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O “federalismo centrífugo de compras públicas” na regulamentação da nova lei de licitações

Em apenas 3 exemplos de regulamentações da NLGLC houve abordagens no mínimo heterodoxas do poder conferido no art. 84, IV da CF/88, razão pela qual é bastante crível imaginar tais situações não sejam (ou serão) insulares e sim talvez até sejam (ou serão), infelizmente, um problema comum.

29/3/2023

Nos termos do art. 84, IV da CF/88, uma das competências privativas do Chefe do Poder Executivo é a de expedir decretos e regulamentos para fiel execução das leis.

Pois bem, de imediato é preciso partir da premissa de que “o regulamento administrativo não inova a ordem jurídica de modo primário, eficácia reservada à lei formal no sistema constitucional brasileiro, de acordo com o inciso II do art. 5º da Constituição Federal. Reza o princípio da legalidade que apenas lei formal pode criar direitos e obrigações com caráter original, inovando a ordem jurídica de modo primário. ‘Inovar originalmente na ordem jurídica consiste em matéria reservada à lei’, na lição de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello. Ao regulamento cabe desenvolver os preceitos legais, garantindo ‘sua fiel execução’, nos termos do inciso IV do art. 84 do texto constitucional. Trata-se de regulamento de execução, que não pode criar obrigações e direitos que não tenham sido previstos previamente pelo legislador. Daí afirmar Geraldo Ataliba que ‘por virtude própria o regulamento não obriga a ninguém (...)’. Enfim, a edição de regulamento administrativo, como todo ato proferido no exercício da função administrativa, depende de prévia manifestação de função legislativa, já que o regulamento deve simplesmente desenvolver os preceitos veiculados através da lei.1

Ou seja, à toda evidência, podemos resumidamente concluir que “a norma regulamentar, em conseqüência, não pode criar direitos ou obrigações, ao nível das relações intersubjetivas. Caso seja mera repetidora do preceito legal, será inútil. Caso disponha mais que o legislador, será inconstitucional. Logo, cinge-se o âmbito regulamentar em restringir o conteúdo dos preceitos legais, limitando a atuação da Administração Pública, facilitando a aplicação da lei.2

Assim, de uma forma geral, a doutrina3 aponta para isso: “somente a lei – e não o regulamento – pode inovar na ordem jurídica, modificando situação preexistente. sempre a lei, e jamais o regulamento, será a via legítima de se criarem obrigações para os particulares4

Entretanto, naquilo que meu colega Sandro Bernardes (Professor e Auditor do TCU) alcunhou - quando estávamos discutindo sobre a regulamentação da lei 14.133, de 1º de abril de 2021 - de “federalismo centrífugo de compras públicas”, parece que os clássicos limites do poder regulamentar não têm sido observados quando da regulamentação da Nova lei Geral de Licitações e Contratações – NLGLC.

Vejamos 3 exemplos: A Portaria SEGES/MGI 720/23 da União, o decreto 44.330/23 do Distrito Federal e o decreto 114/22 do Município de Gongogi/BA.

A Portaria SEGES/MGI 720/23 a princípio fixou o regime de transição de que trata o art. 191 da lei 14.133/21, apenas e tão somente no âmbito da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional.

Todavia, seu art. 7º a portaria prescreve que “os órgãos e as entidades não integrantes da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional que utilizam o Sistema de Compras do Governo Federal devem observar o regime de transição de que trata esta Portaria”6.

Perceba que a norma infralegal eminentemente federal criou uma obrigação de ordem nacional que tem a pretensão de vincular os entes subnacionais que utilizarem o Sistema de Compras do Governo Federal a se submeterem às regras de direito intertemporal fixadas para a União.

Veja que a Portaria SEGES/MGI 720/23 é editada num contexto diverso daquele de outras regulamentações federais, como por exemplo o decreto Federal 11.246/22, vez que ali se estabelece em seu art. 2º que os “órgãos e as entidades da administração pública estadual, distrital e municipal que utilizem recursos da União oriundos de transferências voluntárias poderão observar as disposições deste decreto”.

Não nos parece que a mera utilização de uma ferramenta tecnológica do Governo Federal se equipare a utilização de recursos financeiros de transferência voluntária e que por isso tenha o condão de tornar a Portaria SEGES/MGI 720/23 de aplicação obrigatória aos entes nacionais e, portanto, uma exceção ao art. 187 da NLGLC que estabelece que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão e não deverão aplicar os regulamentos editados pela União para execução da lei.

Ao regulamentar a lei 14.133/21 no âmbito do Distrito Federal, o decreto 44.330 de 16 de março de 2023 estabeleceu em seu art. 230 que para que as hipóteses de inexigibilidade previstas no inciso III do art. 74 da NLGLC, fiquem caracterizadas, é necessária “a comprovação dos requisitos da especialidade e da singularidade do serviço, aliados à notória especialização do contratado”.

Ou seja, o decreto 44.330/23 inovou na ordem jurídica e trouxe disposições que impõem deveres que não constavam da lei por ele regulamentada.

