O STJ, em recente decisão no Agravo Regimental (AgRg) no Recurso em Habeas Corpus (RHC) 163.224/RJ, publicada no Diário da Justiça Eletrônico (DJe) de 17/3/23, também destacada no seu Informativo 769, de 4 de abril de 2023, trouxe lições extremamente importantes sobre a colaboração premiada. A resolução permite ainda outras reflexões, convergentes com a preocupação da consolidação do instituto, aspecto perceptível nessa decisão da 6ª. Turma, proferida à unanimidade.
No caso concreto, a parte agravante, particular signatário de acordo de colaboração com o Ministério Público, queria o pedido de extinção da punibilidade, sob o argumento de que teria cumprido as sanções pactuadas no acordo1 e que a disposição existente, por ela chamado de "período de prova de 10 anos", não teria caráter de pena e seria uma inovação contratual.
A decisão do STJ, proferida em recurso contra decisão monocrática que manteve a denegação de habeas corpus pelo Tribunal Regional Federal da 2ª. Região, destaca a existência de uma condenação, com trânsito em julgado, que teve a pena adaptada em razão do acordo de colaboração celebrado. E entende que o tema exigiria a análise das cláusulas 6ª e a 7ª, do referido acordo, transcritas no voto e aqui reproduzidas2.
Ao fazer esse exame, o colegiado compreendeu que as cláusulas estão interligadas e que podem acarretar o benefício de uma limitação e de unificação de pena, com limites claros, a gerar, em contrapartida, a suspensão de ações penais, inquéritos policiais e procedimentos investigatórios criminais em face do colaborador que estejam em curso, com a suspensão dos respectivos prazos por 10 anos, a partir da homologação do acordo. Passado esse prazo, a prescrição voltaria a correr, tendente à extinção da punibilidade.
Ao reforçar a natureza da colaboração premiada como negócio jurídico processual, além de meio de obtenção de prova, o Tribunal enfatizou a necessidade de se promover a leitura do instrumento de uma forma orgânica, como ele mesmo denominou, “como um corpo único. Configurando um título executivo judicial, que abarca investigações (presentes e eventuais futuras), e ações penais (em curso, eventuais futuras, transitadas em julgado ou não)”, de modo que as cláusulas, em princípio, gravosas, como a suspensão do prazo de prescrição, devem ser lidas em conjunto com os benefícios.
As obrigações assumidas, entre as quais a sujeição ao período de suspensão, segundo o relatado, não foi inovação contratual e seriam caminho para se obter a pretendida extinção da punibilidade.
Um ponto importante da decisão, para o fim de validar suas conclusões, diz respeito à existência de homologação judicial. Ou seja, do aperfeiçoamento da negociação, com a chancela de legalidade das condições ajustadas, mas também da existência de aceitação, livre e voluntária, dessas condições por parte do colaborador.
Outro ponto que talvez possa ser acrescentado, justamente em razão da correta percepção do acordo de colaboração como negócio jurídico processual, diz respeito à necessidade de se observar os deveres inerentes à boa-fé objetiva. Não como uma fórmula vazia, mas como uma estrutura concretizada de “diretivas éticas”3, a partir da vedação ao abuso do direito, compreendido, conforme bem anota a literatura, a partir de princípios que medeiam a tutela da confiança e da materialidade subjacente, bem como o enquadramento de grupos típicos, a saber: o venire contra factum proprium, a supressio, a surrectio, o tu quoque4.
Na medida em que a parte, bem assistida juridicamente, não vulnerável, sustenta a legalidade daquilo que assina e concorre para a homologação do acordo, parece que uma alegação posterior contra a vigência daquilo por ela defendido é uma típica externalização do venire contra factum proprium, ou a vedação à assunção do exercício de uma posição jurídica que colida com outra previamente adotada.
No extremo, se sustentada por uma parte a ilegalidade da cláusula por ela própria celebrada, restaria até mesmo configurado o tu quoque, dada a tentativa de violar uma norma jurídica e aproveitar-se da situação resultante, com a aquisição dos benefícios contratuais e a rejeição de parte das obrigações assumidas.
Além do acordo, do direito material, a boa-fé objetiva também é exigível para o processo, tanto na concretização do princípio da cooperação processual5, quanto na criação de figuras próprias, por exemplo, o estoppel6. Aqui tomado como a impossibilidade de assumir posições processuais incompatíveis, como ocorre na situação em que se pede a homologação de acordo e depois se busca a invalidação de parte do seu conteúdo.
A pretexto de síntese, a decisão em exame é altamente elogiável e reforça a natureza negocial do instituto que, como imposição da segurança jurídica, exige previsibilidade do seu conteúdo, particularmente dos efeitos futuros, do desempenho das obrigações assumidas pelas partes signatárias, bem do pelo Judiciário, ao aperfeiçoar o ajuste por meio de sua homologação.
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1 Seriam elas a) 90 dias de reclusão; b) 12 meses de prisão domiciliar em regime semiaberto; c) 18 meses de prestação de serviços à comunidade e d) o pagamento das multas de natureza cível e penal.
