Migalhas de Peso

O juiz na produção e valoração da prova no processo do trabalho

Uma análise de dois casos envolvendo discussão de vínculo empregatício entre pessoas jurídicas.

5/4/2023

O art. 139 do CPC traz as premissas que constroem a figura do JUIZ DIRETOR da atividade processual. À luz deste dispositivo, cabe ao juiz diretor assegurar às partes igualdade de tratamento, velar pela duração razoável do processo, prevenir ou reprimir atos contrários à dignidade da justiça, indeferir postulações meramente protelatórias, bem como, determinar medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para garantir o cumprimento de ordem judicial.

Ademais, incumbe ao juiz diretor a promoção da autocomposição, preferencialmente com auxílio de conciliadores e mediadores judiciais, a dilação dos prazos processuais e alteração da ordem de produção dos meios de prova, e ainda, a determinação do comparecimento pessoal das partes, com o fito de inquiri-las sobre os fatos da causa.

Por fim, o juiz diretor também se responsabilizará pela determinação do suprimento de pressupostos processuais e pelo saneamento de outros vícios processuais, além do ofício de autoridades judiciais, na hipótese de ocorrência de diversas demandas individuais repetitivas, para, se for o caso, promover a propositura da ação coletiva respectiva.

Portanto, por tradição quase secular, o juiz brasileiro é DIRETOR da atividade processual; reitere-se: ele DIRIGE o processo. Não é outro o verbo utilizado pelos Códigos de 1939, 1973 e 2015. Anteriormente foi dito que essa ideia permeia a jurisdição comum e também a especial. Portanto, o juiz do trabalho herda esse legado e, como prova disso, desde 1943, a CLT não faz outra coisa senão filiar-se a tal atavismo consignando, no seu art. 765, em relação ao magistrado trabalhista, a “ampla liberdade na direção do processo” e a prerrogativa de “determinar qualquer diligência necessária ao esclarecimento” da lide.

A direção do processo pelo juiz se perfila tipicamente aos seguintes elementos: princípio do impulso oficial; iniciativa probatória do magistrado; poder de determinar o comparecimento das partes a qualquer tempo; participação do agente decisor em momentos singulares da produção da prova (como no caso da inspeção judicial); poder de determinar medidas indutivas, coercitivas, mandamentais, sub-rogatórias para assegurar o cumprimento de ordem judicial.

A figura do juiz diretor, assim como estabelecida em lei - se levada à última potência poderia tornar até questionável ou talvez despicienda a antinomia entre verdade formal e verdade real no âmbito de todo e qualquer ramo do direito processual. O magistrado estaria sempre compelido a zelar pela reconstrução fidedigna do caso concreto - quando as partes quedassem inertes - e o faria por meio do emprego de sua própria e autossuficiente iniciativa probatória. Não é e nem foi essa, porém, a linha de cogitações e argumentos adotada pela literatura mais expressiva do direito processual contemporâneo. De todo modo, segundo os limites a que se propõe este texto, que tece comentários sobre o assunto precisamente na seara do processo juslaboral, pode ser consignado que o magistrado do trabalho atende a um PRINCÍPIO DA PRIMAZIA DA REALIDADE que é, nessa área de especialização, a versão mais aprofundada e desenvolvida do conhecido princípio da verdade real do direito processual civil.

Com o advento da lei 9.957, de 12 de janeiro de 2000, que institui o procedimento sumaríssimo no processo trabalhista, a CLT passou a fazer menção literal à iniciativa probatória do juiz do trabalho e também à obediência da formação de sua convicção ao princípio do livre convencimento motivado:

“Art. 852-D. O juiz dirigirá o processo com liberdade para determinar as provas a serem produzidas, considerado o ônus probatório de cada litigante, podendo limitar ou excluir as que considerar excessivas, impertinentes ou protelatórias, bem como para apreciá-las e dar especial valor às regras de experiência comum ou técnica”.

Embora o art. 852-D esteja inserido em Seção destinada ao rito sumaríssimo, o seu conteúdo normativo - por dispor sobre a qualidade e o modo de ser da própria atuação intelectiva do magistrado trabalhista - espraia-se por toda e qualquer causa em trâmite perante a Justiça do Trabalho. Isto é: trata-se de norma válida e aplicável em qualquer espécie de demanda, mesmo que não seja dissídio individual abaixo de quarenta salários mínimos.

