outra questão de ordem pública.3

E porque é tão importante chamar a atenção para o fato de que o Juiz pode – e até mesmo deve – rever tal decisão, se necessário?

Porque tem sido cada vez mais comum denúncias sem descrição precisa e individualizada acerca de cada um dos crimes ou cada um dos denunciados.

O que se tem notado, até pelo avanço dos meios de investigação, é um complexo emaranhado de informação; um nó górdio que ninguém se aventurou a desatar. Meses de quebra de sigilo e interceptação telefônica que, precisamente sobre alguém ou algum fato, não dizem nada.

Daí porque é importante rememorar que os princípios democráticos que informam o sistema jurídico nacional repelem qualquer ato estatal que transgrida o dogma de que não haverá culpa penal por presunção nem responsabilidade criminal por mera suspeita. (HC 88.875, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 7/12/10).

Nesse contexto, não é o decorrer da ação penal que deve propiciar a regularização de uma acusação formalmente imprestável; ao reverso, é uma acusação adequadamente formulada que deve permitir a tramitação de uma ação penal compatível com o direito de ampla defesa do réu.

Não obstante a previsão constitucional e internacional e a sua inegável importância, parece até que a presunção de inocência é só uma ilustre desconhecida.

Nenhuma acusação penal se presume provada. Não compete ao réu demonstrar a sua inocência. Cabe, ao contrário, ao Ministério Público comprovar, de forma inequívoca, para além de qualquer dúvida razoável, a culpabilidade do acusado. (HC 84.580, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 25/8/09).

Assim, em que pese não ser o recebimento da denúncia o momento propício para o exame aprofundado da prova, é cediço que não basta a motivação genérica a respeito, sendo preciso declinar concretamente a prova indiciária acostada ao processo que possibilita o início da ação penal contra o imputado/a.

Desse modo, nada mais correto ao Juízo que reconsiderar o recebimento da denúncia, evitando-se uma ação penal que, em verdade, nem deveria ter sido admitida.

Dar um passo para trás, nem sempre é regredir.

Tainah Lasmar Leon
Advogada especialista em Direito Penal Empresarial. Foi Assessora Jurídica do Ministério Público do Estado de Mato Grosso por mais de uma década. Atuou no GAECO e em outros núcleos sensíveis.

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