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Quem cala consente no Direito Privado - Discussão sobre silêncio simples e qualificado

Há que se desmistificar o dito popular e ver o que há de real e o que há de jurídico na expressão em questão que nos remete a algumas questões jurídicas atuais.

12/4/2023

O grande problema que o profissional do direito enfrenta modernamente, sobretudo o advogado é a concorrência entre as informações que presta ao seu cliente e o confronto com tudo aquilo que a mídia, as novelas, os ditos populares, as lendas urbanas informam ao público em geral, que os toma como verdades sabidas e imutáveis.

Há um senso comum no sentido de que a expressão “quem cala consente” seja uma ideia válida inquestionável que não possa ser mudada em um julgamento – mas, nós os operadores do direito que não podemos nos impressionar com tais mitos temos que estar atentos para sermos, as vezes os que tenham que operar fora das caixas e espaços pré-determinados.

Ora, antes de mais nada, no âmbito do direito constitucional e do direito penal e processual penal1, o silêncio seria uma garantia voltada ao direito de não se poder se exigir que alguém se autoincrimine2.

O presente artigo não tratará dessas questões e nem mesmo dos ônus processuais que poderiam ser entendidos como matéria conexa no plano da teoria geral do processo3 - no que tange a matérias como preclusão, coisa julgada ou revelia.

Aliás, muitos cometem o equívoco, dentre as várias formas de cientificação de um ato (até mesmo processualmente falando há formas inócuas que não geram revelia ou preclusão como se dá com procedimentos de jurisdição voluntária tais como protestos, notificações e interpelações – em que se forma a comunicação, mas não se opera qualquer anuência ou concordância na inércia em responder ou contra-protestar, contra-notificar ou contra-interpelar, por exemplo, via de regra).

O foco aqui, neste artigo e no entanto, seria outro – a ideia aqui seria a análise de efeitos e aspectos materiais (não processuais ou adjetivos mas substantivos para quem estaria acostumado a expressões clássicas do processo civil) dos efeitos do silêncio nos contratos e negócios jurídicos (como sabido todo contrato seria negócio jurídico mas a recíproca nem sempre seria verdadeira – não se podendo tê-los como sinônimos).

Para o direito privado, nem sempre, quem cala consente, melhor seria admitir que quem cala consente seria um dito popular (em verdade seria uma parêmia latina – quid tacit venire - que ganhou força no seio da sociedade virando um verdadeiro dito popular4) de acordo com o qual, quem se calar, em dadas situações sofreria consequências jurídicas ou seja, haveria aí uma certa qualificação de deste silêncio que, normalmente em minhas aulas, aponto como sendo um silêncio qualificado por essa consequência.

Ao contrário, no entanto, uma verdadeira regra geral no sentido de que, quem cala nada quer dizer (qui tacet significat nihil) – ou seja, um silêncio sem qualquer qualificação ou regras jurídicas significativas – costumo chama-lo de silêncio simples em minhas aulas para facilitar a compreensão de meus alunos.

Para Washington de Barros Monteiro, o silêncio pode traduzir um querer, pode ser erigido em uma manifestação de vontade. No ponto de vista jurídico o silêncio vale por anuência sempre que uma pessoa, interpelada, possa ou deva responder-lhe, quando a pessoa interpelada não se manifeste em tal especifica situação, o silêncio pode ser interpretado como forma de anuência.

Insista-se, do ponto de vista material, em atos não processuais, que não responde a uma notificação ou equivalente extrajudicial, num juízo a priori e em regra, nada quer dizer (mas não poderá alegar desconhecimento da alegação do outro – geralmente quando isso se judicializa, eis que se pode mover notificação judicial por exemplo, tem-se raro exemplo de demanda que não comporta contestação sem que isso possa implicar em violação do contraditório – a razão é simples: não há como se dizer que alguém se daria como “desnotificado” se permitida a brincadeira com o termo para exprimir a ideia5).

Diz-se que via de regra quem não responde acaba nada querendo dizer, de modo presumível porque, de modo muito sábio, o Código Civil resta expresso no sentido de que atos benévolos ou de renúncia, não podem ser presumidos – artigo 114 CC evitando que brechas sejam exploradas em má-fé – seria muito fácil iludir pessoas com armadilhas astuciosas6, sobretudo as de pouca escolaridade7 em condições como tal (afinal além da boa-fé subjetiva que cada qual deve guardar internamente, toda e qualquer pessoa deve atuar de acordo com prelados de uma boa-fé objetiva – o trau und graubem do direito alemão – não apenas quanto aos deveres gerais do contrato, mas também quanto a deveres anexos8).

