Ainda sem regulação no país, o trabalho por aplicativos voltou à pauta diante da informação de que o Governo Federal deverá apresentar um projeto de regulamentação da atividade no primeiro semestre de 2023. A expectativa é de que a proposta concilie as demandas dos trabalhadores por direitos e garantias mínimas com os interesses das empresas tomadoras e alcance um novo paradigma de trabalho, com reflexos tributários, transparente e com proteção social.
A perspectiva de uma nova legislação eleva a expectativa a respeito de como o Governo irá lidar com o enquadramento profissional dessa atividade, o que permite que se vislumbre a criação de uma nova modalidade de trabalho que se desprenda do binômio tradicional subordinação-autonomia.
Discussão semelhante ocorre em outros países e as soluções encontradas caminham para o reconhecimento de uma zona intermediária entre a subordinação e a autonomia. No Reino Unido, motoristas de aplicativo já foram reconhecidos como “workers”, categoria intermediária que goza de alguns direitos como salário-mínimo e limitação de jornada, mas não tem todas as proteções garantidas aos “employees”. Já na Itália há a figura do parassubordinado, que goza de menos direitos que os trabalhadores subordinados, mas tem garantido seguro contra acidentes e doenças do trabalho e auxílio maternidade.
No Brasil, a falta de enquadramento jurídico abre espaço para que o tema seja discutido de forma ampla, além do modelo “tudo ou nada” característico do direito trabalhista brasileiro. Uma saída viável é pensar a regulamentação considerando as diretrizes do trabalho decente.
Meta prioritária da OIT, o trabalho decente tem como objetivo melhorar a condição socioeconômica das pessoas a partir da regulação do trabalho. Para isso, reconhece que a justiça social e o crescimento econômico sustentável só podem ser alcançados a começar com a justa distribuição da riqueza gerada.
O conceito está amparado em quatro pilares estratégicos. São eles: a garantia dos princípios e direitos fundamentais no trabalho; a geração de mais oportunidades de emprego e renda; aumento da proteção social; e fortalecimento do diálogo social. Os requisitos mínimos exigidos pelo trabalho decente são que o trabalho seja exercido em condições de liberdade, equidade, segurança, mediante justa remuneração e dignidade.
Em relação ao trabalho por aplicativo, as condições de liberdade podem ser alcançadas com a livre vinculação e desvinculação dos trabalhadores à plataforma, sem a incidência de multas, punições e coações, além da extinção de intermediários que isentam os tomadores de responsabilidades jurídicas e criam ônus excessivos aos trabalhadores.
Para as condições de equidade, podem ser estabelecidos critérios claros e objetivos para a filiação e desfiliação da plataforma, além de transparência na distribuição algorítmica de oportunidades de trabalho, evitando critérios discriminatórios. A inclusão de mulheres e minorias é fundamental e, para tanto, é altamente incentivada a criação de canais de denúncia e melhoria dos mecanismos de comunicação com a plataforma.
Já as condições de segurança passam pela vinculação dos trabalhadores à previdência social, além da criação de seguros específicos contra acidentes e seguro de vida. Um incentivo financeiro para a manutenção dos equipamentos de trabalho é necessário, inclusive para assegurar a qualidade do serviço oferecido aos clientes.
A justa remuneração está condicionada à vinculação do pagamento dos trabalhadores ao valor/hora do salário-mínimo nacional. Além disso, a implementação de férias remuneradas, ainda que pagas em uma periodicidade específica e de forma proporcional ao serviço prestado é uma medida importante.
O cumprimento dos quatro requisitos anteriores faz com que o trabalho seja exercido em condições de dignidade. Vale ressaltar que a dignidade da pessoa humana é uma categoria axiológica aberta, assim a melhoria das condições de qualquer trabalho é tema que nunca deve sair de pauta.
Para a regulamentação funcionar, é preciso que o Estado e a sociedade tenham condições de fiscalizar a política desenvolvida. Para tanto, sugere-se a criação de uma base cadastral que inclua informações das empresas tomadoras, intermediários e trabalhadores, além da padronização dos CNAE, que hoje são heterogêneos. O processo também pede transparência, tanto em relação às informações que as plataformas guardam de seus trabalhadores e clientes, quanto em relação aos processos internos e lógica de funcionamento do algoritmo.
A regulamentação do trabalho por plataformas digitais deve ser encarada como uma reparação à falha sistêmica que ignorou, durante anos, as necessidades existenciais de milhões de trabalhadores. Em um ordenamento jurídico fundado na dignidade da pessoa humana e um sistema socioeconômico pautado na solidariedade – não apenas no aspecto principiológico, mas principalmente em relação ao custeio – a preocupação com a justiça social é de todos, inclusive das empresas tomadoras de serviço.
O direito social foi concebido justamente com o objetivo de reconstruir a lógica do sistema liberal para reparar a disparidade econômica entre as partes conviventes, estabelecendo disposições para corrigir essa assimetria por meio de proteção jurídica ao mais fraco. No patamar civilizatório atual, o princípio da vedação ao retrocesso social não pode permitir que uma tecnologia do século XXI implemente padrões de trabalho do século XIX.