Como ora se vê na transcrição do art. 852-D, o juiz dirige o processo com liberdade para determinar as provas bem como para apreciá-las. Assim, não há hierarquia das provas. Não se subordina o magistrado a um histórico e ultrapassado “sistema da prova legal”, isto é, a um método de valoração da prova em que a lei estabelece aprioristicamente o valor de cada meio empregado pelas partes e o agente decisor se transforma em mero aplicador dos “pesos” previamente escolhidos pelo legislador. É dizer: a confissão não é a rainha das provas nem a testemunha desempenha papel secundário, identificado no estigmatizante jargão de “messalina das provas”. E tampouco se afiguraria correto imaginar o contrário: que a confissão não tem consequência processual ou que a demanda trabalhista dependa essencialmente da prova testemunhal.

Em realidade, a prova tem o valor que possa assumir no caso concreto, conforme as circunstâncias de fato e de direito de cada lide. Trata-se do PRINCÍPIO DO LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO, cuja liberdade - é bom que se diga - situa-se dentro do desembaraço que o agente decisor tem para deslocar-se entre os diversos meios de prova do caso concreto e das nuances dessas provas com o contexto da causa. Não se trata de uma liberdade que atente contra os limites do direito positivado nem tampouco contra os parâmetros decisórios fixados pela jurisprudência ou precedentes dos tribunais. Por conta de tais limitações ontológicas, não parece convincente dizer que tal princípio esteja mortificado pelo CPC de 2015, embora tenha se tornado comum, desde o advento do atual Código de Processo Civil, o levantamento desse argumento.

Deste modo, pode ser dito que os arts. 765 e 852-D da CLT são dois dispositivos tributários do PRINCÍPIO DA PRIMAZIA DA REALIDADE e do PRINCÍPIO DO LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO.

Como se viu, não há nobreza real - a priori - na confissão.

Contemporaneamente, na formação da convicção do julgador, importa o TODO do conjunto probatório.

Em decisão proferida em 24 de agosto de 2022, o TRT da 3ª Região trouxe em seu acórdão o seguinte entendimento que vai ao encontro do que ora se defende. O Regional, na oportunidade, recebeu Recurso Ordinário interposto contra sentença proferida em reclamatória ajuizada por franqueado que buscava obter o reconhecimento do vínculo de emprego com a empresa franqueadora.

Em primeiro grau de jurisdição, o reclamante havia se esforçado em buscar provar, sobretudo por meio de testemunhas, que o liame mantido entre as partes, embora tivesse características de contrato civil de “franchising”, seria de fundo trabalhista. Em nome do PRINCÍPIO DA PRIMAZIA DA REALIDADE, o postulante indicou testemunhas para tentar desnaturar o caráter negocial da relação jurídica vivenciada pelas partes.

Efetivamente, o juízo monocrático aplicou o invocado princípio.

Entretanto, fê-lo para julgar o pedido improcedente e também reforçar a ideia da importância da atividade intelectiva do magistrado, da sua liberdade para buscar, nos diversos meios de prova, os elementos que permitam a fidedigna reconstrução do caso concreto.

Ao apreciar o RO 0010679-08.2020.5.03.0048, a 3ª Turma do TRT da 3ª Região, em voto de relatoria do Desembargador do Trabalho Marcelo Moura Ferreira, entendeu que, naquela lide, o franqueado prestava serviços e emitia notas fiscais. Isso não era um elemento fático aleatório e que pudesse ser desconsiderado. Também não se podia fazer vista grossa para os altos valores das notas fiscais emitidas, em cifras muito superiores aos montantes médios recebidos como remuneração por trabalhadores celetistas:

“[...] tem também, emergente do contexto probatório, as notas fiscais emitidas pelo reclamante, ou melhor, pela pessoa jurídica por ele constituída, dando conta e quitação à reclamada do que desta recebeu, a título de corretagem. De se perguntar: qual o empregado, no mercado de trabalho em geral, recebe quantias dessas montas?”