Assim, tem-se que a regra de silêncio qualificado, seria uma exceção do sistema (quem cala consente – qui tacit consentire videtur – como uma decorrência, até mesmo de que a renúncia de direitos não pode ser presumida), de modo que a regra geral seria a de que quem cala, nada quer dizer – isso em simples regra basilar de hermenêutica – em análise quase que literal da lei, eis que quanto a isso valeria mesmo a parêmia latina in claris cessat interpretatio – na clareza cessa a interpretação em tradução literal e livre.

Pelo óbvio que existem situações em que quem calar acabará por consentir, eis que isso pode ser ajustado em contrato como cláusula expressa entre pessoas maiores, capazes e em situação de boa-fé – por exemplo, o interessado se manifestará em 48 horas sobre o desinteresse em continuar com o negócio sob pena, no seu silêncio de se presumir ainda contratante – ideia comum em contratações entre empresas e entre ausentes – sobretudo em contratações máquina x máquina9.

A prova disso é a redação literal do artigo 111 CC no sentido de que “o silêncio importa anuência quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem e não for necessária a declaração de vontade expressa”.

Em síntese, a regra é a de que quem cala nada quer dizer. Sobre a questão, inclusive, aponta o professor de Direito Civil da PUC São Paulo, Adriano Ferriani, no sentido de que: “Não se pode, pelas razões apresentadas, concluir que o silêncio indica necessariamente aceitação no plano jurídico”

Flávio Augusto Cicivizzo, conhecido articulista em interessante estudo, citando Serpa Lopes aponta a ideia em paráfrase “não se trata aqui do silêncio passivo, revérbero de sono, da morte ou da inexistência, mas sim do silêncio ativo”. E prossegue: ... Não se diga, entretanto, que o silêncio se confunde com uma declaração tácita, que corresponde à prática de atos outros que tenham o condão de confirmar a vontade do agente, enquanto o silêncio em si é uma situação de inércia de alguém11.

Reconhecendo eficácia restrita ao adágio quem cala consente (e mantendo a regra de quem cala nada quer dizer) arestos majoritários do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

STJ - RECURSO ESPECIAL REsp 555803 MS 2003/0086778-6 (STJ)Data de publicação: 23/04/2007 Ementa: RECURSO ESPECIAL. CONTRATO. ALTERAÇÃO TÁCITA. ART. 1.079 DO CÓDIGOBEVILÁQUA. 1. Não aceita tacitamente a alteração unilateral do contrato, aparte lesada notifica a outra, advertindo-a para o ilícito contratual. 2. A regra de que quem cala consente tem aplicação restritíssima nas relações jurídicas: dentro do prazo prescricional, quem cala, simplesmente silencia.

TJ-SP - Apelação APL 01224513820118260100 SP 0122451-38.2011.8.26.0100 (TJ-SP)Data de publicação: 28/03/2014 Ementa: Locação de imóveis. Ação de despejo. Denúncia vazia. Situação dos autos que impõe à locatária a desocupação do imóvel. Exegese do artigo 46 , § 2º , da Lei 8245 /91. O silêncio opera como manifestação de vontade quando a parte tiver o dever de falar, e não o fizer, não aproveitando no direito das obrigações o adágio popular "quem cala consente". Apelo improvido.

Por vezes, no entanto, a própria lei (a par da vontade das partes) acaba conferindo um caráter de imposição do silêncio qualificado (quem cala consente) como regra em alguns contratos. É o caso, por exemplo, do contrato de doação (um dos contratos de transferência no direito brasileiro), sobre o qual dispõe o artigo 539 do Código Civil, de modo expresso e diferenciado12.

Não menos importante, dentro do que se expôs acima, nos contratos abrangidos pelo Código do Consumidor, a interpretação deve ser a que for mais favorável ao vulnerável13 (como convém, aliás, em qualquer contrato de adesão quando isso houver14) até pela incidência da interpretação pelo diálogo das fontes.

Como se vê, de há muito tempo, o quem cala consente não mais encontra base para ser tido como algo inconteste ou que possa continuar sendo impunemente utilizado como dito popular.

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1 Constituição Federal - "Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)

LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;"

Código de Processo Penal - "Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas. Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa. (...)

Art. 198.  O silêncio do acusado não importará confissão, mas poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz.

2 Acidente de trânsito – obrigação de permanecer no local dos fatos – compatibilidade com o direito ao silêncio “1. O Supremo Tribunal Federal, dispôs no leading case RE 971959, publicado no dia 23/11/2018: "A regra que prevê o crime do art. 305 do Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/97) é constitucional, posto não infirmar o princípio da não incriminação, garantido o direito ao silêncio e ressalvadas as hipóteses de exclusão da tipicidade e da antijuridicidade".” (TJDFT, 20170810055673APR, Relator: JOÃO TIMÓTEO DE OLIVEIRA, 2ª Turma Criminal, data de julgamento: 07/02/2019, publicado no DJe: 11/02/2019.