2 "Cláusula 6ª – Considerados os antecedentes e a personalidade do COLABORADOR, bem como a gravidade dos fatos por ele praticados e a repercussão social do fato criminoso, uma vez cumpridas integralmente as condições impostas neste acordo para o recebimento dos benefícios, desde que efetivamente sejam obtidos os resultados previstos nos incisos I, II, III ou IV, do art. 4°, da Lei Federal n° 12.850/2013, o Ministério Público Federal proporá, nos feitos já objeto de investigação criminal ou de ação penal e naqueles que serão instaurados em decorrência dos fatos revelados por intermédio da presente colaboração, os seguintes benefícios legais, cumulativamente:
1) a condenação à pena unificada máxima de 10 (dez) anos de reclusão nas ações penais já propostas, bem como nos processos penais que vierem a ser instaurados com esteio nos anexos deste acordo, em regime fechado, a ser cumprido em estabelecimento prisional, nos termos da lei penal;
2) em substituição à pena de 10 (dez) anos de reclusão prevista no item "1" acima, o cumprimento de pena se dará da seguinte forma:
a) 90 dias de pena privativa de liberdade em regime fechado;
b) prisão domiciliar em regime semiaberto pelo prazo de 12 (doze) meses, sem monitoramento eletrônico, devendo o COLABORADOR recolher-se em sua residência no período compreendido entre 13h e 6h, e aos finais de semana;
c) 18 (dezoito) meses de pena de prestação de serviços à comunidade, em entidade a ser definida pelo juízo da execução O COLABORADOR deverá prestar relatórios trimestrais, ao Juízo de execução, de suas atividades. O COLABORADOR deverá prestar serviços à comunidade, à razão de 7 (sete) horas semanais, em local determinado pelo Juízo da execução, facultando-se distribuir as horas de prestação de serviços comunitários, dentro de cada mês, de forma não homogênea ou concentrada, inclusive nos finais de semana e feriados quando necessário, em comum acordo com a entidade assistencial ou que vier a ser designada pelo Juízo de execução, vedado o cumprimento em menor tempo. O COLABORADOR poderá realizar viagens internacionais por motivo pessoal, pelo prazo máximo de 10 dias e com a comunicação prévia ao Juízo de execução, com antecedência mínima de uma semana;
d) pagamento de multas penal e cível, na forma especificada nos itens 3 e 4.
Cláusula 7ª - Uma vez homologado este acordo e tão logo alcançado o teto máximo de condenação previsto no item"1)" da Cláusula 6ª, o Ministério Público Federal proporá a suspensão de ações penais, inquéritos policiais e procedimentos investigatórios criminais em desfavor do COLABORADOR que estejam em curso, bem como a suspensão dos respectivos prazos prescricionais pelo lapso temporal de 10 (dez) anos. Durante o mencionado prazo, o MPF não proporá cautelares pessoais em desfavor dos Colaboradores em relação aos fatos abrangidos no presente acordo.
Parágrafo Único. Transcorrido o prazo de dez anos sem a prática de fato imputável ao COLABORADOR que justifique a rescisão deste acordo, voltarão a fluir os prazos prescricionais de todos os procedimentos suspensos até a extinção da punibilidade.
3 Cf. GHIRGA, Maria Francesca. Abuso del processo e sanzioni, Milano, Giuffrè, 2012. Da mesma autora, cf. Corte de Cassazione, sez. III civ., sentenza 24 luglio, n. 14699, in Rivista di diritto processuale, ano LXVIII (seconda serie), n. 6, nov-dez, 2013, pp. 1512-1525.
4 Sobre as modalidades de abuso do direito, cf. CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Litigância de má-fé, abuso do direito de ação e culpa in agendo, 3 ed. aum. e atual. à luz do Código de Processo Civil de 2013, Almedina, Coimbra, 2014, p. 132.
5 SILVA, Paula Costa e. Acto e processo. O dogma da irrelevância da vontade na interpretação e nos vícios do acto postulativo. Coimbra Editora, 2003 e OLIVEIRA, Marcelo Ribeiro. A prova ilícita no processo civil: a relevância dos comportamentos processuais e o do princípio da aquisição na atividade probatória. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2022.
6 DIAMANTOPOULOS, Georgios. Judicial Estoppel. Contradictory procedural behavior in Greek na American Law. In Zeitschrift für Zivilprozess International, Köln, Wolters Kluwer, vol. 17, ed. 2012, pp. 127 e segs. com referência ao caso Scarano v. Central R. Co. of New Jersey 203, F.2 d 510,511 (1953), 3o Circuito, da Corte de Apelações, em que se reconhece a inadmissibilidade do pleito indenizatório de grande soma, por acidente rodoviário, sob o fundamento de incapacidade permanente, com demanda posterior, objetivando a reintegração aos quadros da empresa. O autor cita outros julgados norte americanos e faz alusão a mesma postura por parte do Judiciário grego, bem como noticia a possibilidade de adoção do estoppel mesmo no caso de postulações em distintas jurisdições, tendo sido destacada a hipótese de demandas conflitantes em juízos estadual e federal.