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Vamos voltar a falar sobre a fundamentação da decisão que recebe a denúncia?

Para ser fundamentada, uma decisão não precisa ser extensa (é possível, de forma objetiva, rebater os argumentos das partes a fim de deixar evidenciado de que todos foram considerados na conclusão do juiz).

16/3/2023

No dia 20/12/22, foi publicada importante decisão monocrática proferida pelo Min. Rogério Schietti, da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, nos autos do HC 523.480/MG.

Na decisão, o Ministro anulou um processo, a partir da decisão que ratificou o recebimento da denúncia, a fim de que outra seja proferida, por entender que a referida decisão "não fez a mínima referência aos argumentos apresentados pela defesa na resposta à acusação".

O Ministro destacou que a peça defensiva "foi específica ao suscitar as seguintes teses: a) ilegitimidade passiva do denunciado; b) litispendência; c) ausência de justa causa; d) não participação do acusado nos fatos narrados; e) ausência de dano ao erário; e f) atipicidade da conduta imputada". Por outro lado, frisou que a decisão que ratificou o recebimento da denúncia "não fez a mínima alusão aos argumentos suscitados, ainda que de forma superficial".

A decisão do Ministro Schietti trata de tema muito discutido no direito processual penal brasileiro, qual seja, a necessidade de fundamentar o ato decisório que recebe a inicial acusatória.

Doutrina e jurisprudência divergem sobre a necessidade de fundamentar a decisão que recebe a denúncia, discutindo, principalmente, sobre a natureza jurídica do ato judicial em questão e sobre o alcance da fundamentação devida.

Quanto à natureza jurídica do ato, não se pretende discutir nesse breve artigo. Fato é que, diante da omissão legislativa, coube a jurisprudência definir o ponto, sendo o entendimento dominante de que se trata de decisão interlocutória1.

Seja como for, de tal entendimento, se extrai que haverá nulidade por ausência de fundamentação, nos termos do artigo 93, inciso IX, da CF, “já que a norma fala em decisões”2, como destaca Luiz Gustavo Grandinetti, pouco importando, portanto, se a decisão é ou não interlocutória.

Grandinetti lembra, ainda, que, para Rogério Laura Tucci e José Rogério Cruz e Tucci, no caso de decisões interlocutórias, “só haverá nulidade se a falta de motivação importar em prejuízo”3.

Neste caso, mister reconhecer que o recebimento de uma denúncia sem fundamentação sempre importará em prejuízo ao acusado, uma vez que não haverá segurança de que seus argumentos foram “ouvidos”, entendidos e considerados pelo magistrado. Assim, seguindo o entendimento de Rogério Laura Tucci e José Rogério Cruz e Tucci, ainda que se admita que a denúncia é recebida por uma decisão interlocutória, fica evidenciada a necessidade de sua devida fundamentação.

A despeito da posição de Rogério Laura Tucci e de José Rogério Cruz e Tucci, a verdade é que, desde 23.1.20, quando começou a vigorar a chamada lei Anticrime (13.964/19), o Código de Processo Penal passou a tratar da questão, não só explicando quais são as espécies de decisão judicial, incluindo a interlocutória entre elas, mas estabelecendo que não serão consideradas fundamentadas quaisquer uma delas se apenas se limitarem “à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida”, empregarem “conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso”, invocarem “motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão”, não enfrentarem “todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador” e invocarem “precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos”.

Dessa maneira, em que pese a divergência sobre o tema, a regra introduzida no §2º do art. 315 do Código de Processo Penal deixa claro que o dever de fundamentação das decisões, previsto na Constituição, incide, também, em relação ao ato judicial que recebe a denúncia.

Superado esse tópico, volta-se à atenção sobre a discussão acerca da extensão da fundamentação contida na decisão que recebe a inicial acusatória, pois há quem alegue que, ao fundamentar a referida decisão, o juiz poderia antecipar o julgamento do mérito do caso.

Quanto a isso, importante esclarecer que não se espera, nem se deseja, que o magistrado passe a proferir decisões que mais pareçam tratados de direito penal ou processual penal a fim de rebater cada um dos argumentos das partes (tanto acusação, quanto defesa). No entanto, é possível proferir decisão sucinta que seja fundamentada.