E continuou:

“Vale destacar que a autora tinha ganhos mensais expressivos: Um trabalhador qualificado como a reclamante tinha plena condição de analisar a conveniência de prestar serviços da maneira contratada, não podendo se presumir o vício de vontade”.

O TRT da 3ª Região corroborou o trabalho do magistrado do primeiro grau na mencionada causa, que logrou identificar, por meio do livre exame da prova, as contradições entre a argumentação da parte ativa e o acervo efetivamente produzido nos autos:

“Pelo depoimento prestado pelo reclamante e tendo em conta a prova testemunhal emprestada, conclui-se que a reclamante tentou demonstrar em alguns pontos que não estava ciente dos documentos por ela assinados, mas logo após reconhece sua assinatura em diversos desses documentos. Como bem destacado em sentença, ‘Embora a reclamante e sua testemunha (prova emprestada) tenham declarado que desconheciam a forma como seria formalizada a relação com a ré, (...) reconheceram que participaram de treinamentos oferecidos e custeados pela ré, não apenas sobre os produtos que seriam comercializados, mas também sobre o modelo de negócio que iriam empreender, não sendo crível tal arguição. Menos crível ainda se considerarmos o grau de instrução da autora e sua testemunha (...) A tentativa da autora e de sua testemunha em demonstrar um suposto vício de consentimento não tem espaço na hipótese’”.

O esforço cognitivo do próprio tribunal de segundo grau - também se valendo da liberdade de transitar entre os meios de prova disponibilizados - não se resumiu à releitura de atas de audiência. Nesse sentido, os conteúdos de conversas de aplicativos em telefone celular foram examinados minuciosamente em busca de elementos formadores de opinião:

“No extrato de conversas de aplicativo whatsapp, de grupo mantido entre os franqueados da reclamada (f. 36/183), também não se extrai nenhum contexto que traga indícios da alegada fraude ao contrato de franquia”.

E, com base em todos os elementos coligidos, concluiu a Turma sobre a valoração da prova oral:

“A liberdade e autonomia dos serviços prestados restou demonstrada na prova oral”.

A conclusão de mérito do Tribunal Especializado, inarredavelmente calcado no PRINCÍPIO DA PRIMAZIA DA REALIDADE e no PRINCÍPIO DO LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO foi no sentido de sufragar o entendimento da sentença de primeiro grau:

“Em suma, não consigo vislumbrar relação de emprego na circunstância, em que tudo, rigorosamente tudo, foi posto às claras, muito às claras, pela empresa de seguros reclamada aos seus life planners, corretores de seguros que são, titulares de franquias dos produtos da reclamada, habilitados, enquanto corretores, junto a Susep, órgão governamental de regulamentação e fiscalização da atividade securitária no País. E a relação jurídica entre eles formada, ao menos ao que venho percebendo até aqui, em processos de minha relatoria inclusive, não discrepou da exigência legal de não haver vínculo empregatício entre o profissional da corretagem e o contratante dos seus serviços para a mediação dos negócios deste, segundo inteligência do art. 722 do

Código Civil Brasileiro.

Portanto, não há falar em vínculo de emprego entre as partes, ficando mantida a sentença”.

Em especial, sobre o PRINCÍPIO DA PRIMAZIA DA REALIDADE, manifestou-se o acórdão:

“Primazia da realidade, enquanto princípio balizador do contrato individual de trabalho, não é, é bom que se diga, um privilégio deste, única e exclusivamente. Princípio também é das relações contratuais de naturezas jurídicas diversificadas, de que são exemplos os contratos civis, comerciais e administrativos. A realidade nessas modalidades contratuais também há de sobrepujar à mera formalidade com que são celebradas”.

Em outro processo ainda mais recente, a sentença de primeiro grau proferida pela 13ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte (ATOrd 0010851-55.2020.5.03.0013) também manifesta a LIBERDADE - aqui entendida como LIVRE RACIONALIDADE - da atuação do magistrado na produção e utilização da prova disponibilizada pelas partes no processo:

“No particular, afasto os protestos do reclamante em relação à juntada dos referidos documentos após a apresentação da defesa, porquanto trazidos aos autos antes do encerramento da instrução processual. Além disso, os documentos colacionados foram elaborados e subscritos pelo próprio autor, bem como foi concedida vista ao reclamante que se manifestou, garantindo a sua ampla participação na formação do convencimento do Juízo acerca da prova.