3 Como é cediço, a partir dos trabalhos de Goldschmidt, o ônus probatório passou a ser tido como um “imperativo do próprio interesse”, num sistema em que o processo todo partia da premissa de um risco, atribuindo-se os ônus de acordo com o aumento ou diminuição destes riscos – ou seja, manter-se em silêncio numa determinada fase processual seria antes de mais nada um dado estratégico. Já Giuseppe Chiovenda encarava a questão sob uma perspectiva na qual a teoria dos ônus da prova guardaria íntima relação com a conservação do princípio dispositivo no processo, ponderando ainda que em um sistema que admitisse investigações de ofício, sobre a verdade dos fatos, a repartição da carga da prova não teria razão de ser. Isso, obviamente, não se aplica ipsis literae ao processo civil brasileiro, que admite conjuntamente a investigação de ofício pelo juiz, parte de um princípio dispositivo no qual o processo resta instaurado por iniciativa das partes, mas acaba sendo movimentado por impulso oficial.

4 Tem origem no direito canônico com uma Resolução do Papa Bonifácio VIII na virada entre os idos de 1.200 e 1.300 – fonte – Revista Aventuras na História. Disponível em https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/almanaque/de-onde-vem-expressao-quem-cala-consente.phtml

5 Vai daí que se tem que a postura adequada seria a de se contra-notificar para pontuar uma imediata oposição ou justificativa àquilo que se lançou – mas geralmente o silêncio quanto a isso, por isso só, geralmente nada quererá dizer (a menos que haja, por exemplo, um contrato ou cláusula em sentido contrário ou a natureza do negócio assim imponha ou haja norma legal em contrário como nas compras ad gustum). 

6 Silvio de Salvo Venosa, Direito Civil, p. 418.

7 Há uma ideia geral no sentido de que se deva preservar a operabilidade ou operatividade dos atos em geral. O que seria o ideal platônico de tratar os desiguais desigualmente para iguala-los – ideal isonômico para a garantia da concretude dos direitos. Isso seria a base, por exemplo, de garantia de teorias como a de necessidade de garantia de direitos de vulneráveis e hipervulneráveis. 

8 Assim chamados satelitários, implícitos, laterais, como se dá no caso de informação, confidencialidade, assistência etc. 

9 Como sabido com o avanço da inteligência artificial no mundo negocial em contratos eletrônicos existem situações em que há contratações homem x máquina (por exemplo quando aderimos a propostas de robôs) mas há também, sobretudo entre empresas – softwares que controlam momentos em que em dado nível de controle de estoque (por exemplo, falta de papel) se acione eletronicamente um site de compras onde outra máquina (robô) efetuará a venda – algo impensável ao tempo do Código Bevilácqua que tratava do tempo de espera de 60 dias de entrega postal de correspondência em contratações entre ausentes, por exemplo (pior foi que tal Código esteve em vigor até o ano de 2.002 enquanto que a linguagem www já era conhecida há pelo menos doze anos de modo mais ou menos difundido). 

10 In http://www.migalhas.com.br/Civilizalhas/94,MI185168,51045-Quem+cala+consente

11 O silêncio como manifestação de vontade

12 “o doador pode fixar prazo ao donatário, para declarar se aceita ou não a liberalidade. Desde que o donatário, ciente do prazo, não faça, dentro dele, a declaração, entender-se-á que aceitou, se a doação não for sujeita a encargo”.  

13 A própria ementa do STJ, Rel. Min. Antonio Herman Benjamin, REsp 586316/MG RECURSO ESPECIAL 2003/0161208-5, DJe 19/03/2009 destaca como: [...] as normas de proteção e defesa do consumidor têm índole de “ordem pública e interesse social”. São, portanto, indisponíveis e inafastáveis, pois resguardam valores básicos e fundamentais da ordem jurídica do Estado Social, daí a impossibilidade de o consumidor delas abrir mão ex ante e no atacado. O ponto de partida do CDC é a afirmação do Princípio da Vulnerabilidade do Consumidor, mecanismo que visa a garantir igualdade formal-material aos sujeitos da relação jurídica de consumo, o que não quer dizer compactuar com exageros que, sem utilidade real, obstem o progresso tecnológico, a circulação dos bens de consumo e a própria lucratividade dos negócios. [...] A obrigação de informação exige comportamento positivo, pois o CDC rejeita tanto a regra do caveat emptor como a subinformação, o que transmuda o silêncio total ou parcial do fornecedor em patologia repreensível, relevante apenas em desfavor do profissional, inclusive como oferta e publicidade enganosa por omissão.

14 Artigo 424 CC diga-se de passagem.

Júlio César Ballerini Silva
Advogado. Magistrado aposentado. Professor. Coordenador nacional do curso de pós-graduação em Direito Civil e Processo Civil e em Direito Médico.

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