Por exemplo, se foi alegada, em preliminar, inépcia da denúncia por descrição insuficiente do crime com os seus elementos constitutivos e demais circunstâncias, o juiz, ao se manifestar, precisa indicar, explicitamente, os eventuais equívocos do argumento defensivo e justificar sua posição e não apenas dizer que a inicial acusatória não é inepta porque descreve o crime com os seus elementos constitutivos e demais circunstâncias.

Foi, exatamente, neste sentido a decisão do Min. Schietti, que deixou claro que se espera que o magistrado, “ainda que de forma superficial”, se manifeste sobre todas as teses defensivas.

Afinal, apenas haverá certeza de que os argumentos do acusado foram considerados se especificada e fundamentadamente, nos termos do art. 93, IX, da Constituição e do §2º do art. 315 do Código de Processo Penal, rechaçados quando do recebimento da inicial acusatória.

À mesma conclusão, chegou Nereu José Giacomolli, que, ao mencionar os ritos processuais nos quais é prevista a apresentação de defesa antes do recebimento da denúncia, questionou qual seria “o efeito da defesa antecedente ao ato de recebimento ou rejeição da peça acusatória se este não contiver fundamentação”, concluindo, ao final, que “[N]esses procedimentos, inafastável o cumprimento do dever de fundamentar, inclusive por interpretação infraconstitucional” [4].

Por sua vez, ao falar sobre o dever constitucional de fundamentar as decisões judiciais, Luis Gustavo Grandinetti Carvalho ensina que

“O Tribunal Constitucional da Espanha, segundo Antonio M. Lorca Navarrete, resumiu a importância da fundamentação das decisões judiciais: a motivação é essencial para o controle da atividade jurisdicional pelos tribunais superiores e pela sociedade; a motivação deve visar ao convencimento das partes processuais acerca da correção da decisão; e, finalmente, é indispensável para o exercício efetivo do direito de defesa, já que a parte prejudicada deve conhecer as razões da decisão para melhor refutá-las. A importância de transcrever a elaboração feita pela Corte espanhola se justifica pela similitude da norma constitucional daquele País com a nossa”.5

É importante lembrar que o dever de fundamentação das decisões judiciais foi incluído na Constituição de 1988 pela Emenda Constitucional 45 de 2004, que promoveu a chamada “Reforma do Judiciário”. Dentre as preocupações do constituinte reformador, estava a de criar mecanismos por meio dos quais os juízes pudessem ser fiscalizados, pois o Poder Judiciário era, dentre os demais Poderes da República, “o único infenso à fiscalização”6.

Percebe-se, portanto, que o dever de fundamentar as decisões judiciais possui uma função política, pois tem como destinatários não “apenas as partes e o juiz competente para julgar eventual recurso, mas quis-quis de populo, com a finalidade de aferir-se em concreto a imparcialidade do juiz e a legalidade da justiça das decisões”7.

Neste cenário, o dever de fundamentação das decisões representa não só uma garantia ao indivíduo denunciado de que seus argumentos foram apreciados, mas uma forma de controle da atividade judicial pela sociedade8 e pelo próprio Estado, cujo interesse é o de que “sua vontade superior seja corretamente aplicada”9.

Assim, exigir que o ato que recebe a inicial acusatória seja fundamentado garante não só um contraditório efetivo, como também afasta o risco de decisões arbitrárias e de recebimento de denúncias infundadas, não deixando dúvidas, por conseguinte, sobre a legitimidade da ação penal.

Isso, por seu turno, beneficia tanto a sociedade, uma vez que não se dará início a processo fadado ao fracasso, deixando de se onerar a máquina pública, quanto o denunciado, haja vista os reflexos negativos de um processo criminal.

Ademais, cumpre ter em mente que uma importante alteração promovida pela reforma de 2008 foi a inclusão da justa causa como condição da ação penal10. Aury Lopes Júnior, ao citar Maria Thereza Rocha de Assis Moura, define a justa causa como um “verdadeiro ponto de apoio (topos) para toda a estrutura da ação processual penal, uma inegável condição da ação penal, que, para além disso, constitui um limite ao (ab)uso do ius ut procedatur, ao direito de ação”11.

Ainda sobre a justa causa, continua o autor:

“Considerando a instrumentalidade constitucional do processo penal, conforme explicamos anteriormente, o conceito de justa causa acaba por constituir numa condição de garantia contra o uso abusivo do direito de acusar.

A justa causa identifica-se com a existência de uma causa jurídica e fática que legitime e justifique a acusação (e a própria intervenção penal).