Para aumentar a estranheza, o decreto 44.330/23 foi editado ignorando por completo o fato de que o STJ utilizou a lei 14.133/21 no AgRg no Habeas Corpus 669.347 – SP (2021/0160441-3) para entender que não há exigência de singularidade do objeto para regularidade de contratação direta.

Por fim, o decreto 114 de 07 de janeiro de 2022 estabeleceu em seu art. 4º, § 3º, que, no âmbito do Município de Gongogi/BA, “o Agente de Contratação, assim como os membros da Comissão de Contratação, poderão ser servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes do Município, ou cedidos de outros órgãos ou entidades para atuar na Prefeitura”.

Perceba-se que o decreto conferiu uma discricionariedade não prevista no art. 8º da NLGLC que, por seu turno, dispõe que a “licitação será conduzida por agente de contratação, pessoa designada pela autoridade competente, entre servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Pública, para tomar decisões, acompanhar o trâmite da licitação, dar impulso ao procedimento licitatório e executar quaisquer outras atividades necessárias ao bom andamento do certame até a homologação”.

Ou seja, a lei exige o agente de contratação possua vínculo efetivo (seja de cargo ou emprego público) com a Administração Pública, ao passo que o decreto coloca como mera possibilidade.

E para que não haja dúvida acerca do que dispõe o art. 8º da lei 14.133/21, repita-se que o agente de contratação “deverá ser um só servidor efetivo ou empregado público integrante dos quadros permanentes da Administração Pública7”.

Em que pese a evidente discrepância de abordagem entre o decreto Municipal 114/22 e a lei 14.133/21, há de se registrar que, no âmbito da Bahia8, o Tribunal de Contas dos Municípios, em sede de consulta (Processo 11770e21, Parecer 01062-21), entendeu que “os Servidores Efetivos que realizarem a função específica de Agente de Contratação postos no caput do art. 8º da mesma norma, deverão ser obrigatoriamente ocupantes do cargo de provimento efetivo ou cargo em comissão”.

Pois bem, como se viu, em apenas 3 exemplos de regulamentações da NLGLC houve abordagens no mínimo heterodoxas do poder conferido no art. 84, IV da CF/88, razão pela qual é bastante crível imaginar tais situações não sejam (ou serão) insulares e sim talvez até sejam (ou serão), infelizmente, um problema comum.

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1 Mello, Rafael Munhoz de, Princípios Constitucionais de Direito Administrativo Sancionador, São Paulo, Malheiros, 2007, págs. 115/116.

2 Oliveira, Regis Fernandes de, Infrações e Sanções Administrativas, 2ª edição, revista, atualizada e ampliada, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2005, pág. 62).

3 “O regulamento é, pois, de regra, um ato normativo secundário geral. Assim o é, no sistema constitucional brasileiro. Por ser secundário, não pode o Executivo, ao exercer a função regulamentar, criar direitos e obrigações novas, ou, numa palavra, inovar na ordem jurídica.” (Velloso, Carlos Mário da Silva, “Do poder regulamentar”, RDP 65/41, APUD Mello, Rafael Munhoz de, Princípios Constitucionais de Direito Administrativo Sancionador, São Paulo, Malheiros, 2007, pág. 116, nota de rodapé)

4 “Não há a possibilidade de, através de regulamentos administrativos, criar novos direitos e obrigações, mas tão-somente a possibilidade de proporcionar a execução in concreto daqueles que já foram objeto de previsão legislativa.” (Talamini, Daniele Coutinho, “Regulamento e ato administrativo”, RTDP 21/82, APUD Mello, Rafael Munhoz de, Princípios Constitucionais de Direito Administrativo Sancionador, São Paulo, Malheiros, 2007, pág. 116, nota de rodapé)

5 Barroso, Luís Roberto, “Disposições constitucionais transitórias (natureza, eficácia e espécie) – Delegações legislativas (validade e extensão) – Poder regulamentar (conteúdo e limites)”, RDP 96/75, APUD Mello, Rafael Munhoz de, Princípios Constitucionais de Direito Administrativo Sancionador, São Paulo, Malheiros, 2007, pág. 116, nota de rodapé.

6 O plenário do Tribunal de Contas da União proferiu, nos autos do Processo nº TC 000.586/2023-4, o Acórdão nº 507/2023 que determinou a alteração da redação da portaria, mas nada em relação ao seu art. 7º.

7 Camarão, Tatiana, Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021 / coordenado por Cristiana Fortini, Rafael Sérgio Lima de Oliveira, Tatiana Camarão, Belo Horizonte: Fórum, 2022, pág. 166.

8 Citem-se ainda os seguintes exemplos de entes subnacionais que admitiram em seus regulamentos a possibilidade de o agente de contratação ser um servidor comissionado: 1) RJ: Decreto Municipal nº 51.689/2022 (art. 9º, I); 2) MG: Decreto Estadual nº 48.587/2023 (art. 8º, § 1º) e 3) SP: Decreto Municipal nº 62.100/2022 (art. 3º, § 3º).

Aldem Johnston Barbosa Araújo
Advogado em Mello Pimentel Advocacia. Membro da Comissão de Direito à Infraestrutura da OAB/PE. Especialista em Direito Público.

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