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Apreensão do passaporte como medida executiva atípica

Com base no entendimento atual exarado no C. STJ, as medidas executivas atípicas devem ser mantidas pelo prazo que for necessário, para profligar a renitência do executado, de modo a persuadi-lo que é profícuo cumprir a determinação judicial.

5/4/2023

Neste artigo vamos tratar da possibilidade, ou não, da apreensão do passaporte como medida executiva atípica. Sempre com apoio na legislação pertinente, doutrina especializada e recentes julgados das Cortes Superiores – Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal.

1. MEDIDAS EXECUTIVAS ATÍPICAS

 Antes de entrar no tema central deste artigo – apreensão do passaporte como medida executiva – é necessário tratar das medidas executivas atípicas, propriamente ditas.

São determinações judiciais indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias, necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária (CPC, art. 139, inciso IV). Ficam à disposição do credor, para que possa evocar o cumprimento de determinada obrigação, pelo devedor.1

As medidas executivas atípicas devem ser autorizadas pelo juiz, somente após a constatação da ineficácia das medidas executivas típicas, por exemplo, a penhora, estabelecida no CPC, art. 835, Inciso I a XIII: penhora de dinheiro, aplicações financeiras, bens móveis e imóveis, ações ou quotas sociais. Ou seja, deve haver demonstração de que não foram encontrados quaisquer bens do executado e, por vezes, nem mesmo o próprio executado.

Uma vez esgotadas as medidas executivas típicas e verificando-se a existência de indícios que o devedor possui patrimônio expropriável, entendemos que podem ser adotadas medidas executivas atípicas (CPC, art. 139, inciso IV). Obviamente, sempre observados os postulados do contraditório, da proporcionalidade e da fundamentação das decisões judiciais.

Entende-se que as medidas executivas atípicas possibilitam ao magistrado, “o poder-dever para determinar medidas de apoio tendentes a assegurar o cumprimento de ordem judicial, independentemente do objeto da ação processual”.2

A função das medidas executivas é justamente “eliminar os efeitos da infração a algum direito e impedir a própria infração do direito e a repetição do ato lesivo”.3  Como qualquer ato jurisdicional, é “ordenado pelo juiz”4, devendo ser requerido pela parte exequente.

Nesse contexto, cabe trazer as palavras de J. J. Gomes Canotilho, esclarecendo que a existência de uma proteção jurídica eficaz, “pressupõe o direito à execução das sentenças”5. O Estado deve fornecer todos os meios jurídicos e materiais necessários e adequados para dar cumprimento às sentenças do magistrado. Incluindo-se a utilização das medidas executivas atípicas, sempre observados em cada caso concreto, os postulados do contraditório, da proporcionalidade e fundamentação das decisões judiciais.

As medidas executivas atípicas podem ser aplicadas tanto no processo de execução, propriamente dito, quanto na fase processual do cumprimento de sentença.

Como não há um rol específico para as medidas executivas atípicas, constatamos na praxis forense que alguns juízes têm utilizado diversas determinações, por exemplo: (i) suspensão da CNH; (ii) proibição de participação em concurso ou licitações públicas, (iii) apreensão de passaporte. Todas objetivando tornar efetiva a execução.

2. APREENSÃO DO PASSAPORTE

Dentre as principais medidas executivas atípicas que vêm sendo aplicadas atualmente, está a apreensão do passaporte.

Em recente julgado, de relatoria da lavra do Ministro Luiz Fux, na ADIn 5941, o C. Supremo Tribunal Federal reconheceu, por maioria, a improcedência do pedido feito na ADIn, abrindo caminho para a apreensão do passaporte. Firmou-se o seguinte entendimento:

“[...] Medidas atípicas previstas no CPC conducentes a efetivação dos   julgados é   constitucional, respeitados os artigos 1º, 8º e 805 do ordenamento processual e os direitos fundamentais da pessoa humana.

[...] Não se trata de desprezar a proteção da dignidade humana em casos de abusos de juízes. Mas quaisquer discussões sobre a proporcionalidades das medidas só podem ser travadas em concreto, com sopesamento dos bens jurídicos em conflito

[...] A jurisprudência dessa Corte Superior firmou-se no sentido de     que as medidas atípicas de satisfação do crédito não podem extrapolar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, devendo-se observar, ainda, o princípio da menor onerosidade ao devedor, não sendo admitida a utilização do instituto como penalidade processual [...]”6 (g.n.).

Na referida ação declaratória de inconstitucionalidade, pretendeu-se a não aplicação de quaisquer possíveis medidas coercitivas, indutivas ou sub-rogatórias, previstas no inciso IV, do art. 139, do CPC, sendo a apreensão do passaporte uma delas.

No âmbito do C. Superior Tribunal de Justiça, em acórdão proferido em 29-03-2022, no bojo do REsp 1955539 e REsp 1955574, os Doutos Ministros que compõem a Segunda Seção, afetaram os recursos especiais citados, ao rito dos recursos repetitivos (CPC, art. 1.036). O objetivo é consolidar o entendimento acerca da seguinte tese jurídica:

"Definir se, com esteio no art. 139, IV, do CPC/15, é possível, ou não, o magistrado, observando-se a devida fundamentação, o contraditório e a proporcionalidade da medida, adotar, de modo subsidiário, meios executivos atípicos" (g.n.).

