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No dia dos povos indígenas vamos falar de racismo?

Apesar da lei 14.532 não abordar especificamente a questão indígena, é necessário entendê-la como um avanço para a garantia dos direitos dos povos tradicionais.

19/4/2023

Precisamos “descaravelizar”, ou “decolonizar”, o antigo “Dia do Índio” pelo “Dia dos Povos Indígenas”. Entender que hoje, dia 19 de abril, não é dia de pintar o rosto com tintas sem sentido e colocar uma pena na cabeça dizendo que estão homenageando a nós. Tampouco é dia de questionar quem é “índio” pelo fenótipo construído em sua trajetória e excluir os que julgam não serem. Hoje, e sempre, é dia de relembrarmos a importância de respeitarmos a Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e todos os demais diplomas legais que asseguram os direitos dos povos indigenas.

Em 12 de janeiro de 2023 foi publicada no Diário Oficial da União a sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à lei 14.532, que inclui a “injúria racial” como crime de racismo. Nesse sentido, serão feitas a seguir considerações acerca de tal alteração legislativa, com relação à discriminação e racismo que, nós indígenas, podemos ser vítimas.

Essencialmente, a referida Lei visa tipificar injúria racial como crime de racismo. Seguindo essa linha, o ato normativo prevê a aplicação de suspensão de direitos em casos de racismo cometidos durante atividades esportivas ou artísticas. Ademais, são estabelecidas causas de aumento de pena para o racismo em contextos religiosos, recreativos e praticados por servidores públicos.

A Lei trouxe diversas mudanças importantes no que tange a penalização da injúria racial, e converteu-a em crime inafiançável e imprescritível. A norma anterior previa a pena de um a três anos, aumentada agora para dois a cinco anos de reclusão, além de multa. É importante ressaltar que a pena é aumentada da metade se o crime for cometido mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas e que diferentemente do racismo, o qual é considerado um crime contra a coletividade, a injúria é direcionada ao indivíduo.

A Lei do Crime Racial (Lei 7.716), criada em 1989, já havia tipificado crimes relacionados à discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou nacionalidade, contudo, a injúria continuava a ser tipificada apenas no Código Penal. A partir de agora, todos os crimes previstos na lei 7.716/89 terão as suas penas aumentadas em um terço até a metade, se ocorrerem em contexto de descontração, diversão ou recreação.

Tendo em vista que muitas vezes esses crimes são praticados na esfera do mundo digital, a lei 14.532 incluiu como causa de agravante quando o crime é cometido por intermédio dos meios de comunicação social e publicação em redes sociais. Tal mudança é de suma importância para o contexto atual, vez que a internet tornou-se um ambiente de propagação acelerada de conteúdo discriminatório, em que os usuários se sentem protegidos por uma suposta impunidade digital. Apesar de haverem inúmeros casos de postagens discriminatórias aos indígenas, são poucos aqueles que são judicializados. Em outubro de 2022 o Ministério Público Federal ofereceu denúncia, acolhida pela Justiça Federal, contra um indivíduo que durante a exibição nos telejornais disse que os indígenas Gueguê são "espertos" que, por "malandragem" e "picaretagem", estariam "se dizendo índios" para a obtenção de "vantagens" (Processo 1001197-55.2022.4.01.4003).

De acordo com a legislação vigente, o juiz deve levar em conta qualquer comportamento que possa causar constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida a pessoas ou grupos minoritários, e que não seria normalmente dispensado a outros grupos com base em sua cor, etnia, religião ou procedência. Essa conduta é considerada discriminatória e pode ter implicações graves. Além disso, é importante lembrar que a vítima de crimes de racismo deve estar acompanhada de um advogado ou defensor público durante todo o processo judicial, seja na esfera cível ou criminal.

As alterações trazem uma perspectiva positiva para uma aplicação mais efetiva da legislação e punição de atos criminosos. A distinção entre o crime de injúria e racismo não era clara, resultando em uma lei fraca que acabava por favorecer o agressor. Anteriormente, a vítima era responsável por apresentar uma queixa-crime e sustentar a acusação de injúria racial, agora, o processo judicial ganha uma dimensão pública, tornando o Estado obrigado a fornecer o tratamento adequado por meio do Ministério Público.

Embora o ato de seja direcionado a um indivíduo, ele é baseado em uma construção social que estereotipa, desqualifica e subjuga todo o grupo racial a que esse indivíduo pertence. A injúria racial perpetua a percepção de que indígenas ou negros são inferiores, reforçando a imagem de subalternidade e desumanidade destes. Assim, esse crime faz parte de um ciclo alimentado pelo imaginário racista que autoriza atitudes discriminatórias.

Para enfrentar o racismo e os dispositivos de racialidade, é necessário o comprometimento de todas as esferas da sociedade com um projeto antirracista e decolonizador. É importante destacar que a nova compreensão do crime de injúria racial, que agora detém caráter público, é um passo importante em direção a um tratamento mais adequado ao problema, uma vez que se aproxima da raiz de todo um sistema discriminatório da população indígena e negra.

É notório que o racismo é um problema estrutural na sociedade brasileira, o qual se manifesta nas mais diferentes áreas, como no mercado de trabalho, na educação, na saúde e na segurança pública. Assim, a nova abordagem do crime de injúria racial pode ajudar a combater essas desigualdades e contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, entretanto, o que se espera é que agora seja dado um tratamento mais rígidos àqueles que atacam e ofendem os povos indígenas e a população negra.

Por fim, apesar da lei 14.532 não abordar especificamente a questão indígena, é necessário entendê-la como um avanço para a garantia dos direitos dos povos tradicionais. É necessário que a população entenda que não só no Dia dos Povos Indígenas estes devem ser respeitados, mas sim, que em todos os outros dias do ano também sejam, caso contrário, a Justiça poderá ser acionada.

Alvaro de Azevedo Gonzaga
1º Prof indígena Dir PUC-SP. 1º Livre Docente indígena do BR. História, Filosofia e Direito.

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