Assim, não há que se falar em prejuízo à ampla defesa e ao contraditório quanto à juntada extemporânea dos documentos, prevalecendo a manutenção deles nos autos”.

No caso em questão, a prova emprestada requerida pelo próprio autor acabou sendo empregada pelo magistrado para formar seu convencimento em diametral oposição ao seu pedido de mérito:

“Por fim, conquanto o depoimento da testemunha [omissis], admitido como prova emprestada, corrobore a tese da inicial, no sentido que havia obrigatoriedade de comparecimento à reclamada e a reuniões, com controle de horário, fiscalização pelo gerente, estabelecimento de metas e punições por ausência, o conjunto probatório, como visto, não permite concluir que a relação havida possuía os contornos clássicos de uma relação de emprego.

Destaca-se que o próprio autor, em depoimento, afirmou apenas que deveria comparecer a três reuniões semanais, não cogitando que tivesse a obrigatoriedade de comparecer à reclamada diariamente ou, ainda, que houvesse controle de jornada por qualquer meio.

Do conjunto probatório extrai-se, portanto, que a reclamada, como franqueadora, orientava e fiscalizava os serviços prestados pela franqueada, o que se encontra inserido no âmbito do contrato de franquia, não havendo prova de que extrapolasse os limites da autonomia própria do franqueado, o que é suficiente a afastar o reconhecimento do vínculo de emprego”.

Foi afirmado anteriormente que, segundo o princípio do livre convencimento motivado, a prova tem o valor que possa assumir no caso concreto. A sentença de primeiro grau ora em comento faz uso desse postulado ao ajustar a interpretação dos meios produzidos pelos litigantes à premissa de HIPERSUFICIÊNCIA da parte reclamante no contexto da lide:

“Inicialmente, nota-se que, em audiência, o reclamante afirmou que é formado em administração, que é sócio da empresa de sua família e que assinou o contrato por livre e espontânea vontade, recebendo em torno de 400/500 mil anualmente.

Dessa feita, a priori não se vislumbra qualquer vício de vontade na assinatura dos contratos pelo reclamante, especialmente, considerando a condição pessoal do autor, que o afasta consideravelmente do conceito de hipossuficiente. Com efeito, o obreiro possuía plena capacidade de discernir as condições e termos da pactuação levada a efeito em moldes diversos da relação empregatícia, com a contrapartida de remuneração diferenciada.

[...]

Não escapa a esse juízo, ainda, as declarações do autor de que recebia anualmente em torno de 400/500 mil reais. Com efeito, considerando o que de ordinário acontece, os valores percebidos extrapolam consideravelmente o padrão remuneratório de um corretor de seguros empregado”.

O acórdão e a sentença mencionados nestas primeiras linhas merecem realce pelo modo como transitam entre os conteúdos dos dois princípios aqui referenciados e também por sufragarem teses de fato e de direito de relevante valor. As decisões do juízo de piso e do segundo grau, in casu, dão a justa solução aos casos concretos e se negam a referendar lugares-comuns infelizmente ainda reiterados em petições iniciais que reivindicam o reconhecimento de vínculo empregatício entre franqueado e franqueadora, quando a lei de direito material está a bradar, em letras de texto literal, que o mesmo não existe e, principalmente, em contratos que não padecem de nenhum vício de antijuridicidade ou de desvio de finalidade.

Antônio Fabrício de Matos Gonçalves
Sócio do Escritório ASAF- Alex Santana e Antônio Fabrício Sociedade de Advogados- Professor de Direito do trabalho da PUC Minas e Mestre em Direito do Trabalho- Presidente da OAB Minas Gerais (2016-2018) – Presidente da Abrat (Associação Brasileira da Advocacia Trabalhista - 2012-2014.) Autor de diversas obras jurídicas.

Tatiana Goulart
Advogada do Escritório ASAF - Alex Santana e Antônio Fabrício Sociedade de Advogados – Especialista em Direito. Público pela PUC/MG- Especialista em Direito Desportivo pela FGV e membro do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/MG.

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