No Brasil, ao contrário de inúmeros outros países, optou-se pela adoção de um diploma protetivo para regular as relações de consumo, o qual contempla importantes garantias estabelecidas em prol do consumidor.
Essa escolha se deve ao fato de o legislador constituinte ter estabelecido, no inciso XXXII do art. 5° da Constituição da República a previsão segundo a qual o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor, conferindo a essa proteção um status de garantia fundamental. E mais. No inciso V do art. 170 da Magna Carta, a defesa do consumidor aparece como um dos princípios da ordem econômica.
Seguindo essas premissas, bem como o comando inserto no art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o legislador infraconstitucional editou, então, lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, a qual, em seu art. 1°, já deixa clara a sua natureza jurídica: são normas de ordem pública e interesse social.
Por isso há tanta discussão sobre a extensão da liberdade das partes ao estabelecer as cláusulas contratuais nos negócios consumeristas. Se as normas do Código do Consumidor são de ordem pública e interesse social, a conclusão mais óbvia é que essa liberdade é bem mais restrita do que nos contratos cíveis e empresariais.
Pensando nisso, trazemos, na coluna de hoje, um desafio bastante interessante.
Há uma prática comumente utilizada no comércio, consistente na concessão de descontos em razão da existência de vícios aparentes ou de fácil constatação em um determinado produto.
Nesse sentido, pensemos no exemplo a seguir.
Eduardo se dirige a uma determinada loja e lá se depara com a seguinte promoção: ‘geladeira do mostruário com 30% de desconto’. O anúncio deixa claro que a razão do desconto é um pequeno amassado na porta do refrigerador. Animado com a promoção e não se importando com o vício aparente, Eduardo leva o eletrodoméstico para casa.
Como fica a garantia legal nessa situação?
O inciso I do art. 51 do CDC proíbe, expressamente, o estabelecimento de qualquer cláusula contratual que impossibilite, exonere ou atenue a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos ou serviços que comercializem, ou que implique em renúncia ou disposição de direitos, considerando tais cláusulas nulas de pleno direito. E com razão, na medida em que são de ordem pública as normas do CDC que estabelecem tais direitos.
Aqui, aproveitamos para lembrar o teor do art. 18 da lei 8.078 e seu parágrafo primeiro. Como regra, ao constatar um vício no produto que tenha sido adquirido dentro do estabelecimento, o consumidor deve comunicar o fato ao fornecedor, para que este tente saná-lo no prazo máximo de trinta dias, ressalvado disposto no § 3° do mesmo artigo.
Não sendo o produto consertado, pode o consumidor optar por alguma das opções dispostas no § 1° do art. 18, quais sejam: I - Substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso; II – Restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos (redibição); III – Abatimento proporcional do preço (demanda quanti minoris). Neste último caso, o consumidor opta por permanecer com o produto, a despeito do vício existente, mediante a concessão de um desconto em seu preço.
Voltando ao nosso exemplo: Como poderá o comerciante se resguardar quanto ao desconto concedido em razão do vício existente no bem?
É fora de dúvida que a inserção de cláusula contratual prevendo a exoneração geral e irrestrita de seu dever de garantia é inadequada, em razão do disposto no já mencionado inciso I do art. 51 do CDC.
Apesar disso, qualquer pessoa, seja ou não da área jurídica, concordará que viola o dever de boa-fé o consumidor que, adquirindo um dado bem, com desconto em razão de vício preexistente e devidamente informado, acione a garantia em relação àquele vício.
Então, qual a solução para esse caso? Ou melhor, qual a interpretação mais condizente com a necessidade de se tutelar a boa-fé sem contrariar o disposto no inciso I do art. 51 do CDC?
A solução se encontra no próprio art. 18.
Ao adquirir um produto com desconto em razão de vício preexistente e devidamente informado, razão do referido desconto, o consumidor exercita antecipadamente o seu direito de garantia, sob a forma estimatória (quanti minoris).
É dizer: ocorre a escolha antecipada, pelo consumidor, do abatimento proporcional do preço, optando o consumidor por adquirir o bem já com o preço proporcionalmente reduzido em razão do vício preexistente e informado, nos termos do inciso III do art. 18 do CDC.
Essa previsão, no entanto, precisa ser específica. É indispensável que o contrato deixe claro quais vícios ocasionaram a concessão do desconto, não sendo possível a adoção de cláusula contratual genérica, exonerando o fornecedor de todos os vícios porventura existentes.
Isso nos leva, assim, a duas conclusões fundamentais: De um lado, tendo o fornecedor deixado claro que o desconto foi concedido em razão do vício preexistente, especificamente indicado, restará extinto o dever de garantia quanto àquele vício, pelo seu exercício antecipado, no momento da compra. Essa é uma interpretação perfeitamente compatível com inciso I do art. 51 do CDC, tendo em vista que não houve exoneração do dever de garantia e nem qualquer renúncia de direito pelo consumidor, que exercitou seu direito de forma antecipada. De outro lado, é fato que a extinção da garantia legal ocorrerá somente em relação ao vício preexistente e que foi condição do desconto, permanecendo o direito do consumidor de reclamar, no prazo e nas condições legais, a respeito de outros vícios, aparentes e de fácil constatação, e também ocultos, que sejam constatados e que não tenham sido causa do desconto.
Voltando ao nosso exemplo, o adquirente do refrigerador não poderá reclamar do amassado na porta, que ocasionou o desconto no preço, mas poderá reclamar se, dentro do prazo de garantia legal de 90 dias, previsto no art. 26 do CDC, seu motor parar de funcionar ou outro vício aparente for constatado, como um empeno que impeça o fechamento por completo da porta e que não esteja relacionado com o amassado preexistente.
Agora ficou fácil responder à pergunta que trouxemos no início deste texto.
No exemplo dado, não houve a exoneração do dever de garantia, mas sim o exercício antecipado do direito ao abatimento do preço pelo consumidor, cuja consequência é a extinção do dever de garantia em relação àquele vício.
Cláusulas contratuais que simplesmente exonerem ou atenuem o dever de garantia do fornecedor são nulas de pleno direito, por violarem o disposto no art. 51, I, do CDC.
O que deve o fornecedor fazer é documentar que o desconto foi concedido em razão do vício específico, devidamente detalhado em documento assinado pelo consumidor, deixando claro o exercício antecipado da garantia, nos termos do inciso III do art. 18 do CDC.
Assim, o consumidor terá o benefício de adquirir o produto com desconto, e o comerciante, por sua vez, terá a tranquilidade de oferece-lo sem a preocupação de arcar com a garantia em relação àquele defeito. É uma situação em que, na prática, as duas partes saem satisfeitas.