É fato notório que o mercado de saúde suplementar se encontra em verdadeira guerra contra a prática que se convencionou denominar de “reembolso assistido”. Uma criação ilegal, que possibilita aos prestadores de serviços médicos auferirem lucros milionários (que jamais seriam atingidos caso atuassem dentro de sua finalidade).
Por meio desta prática, algumas clínicas e laboratórios anunciam em larga escala a realização de check up, sem a prévia consulta médica, atraindo os consumidores com a ideia de que não terão qualquer custo, já que este seria suportado pelo plano de saúde a que estão vinculados. Ou seja, mesmo não fazendo parte da rede referenciada, estas clínicas e laboratórios deliberadamente deixam de exigir o pagamento imediato pelos serviços prestados, distorcendo a sistemática e o próprio significado da palavra reembolso.1
Além disso, solicitam indevidamente dados login e senha dos planos de saúde dos consumidores, para então, se fazendo passar por eles, emitirem pedidos de reembolso – embasados, na maioria das vezes, em desembolso simulado, que nunca aconteceu Assim, após o recebimento dos valores na conta dos consumidores, os prestadores emitem boletos bancários com o valor exato que foi reembolsado pelo plano de saúde ou solicitam o simples repasse do montante, por meio de transferência bancária, de modo que passam a auferir, indevidamente, valores exorbitantes. Algo que se equipara facilmente a um verdadeiro cheque em branco para pedirem o que quiserem.
Como forma de coibir esta conduta, a questão tem sido frequentemente levada ao Poder Judiciário. Enquanto, de um lado, sustenta-se que se trata de prática ilegal, por violar o disposto no art. 12, VI, da lei 9.656/98, em prejuízo ao mercado de saúde suplementar como um todo, no que se inserem os beneficiários, prestadores referenciados ao plano de saúde e as próprias operadoras; de outro alguns laboratórios e clínicas não referenciados aos planos de saúde buscam conferir uma roupagem de legalidade a tais atos, alegando que os consumidores realizam uma cessão de direito ao crédito em favor deles e esse seria um serviço que agrega valor ao atendimento, trazendo comodidade, por desburocratizar o sistema de reembolso das operadoras.
Atento a todo esse movimento, o Poder Judiciário do Estado de São Paulo vem se mostrando sensível à questão e reconhecendo a ilegalidade do aludido “reembolso assistido”.
Recentemente o e. Des. Fábio Quadros, integrante da 4ª Câmara de Direito Privado do e. Tribunal de justiça de São Paulo, ao conceder efeito ativo, em antecipação dos efeitos da tutela recursal, ao Agravo de Instrumento 2005035-04.2023.8.26.0000 – interposto contra decisão de primeiro grau que, apesar de reconhecer que a situação foge do habitual, relegou a apreciação da tutela de urgência para após o exercício do contraditório –, consignou em sua decisão que as condutas narradas “se comprovadas, a princípio, violam a legislação específica ao caso”, e o perigo na demora do provimento jurisdicional estaria “no fato de que a continuidade do procedimento eventualmente aplicado pelas agravadas trazem enorme prejuízo à agravante, bem como seus beneficiários e prestadores de serviços envolvidos.”.2
Também em sede de Agravo de Instrumento (autos 2050292-52.2023.8.26.0000) a 4ª Câmara de Direito Privado e. Tribunal de justiça de São Paulo, sob a relatoria do e. Des. Enio Zuliani, deu provimento ao recurso de operadora (inclusive com a determinação de arresto de bens do laboratório réu para assegurar a eficácia do provimento jurisdicional consubstanciado na restituição dos valores pagos indevidamente), invocando como fundamento a legislação vigente e a decisão monocrática referida no parágrafo anterior, para reconhecer que as provas dos autos “servem como indícios de irregularidades a permitir que a requerida se abstenha de manter contato direto com a operadora em busca de reembolso, porquanto qualquer impedimento ou obstáculo nesse sentido poderá justificar intervenção da agência reguladora (ANS).”.3
