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O RESp 1.930.735/STJ e o direito à moradia

O problema de moradia no Brasil é deveras complexo e de projeção extensa, mas urge que se encontrem soluções efetivas de políticas públicas reais.

25/4/2023

O deficit habitacional no Brasil é gigantesco e se avoluma a cada ano, já que em 2019 foi divulgada uma pesquisa realizada pela Fundação João Pinheiro1, apontando que mais de 5,8 milhões de moradias no país apresentavam problemas próprios ao deficit habitacional, ou seja, condições de simples falta de dignidade da pessoa humana para fins de concretização do direito constitucional de moradia.

O direito à moradia é constitucional, estando previsto no caput do artigo 6º da CF/88, que diz: São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.  

Além do mais, o artigo 23, inciso IX assevera que é competência comum entre a União, Estados, DF e Municípios promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico.

A resolução do problema de moradia digna é um direito fundamental que precisa ser considerado diuturnamente pelo legislador e pelo administrador público, pois se trata da essência de um ser humano ter um local para ficar e ter como lar, para si e sua família, estando em patamar igualitário à saúde e educação.

O Superior Tribunal de Justiça, em 28.02.2023, REsp 1.930.735-TO, Relatora Ministra Regina Helena Costa (Info 767), decidiu que o Poder Judiciário, na análise de iniciais de desapropriação de utilidade ou necessidade pública, ou ainda interesse social, para desapropriar imóveis, o Município, já na petição inicial, deve demonstrar que fez previsão orçamentária no plano plurianual, na lei de diretrizes orçamentárias e na lei orçamentária anual de toda verba para tal ato administrativo.

A decisão do STJ aduz que o previsto no art. 15 do Decreto-Lei n. 3.365/1941 constitui pressuposto legal para o deferimento de pedido de imissão provisória na posse veiculado em ação de desapropriação por utilidade pública, no entanto sua ausência não implica a extinção do processo sem resolução do mérito, mas, tão somente, o indeferimento da tutela provisória”.

Continua a decisão do STJ afirmando que os requisitos arrolados no art. 16, caput, I e II, e § 4º, II, da LRF são condições prévias e essenciais à regularidade da ação expropriatória de imóveis para desenvolvimento da política urbana, razão pela qual necessário instruir a petição inicial com estimativa do impacto orçamentário-financeiro e apresentar declaração a respeito da compatibilidade das despesas necessárias ao pagamento das indenizações ao disposto nas leis orçamentárias, sob pena de extinção do processo sem exame do mérito, como dispõem os arts. 320, 321, 330, IV e 485, I, do CPC/2015.

Portanto, para preencher os requisitos da decisão judicial, antes de iniciar o processo de desapropriação de imóvel o Município deve ter previsto no Plano Plurianual (PPA), na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e na Lei Orçamentária Anual (LOA) os recursos necessários para realizar a desapropriação.

Veja-se que o Plano Plurianual é um instrumento de planejamento de médio prazo, que estabelece as diretrizes, objetivos e metas da administração pública para um período de quatro anos, sendo imprescindível para despesas de longo prazo e previsão de receitas e despesas por um período maior.

Por sua vez, a lei de Diretrizes Orçamentárias é um instrumento de planejamento anual que estabelece as prioridades e metas do governo para o próximo exercício fiscal, orientando a elaboração da Lei Orçamentária Anual.

Já a lei Orçamentária Anual é um instrumento que estabelece as receitas e despesas do governo para o próximo exercício fiscal, incluindo as despesas de capital, que incluem as despesas com desapropriações.

Não se pode descurar, assim, que para conseguir realizar uma desapropriação de imóvel, o ente público responsável precisa ter previsto recursos suficientes para essa finalidade no Plano Plurianual, na Lei de Diretrizes Orçamentárias e na Lei Orçamentária Anual.

No dia a dia de um brasileiro que necessita de uma moradia simples, com água e energia, certamente não se entende quais são os entraves legais burocráticos que impedem a construção de uma casa, mas certamente eles são muitos e estão em todos os cantos do país.

Os orçamentos públicos possuem sérias restrições e a maioria das rubricas de investimentos já possuem destinação pré-definida, com dívidas de longo prazo, portanto, exigir-se-á extrema programação financeira e orçamentária dos Municípios, Estados, DF e União.

Pretendendo decretar a desapropriação de uma área urbana para fins de construção de moradias, em cumprimento à dicção constitucional e em face do alto valor da terra nua traduzida pela especulação imobiliária, cumprindo sua missão dada pelo ecreto-lei 3.365/41, deverá possuir recursos orçamentários suficientes.