Está relacionada, assim, com dois fatores: existência de indícios razoáveis de autoria e materialidade de um lado e, de outro, com o controle processual do caráter fragmentário da intervenção penal”.12

Se a justa causa é uma garantia contra o uso abusivo do direito de acusar, só se terá certeza de que não se está diante de uma ação penal abusiva, se o juiz, ao receber a denúncia e após a manifestação do acusado, esclarecer os motivos que o levaram a reconhecer a justa causa naquele caso concreto.

Há de se reconhecer que não há sentido em exigir que a acusação demonstre, na denúncia, “a existência de um suporte probatório mínimo, tendo por objeto a existência material de um crime e a autoria delitiva”13, sob pena da rejeição de sua inicial, e, por outro lado, não criar mecanismos para que se garanta que o juiz analisou, detidamente, a existência desta condição da ação. E este mecanismo é nenhum além da exigência da fundamentação do recebimento da peça acusatória.

Assim, a fundamentação do ato pelo qual o juiz recebe a inicial acusatória deve ser reconhecida como uma das condições essenciais hábeis a garantir a legitimidade da ação penal, pois somente ela é capaz de demonstrar que a manifestação do acusado foi considerada pelo magistrado no momento da decisão acerca da justa causa da ação penal.

À vista de todo o exposto, tendo restado claro que, para ser fundamentada, uma decisão não precisa ser extensa (é possível, de forma objetiva, rebater os argumentos das partes a fim de deixar evidenciado de que todos foram considerados na conclusão do juiz), verifica-se que a decisão proferida pelo Min. Schietti nos autos do HC 523.480/MG abre caminho para a necessária rediscussão da necessidade de fundamentação da decisão que recebe a denúncia, principalmente diante da nova introduzida no §2º do art. 315 do Código de Processo Penal.

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1 Como exemplo: “Conforme reiterada jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e na esteira do posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal, consagrou-se o entendimento de inexigibilidade de fundamentação complexa no recebimento da denúncia, em virtude de sua natureza interlocutória, não se equiparando à decisão judicial a que se refere o art. 93, IX, da Constituição Federal" (AgRg no AREsp 999.859/SP, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 7/2/2019, pub. em 15/2/2019).

2 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Processo penal e Constituição: princípios constitucionais do processo penal. 6. ed., rev. e ampl., São Paulo: Saraiva, 2014, p. 232.

3 Idem.

4 GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o pacto de São José da Costa Rica. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 221.

5 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Processo penal e Constituição: princípios constitucionais do processo penal. 6. ed., rev. e ampl., São Paulo: Saraiva, 2014, p. 232.

6 Conforme se extrai da exposição de motivos da referida EC (disponível em http://www.camara.gov.br/).

7 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 26ª edição, revista e atualizada. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 74.

8 Prudente trazer a explicação de Didier (2010, p. 290) acerca a dupla função do dever de motivação das decisões judiciais: “A exigência da motivação das decisões judiciais tem dupla função. Primeiramente, fala-se numa função endoprocessual, segundo a qual a fundamentação permite, que as partes, conhecendo as razões que formaram o convencimento do magistrado, possam saber se foi feita uma análise apurada da causa, a fim de controlar a decisão por meio dos recursos cabíveis, bem como para que os juízes de hierarquia superior tenham subsídios para reformar ou manter essa decisão. (…) Fala-se ainda numa função exoprocessual ou extraprocessual, pela qual a fundamentação viabiliza o controle da decisão do magistrado pela via difusa da democracia participativa, exercida pelo povo em cujo nome a sentença é pronunciada. Não se pode esquecer que o magistrado exerce parcela de poder que lhe é atribuído (o poder jurisdicional), mas que pertence, por força do parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal, ao povo”.

9 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Processo penal e Constituição: princípios constitucionais do processo penal. 6. ed., rev. e ampl., São Paulo: Saraiva, 2014, p. 232.

10 “[...] para o recebimento da denúncia ou queixa, já determinavam a doutrina e a jurisprudência que se pudesse verificar justa causa, sob pena de trancamento da ação penal, nos termos do art. 648, I, do CPP. Hoje, aquilo que se tratava como condição implícita da ação penal torna-se requisito de admissibilidade da acusação, por vício formal, não faz coisa julgada material, mas meramente formal” (TRIGUEIROS NETO; MONTEIRO, 2009, p. 174).

11 LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 240.

12 Idem.

13 BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 8ª ed., rev., atual. e ampl., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 208.

Érika Thomaka
Assessora no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro

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