No dia 21/3/23 a e. Juíza Andrea de Abreu, da 10ª Vara Cível do Foro Central da Comarca da Capital – SP, após o aperfeiçoamento da fase postulatória, proferiu sentença nos autos do processo 1144247-82.2022.8.26.0100 (originários ao Agravo de Instrumento de relatoria do e. Des. Fábio Quadros mencionado alhures), fundamentando que “a solicitação de dados sigilosos dos pacientes, como login e senha do plano de saúde, colocam os consumidores em evidente desvantagem, que acabam vulnerabilizados no sigilo necessário de seus dados médicos.”. Ademais, esta conduta acaba “por desvirtuar o atendimento médico individual, transformando os pacientes em seres sem necessidades e características próprias.”.4
Por fim, ao deferir a tutela de urgência pretendida pela operadora de saúde nos autos da Obrigação de Não Fazer nº 1040914-80.2023.8.26.0100, o e. Juiz Carlos Eduardo Borges Fantacini, da 26ª Vara Cível do Foro Central da Comarca da Capital – SP, teceu severas críticas ao reembolso assistido, considerando "nítida a propaganda abusiva e enganosa utilizada, a venda casada, com a ilusória promessa de pagamento direto pelo plano de saúde, quando o sistema é o de reembolso, através de contratos claramente abusivos, que ferem o Código de Defesa do Consumidor e a boa-fé, pois no sistema de reembolso por óbvio primeiro o consumidor faz o pagamento, para depois ele próprio se ressarcir junto à seguradora de saúde.”.5
É importante destacar que apesar desta falsa comodidade oferecida por alguns laboratórios e clínicas encher os olhos dos consumidores, no frigir dos ovos mostra-se prejudicial a toda massa de beneficiários, integrantes do fundo mútuo administrado pelas operadoras. Isso porque, quanto maior for a sinistralidade provocada, maiores serão os reajustes para reequilibrar a base do negócio jurídico, implicando em indesejada seleção adversa,6 com a migração para o sobrecarregado Sistema Único de Saúde.
Se não bastasse, também se mostra uma prática absolutamente deletéria, perante a concorrência que atua dentro dos ditames estatuídos.
A prática, um verdadeiro embuste, de se alardear atendimentos por “convênios”, mediante o que se convencionou denominar de “reembolso assistido”, visa de um lado angariar clientela em massa e de outro permanecer faturando no limite máximo do reembolso contratual.
Eis, pois, a razão pela qual esta prática não apenas atenta contra o sistema de reembolso, como também representa prática comercial indevida, seja perante a operadora ou aos próprios concorrentes.
Conforme anotado com propriedade por Fabio Ulhôa Coelho “(...) não é simples definir os contornos dos meios inidôneos utilizados pelo concorrente que pratica ato de concorrência desleal genérica, posto que a finalidade do mesmo está intimamente ligada a conquista da concorrência alheia que também é inerente à concorrência lícita, sendo que será a idoneidade do meio utilizado que possibilitará a distinção entre o que se permite e o que se condena, na concorrência entre empresas”.7
Bem se vê que, pela adoção de meio ilícito, a partir de uma agressão ao sistema de reembolso posto pelo direito em vigor, que estas clínicas e laboratórios que se propõe a trilhar tal caminho atravessam a tênue linha da livre concorrência e acabaram por praticar, em tese, atos verdadeiros da concorrência desleal.
Ainda há um longo caminho a ser percorrido até que esta prática oportunista seja extirpada do mercado de saúde suplementar. Felizmente as rigorosas decisões tomadas no âmbito do Judiciário Paulista, ancoradas em judicioso precedente do Superior Tribunal de Justiça,8 têm se mostrado fundamental para combater e quiçá pacificar a questão, na busca de solucionar a problemática da alta sinistralidade e seus reflexos negativos produzidos pela discussão travada nestes processos.
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1 Que é “tornar a embolsar; receber (o dinheiro desembolsado)”, segundo Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/reembolso [consultado em 15-03-2023]
2 TJSP, 4ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento nº 2005035-04.2023.8.26.0000, decisão monocrática proferida em 26.1.2023.
3 TJSP, 4ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento nº 2050292-52.2023.8.26.0000, rel. Des. Enio Zuliani, j. 20.3.2023.
4 Sentença proferida pela MM juíza Andrea de Abreu, nos autos do processo nº 1144247-82.2022.8.26.0100, em trâmite perante a 10ª Vara Cível do Foro Central da Comarca da Capital – SP, em 21.3.2023.