O decreto-lei 3365/41, diz em seu artigo 5º, alínea ‘i’ que há possibilidade de decretação de utilidade pública para fins de abertura, conservação e melhoramento de vias ou logradouros públicos; a execução de planos de urbanização; o parcelamento do solo, com ou sem edificação, para sua melhor utilização econômica, higiênica ou estética; a construção ou ampliação de distritos industriais”.

A lei 4.132/62 possibilita a desapropriação para fins de interesse social, também para a construção de moradias, em seu artigo 2º, para  o aproveitamento de todo bem improdutivo ou explorado sem correspondência com as necessidades de habitação, trabalho e consumo dos centros de população a que deve ou possa suprir por seu destino econômico.

Deveras, a lei 4.132/62 afirma também que há possibilidade de tal desapropriação para a manutenção de posseiros em terrenos urbanos onde, com a tolerância expressa ou tácita do proprietário, tenham construído sua habilitação, formando núcleos residenciais de mais de 10 (dez) famílias e a construção de casa populares.

Necessitando de toda a verba orçamentária já designada previamente em seu orçamento, inclusive plurianual, provavelmente o Município, com poucos recursos, buscará se furtar ao seu desígnio constitucional, direcionando os pedidos de construção de moradias para os Estados, DF e a União, pois o administrador pode sofrer graves consequências, caso efetive a desapropriação em desacordo com a lei.

Com tais restrições impostas pela lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), bem como pela recente decisão do Superior Tribunal de Justiça - STJ, haverá enorme dificuldade para que o administrador público, sujeito inclusive às penas da lei de Improbidade Administrativa (lei 8.429/92) e também o decreto-lei 201/67, possa desapropriar imóveis para construções de moradias.

Tal conjunto de fatores proporciona a criação da cidade informal como regra, ganhando cada vez mais espaço nos afazeres da população, pois não se resolvendo os problemas diuturnos do administrador público, especialmente o municipal, este não resolverá os problemas de moradia dos mais carentes. A cidade informal não tem regras, constrói-se em qualquer lugar, de qualquer forma, sem o mínimo de planejamento e observância das normas da lei 6.766/79.

E isto efetivamente acontece porque os mais carentes não podem esperar 10 ou 20 anos para ter um local para morar, precisam de uma moradia para hoje, já que tem filhos e necessidades como todo ser humano, sequer podendo pagar um aluguel módico, pois já precisam fazer escolhas trágicas a todo momento: ou o almoço ou o jantar; um brinquedo ou um lanche, e assim por diante.

A cidade informal não tem quaisquer regras para a sua formação, ou seja, ocupa geralmente terrenos periféricos abandonados nas grandes cidades, onde se constroem barracos de madeira ou lona e outras formações irregulares de moradias. Não existe água potável, esgotamento sanitário, ruas asfaltadas, escolas, postos de saúde e segurança pública, criando um terreno fértil para a dominação de parte da população carente pelo tráfico de drogas e milicianos.

Além disso, é uma forma de economia subterrânea, já que tal moradia, por ser irregular e sem documentação registral no Registro de Imóveis, tem valor menor que o usualmente praticado, além de atingir frontalmente a tributação municipal, pois não havendo registro no fólio real, não se paga IPTU ou quaisquer outras taxas. Isso é um ciclo sem fim, causando mais e mais pobreza urbana.

É óbvio que posteriormente ter-se-á de lutar para que tal aglomeração urbana irregular tenha dignidade, através da regularização fundiária urbana, mas até lá, passados muitos anos ou décadas, tais pessoas já foram marginalizadas, vitimizadas pelo crime organizado e jogadas à própria sorte, sem que o Estado sequer tenha olhado para as suas mínimas necessidades.

Neste viés, o problema de moradia no Brasil é deveras complexo e de projeção extensa, mas urge que se encontrem soluções efetivas de políticas públicas reais para desatar o nó orçamentário que dificulta a desapropriação de terras e a construção de moradias, especialmente para os mais carentes, pois, a um só passo, estar-se-ia concedendo dignidade existencial à população carente, além do cumprimento das competências constitucionais determinadas pela CF/88.

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1 https://fjp.mg.gov.br/deficit-habitacional-no-brasil/

Robson Martins
Doutor em Direito CEUB-ITE. Mestre UFRJ e UNIPAR. Esp. Direito Civil, Notarial e Registral. Professor universitário. Procurador da República desde 2002. Promotor de Justiça 99/02. Técnico JFPR 93/99.

Érika Silvana Saquetti Martins
Doutoranda Dto ITE. Mestre Dto. UNINTER. Mestranda Pol Públicas UFPR. Espec Dto e Proc Trabalho, Dto. Público e Notarial e Registral. Professora Pós Graduação latu sensu Direito Uninter. Advogada.

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