Com isso, determinou-se, com base nos termos do art. 1.037, inciso II, do CPC, a suspensão do processamento de todos os feitos e recursos pendentes, que versem sobre questão idêntica. Cabe destacar, que antes mesmo da afetação ao julgamento repetitivo, decisões do C. STJ já admitiram a adoção de diversos meios executivos atípicos:

“verificando-se a existência de indícios de que o devedor possua patrimônio expropriável, tais medidas sejam adotadas de modo subsidiário, por meio de decisão que contenha fundamentação adequada às especificidades da hipótese concreta, com observância do contraditório substancial e do postulado da proporcionalidade7(g.n.).

É importante, ainda, observar que em se tratando especificamente de execução fiscal, o C. STJ firmou entendimento que as medidas atípicas aflitivas pessoais não se firmam placidamente. A aplicação delas, nesse contexto, resulta em excessos. Sobretudo porque o Poder Público já é dotado, pela lei 6.830/80, de altíssimos privilégios processuais. Com isso, não se justifica o emprego de adicionais medidas aflitivas, frente à pessoa do executado.8

Por fim, cabe ressaltar que há situações nas quais também as medidas executivas típicas são ineficazes. Podem demandar, por exemplo, a declaração de fraude à execução, como a transferência de bem do executado a terceiros, sem a prova da efetiva contraprestação. Isso enquanto tramitava ação capaz de reduzir o devedor à insolvência (CPC, art. 792, Inciso IV). Ou, ainda, a desconsideração da personalidade jurídica, em casos de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial (CC, art. 50, caput).

3. DURAÇÃO DA MEDIDA EXECUTIVA ATÍPICA

Em relação à duração da medida executiva atípica aplicada, convém mencionar que em decisão inédita sobre este assunto, proferida nos autos do HC 711.1949, julgado em 21-6-22, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, publicada no DJe 27.06.2022, o C. STJ, por maioria, entendeu:

“é correto afirmar que não há uma formula mágica e nem deve haver um tempo pré-estabelecido fixamente para a duração de uma medida coercitiva, que deve perdurar, pois, pelo tempo suficiente para dobrar a renitência do devedor, de modo a efetivamente convencê-lo de que é mais vantajoso adimplir a obrigação do que, por exemplo, não poder realizar viagens internacionais” (g.n.).

Assim, com base no entendimento atual exarado no C. STJ, as medidas executivas atípicas devem ser mantidas pelo prazo que for necessário, para profligar a renitência do executado, de modo a persuadi-lo que é profícuo cumprir a determinação judicial.   

CONCLUSÃO 

Como vimos, com base no atual entendimento exarado no C. Superior Tribunal de Justiça e C. Supremo Tribunal Federal, é possível a aplicação de medidas executivas atípicas, dentre elas a apreensão do passaporte.

Sempre que nas execuções ordinárias, regidas pelo CPC, as medidas executivas típicas se mostrarem insuficientes, por exemplo, a penhora de dinheiro, aplicações financeiras, bens móveis e imóveis, ações ou quotas sociais, e por vezes, não se obter sucesso na localização do próprio executado, caberá a adoção de medidas executivas atípicas.

O Estado deve fornecer todos os meios jurídicos e materiais necessários adequados para dar cumprimento às sentenças judiciais, visando o afastamento da inadimplência executória.

 A apreensão do passaporte, como medida executiva atípica, pode ser determinada pelo juiz, tanto no processo de execução, propriamente dito, quanto na fase processual de cumprimento de sentença. O objetivo é obter a eficácia e satisfação da execução. Sempre observados todos os postulados do contraditório, da proporcionalidade e da fundamentação adequada das decisões judiciais.

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1 Em sentido contrário, entendem que as medidas atípicas se configuram penas retributivas e que o texto legal é flagrantemente inconstitucional, diante do disposto no art. 5º, inciso XXXIX, in fine, da CF (CARVALHO FILHO, Antônio; SOUSA, Diego Crevelin de; PEREIRA, Mateus Costa. Medidas executivas atípicas nas obrigações pecuniárias: um anátema de suas inconstitucionalidades, p. 200. In: ASSIS, Araken de; BRUSCHI, Gilberto Gomes (coords.). Processo de execução e cumprimento da sentença. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. 

2 ALVIM, Angélica Arruda (Coord.). Comentários ao Código de Processo Civil. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2020, p.214.

3 ASSIS, Araken de. Manual da Execução. 20.ed. São Paulo: Thompson Reuters, 2018, p.162.

4 MELO, Nehemias Domingos de. Lições do Processo Civil: processo de execução e procedimentos especiais. 3.ed. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2022. p. 51.

5 GOMES, José Canotilho. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ed. Almedina, p. 500.

6 STF, ADI 5941- DF. Min. Rel. LUIZ FUX, j. 09/02/2023.

7 REsp 1.788.950-MT, 3º Turma, Min. Rel. NANCY ANDRIGHI, j. 23/042019, Dje 26.4.2019.

8 STJ. 1ª Turma, HC 453.870-PR. Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, j. 25/06/2019, Dje 15/08/2019.

9 STJ. 3ª Turma. HC 711.194- SP, Min. Rel. NANCY ANDRIGHI, j.21.06.2022, Dje. 27.06.2022

José Ailton Garcia
Advogado, Doutor em Direito Processual Civil, Professor Convidado na Pós-Graduação da PUC SP, do Mackenzie e da Escola Superior da Advocacia ESA OAB. Autor de diversas obras jurídicas.

Sérgio Massaru Takoi
Advogado militante, Sócio do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional - IBDC

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