5 Decisão proferida pelo MM juiz Carlos Eduardo Borges Fantacini, nos autos do processo nº 1040914-80.2023.8.26.0100, em trâmite perante a 26ª Vara Cível do Foro Central da Comarca da Capital – SP, em 4.4.2023.
6 “No caso dos seguros em geral e dos planos e seguros de saúde em particular, consiste na auto-exclusão dos consumidores que têm gastos com saúde esperados inferiores ao prêmio cobrado no mercado. A exclusão desses consumidores eleva o custo médio do atendimento, levando a um aumento do prêmio e nova exclusão dos consumidores.” (CECHIN, José. A história e os desafios da saúde suplementar: 10 anos de regulação. São Paulo: Saraiva: Letras & Lucros, 2008, p. 35.)
7 Curso de Direito Comercial, V. 1: direito de empresa. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 196.
8 “RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. INEXISTÊNCIA. CESSÃO DE DIREITO AO REEMBOLSO DAS DESPESAS MÉDICAS REALIZADAS EM CLÍNICA E LABORATÓRIO NÃO CREDENCIADOS À OPERADORA DO PLANO DE SAÚDE. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE DESEMBOLSO PRÉVIO PELO SEGURADO. NEGÓCIO JURÍDICO NULO DE PLENO DIREITO, EM RAZÃO DA AUSÊNCIA DE OBJETO. NÃO HÁ DIREITO AO REEMBOLSO SEM O PRÉVIO DESEMBOLSO DOS VALORES. EXEGESE DO ART. 12, INCISO VI, DA LEI N. 9.656/1998. PROCEDIMENTO SEM RESPALDO EM LEI OU EM RESOLUÇÃO DA AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE - ANS. POSSIBILIDADE DE COMETIMENTO DE FRAUDES. ACÓRDÃO REFORMADO. RESTABELECIMENTO DA SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA DA AÇÃO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
1. Cinge-se a controvérsia a definir se houve negativa de prestação jurisdicional e se é possível a cessão de direitos ao reembolso das despesas médico-hospitalares em favor de clínica particular – não conveniada à respectiva operadora de plano de saúde – que prestou atendimento aos segurados sem exigir qualquer pagamento.
2. Tendo o Tribunal de origem deliberado sobre os temas abordados nas razões do recurso especial, afasta-se a apontada negativa de prestação jurisdicional.
3. Nos termos do que dispõe o art. 12, inciso VI, da Lei n. 9.656/1998, a operadora de plano de saúde é obrigada a proceder ao reembolso nos casos de i) urgência ou emergência ou ii) quando não for possível a utilização dos serviços próprios, contratados, credenciados ou referenciados pelas operadoras, observando-se os limites do contrato e de acordo com as despesas efetuadas pelo beneficiário.
4. O direito ao reembolso depende, por pressuposto lógico, que o beneficiário do plano de saúde tenha, efetivamente, desembolsado previamente os valores com a assistência à saúde, sendo imprescindível, ainda, o preenchimento dos demais requisitos legais previstos na Lei dos Planos de Saúde. Só a partir daí é que haverá a aquisição do direito pelo segurado ao reembolso das despesas médicas realizadas. Antes disso, haverá mera expectativa de direito.
5. Dessa forma, se o usuário do plano não despendeu nenhum valor a título de despesas médicas, mostra-se incabível a transferência do direito ao reembolso, visto que, na realidade, esse direito sequer existia. Logo, o negócio jurídico firmado entre as recorridas (clínica e laboratório) e os segurados da recorrente - cessão de direito ao reembolso sem prévio desembolso - operou-se sem objeto, o que o torna nulo de pleno direito.
6. Sem lei específica ou regulamentação expressa da Agência Nacional de Saúde - ANS, não há como permitir que clínicas e laboratórios não credenciados à operadora de plano de saúde criem uma nova forma de reembolso ("reembolso assistido ou auxiliado"), em completo desvirtuamento da própria lógica do sistema preconizado na Lei n. 9.656/1998, dando margem, inclusive, a situações de falta de controle na verificação da adequação e valores das consultas, procedimentos e exames solicitados, o que poderia prejudicar todo o sistema atuarial do seguro e, em último caso, os próprios segurados.
7. Recurso especial provido.”.
(STJ, Terceira Turma, REsp. 1.959.929 – SP, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 22.11.2022)