Migalhas de Peso

Memórias póstumas da penhora online

O que você acha que o executado faz quando é intimado para pagar o débito (arts. 523 e 827 do CPC)?

16/3/2023

Valendo-me do mesmo pessimismo, indiferença, ironia, acidez e humor cáustico contido na narrativa de Brás Cubas na obra prima de Machado de Assis devo dizer que a penhora on line, depois de agonizar por alguns anos como relatei aqui em outubro de 20161, enfim está morta, e, a causa do seu óbito não foi pneumonia, mas sim, suponho, a exegese dada ao artigo 854 do CPC.

À semelhança da narrativa de Brás Cubas, tal interpretação pode ser qualificada de miseravelmente sarcástica porque ao invés de beneficiar a execução instaurada no interesse do exequente (art. 797 do CPC) já que o instituto serve justamente para isso, faz, ironicamente, exatamente o inverso: serve para beneficiar o executado.

É difícil de acreditar num primeiro momento, mas o que matou a penhora on line foi, provavelmente, a antítese da razão da sua existência, isto é, o que deveria ser uma técnica voltada à efetivação do direito exequendo, atualmente presta-se exatamente para o contrário: funciona como se fosse uma placa em neon bem chamativo de advertência ao executado do futuro que se avizinha. Seria como dizer para o executado no momento em que ele é intimado/citado para pagar “voluntariamente” o que deve: “se você não pagar neste prazo o próximo passo será a realização da penhora eletrônica dos seus ativos financeiros”.

O que esperar do executado que recebe este ostensivo “aviso prévio”?

Esta pergunta poderá causar algum incômodo a cada um de vocês que decidir dedicar o seu tempo lendo este texto. Obviamente que não pedirei que você se coloque na posição do executado para imaginar o que você faria se estivesse no lugar dele, mas apenas que responda, secretamente, para si mesmo, o que você acha que o executado irá fazer ao ser intimado/citado para pagar no prazo legal, sabendo ele que se não pagar poderá sofrer a penhora eletrônica dos seus respectivos ativos financeiros.

Admitamos as seguintes hipóteses para facilitar sua resposta: (a) o executado irá fazer o pagamento voluntário do valor total ou parcial e nesta hipótese manterá intacta a sua conta bancária; (b) o executado não irá pagar e manterá intacta a sua conta bancária; (c) o executado não irá pagar e usará este prazo para, com toda tranquilidade do mundo, esvaziar a sua conta bancária.

Quem respondeu ou pensou na letra “C” acertou precisamente.

Em pesquisa de campo realizada numa Vara Cível da Comarca de Vitória/ES pelo meu excelente ex-aluno e ex-orientando Rafael Silveira (utilizada na sua dissertação de mestrado que versava sobre o “inadimplemento processual” do prazo dos arts. 523 e 827 do CPC) constatou-se o óbvio: 98.8% dos executados que são intimados/citados não pagam nem um centavo no prazo legal.

Infelizmente não foi possível saber se além de não pagar usaram o referido prazo para esvaziar as contas bancárias, ou se as contas já estavam vazias antes disso, afinal de contas vivemos num país onde mais da metade da população ativa está com nome “sujo” e ou superendividado.

Bem, o fato é que após o escoamento do prazo sem qualquer pagamento, em todos os 98.8% dos casos a penhora on line tentada em seguida o resultado foi infrutífero porque a conta se encontrava zerada. Curiosamente não era negativo o valor da conta bancária, mas zerada. Consigo imaginar com facilidade saldos negativos ou positivos, mas zerado soa-me deveras estranho.

Enfim, devaneios e pensamentos à parte, a rigor, só haveria um jeito de saber se estes executados não pagaram no prazo legal porque já não tinham ativos em conta bancária ou se aproveitaram do prazo para esvaziá-las antes da ordem judicial de indisponibilização. A verdade mais pura é que apenas uma decisão judicial que quebrasse o sigilo bancário por algum período retroativo é que serviria para decifrar se houve (ou não) uma conduta fraudulenta.

Enquanto continuarmos a tratar a penhora on line de ativos financeiros, medida executiva típica das mais genuínas, como se fosse uma coisa de outro mundo, dando-lhe menos efetividade e força até mesmo que as famosas medidas executivas atípicas, certamente que o discurso de Brás Cubas continuará a sombrear um dos institutos que, quando surgiu, se mostrava promissor em prol da efetividade da execução.

O pior disso tudo é que o art. 854 do CPC que regulamenta a penhora eletrônica de ativos financeiros permite, sem necessidade de qualquer salto carpado mortal duplo, que se interprete o seu procedimento de forma a conceder-lhe uma identidade condizente com a finalidade a qual se propõe.

Para tanto é preciso lembrar que “considerar-se-á feita a penhora mediante a apreensão e o depósito dos bens” (art. 839) e que no art. 854 do CPC esses dois momentos (i) ato de apreensão (indisponibilidade dos ativos) e (ii) ato do depósito (transferência da quantia para a conta do juízo) estão separados pela mini impugnação do executado (art. 854, §3º), onde este poderá desfazer a indisponibilidade e impedir a concretização da penhora alegando e provando, unicamente, que há (a) excesso de indisponibilidade e/ou (b) natureza impenhorável do ativo indisponibilizado.

Feita esta lembrança não teremos dificuldade de dizer que o primeiro ato (indisponibilidade) deve ser feito sem ciência prévia do executado como diz o art. 854 e que o segundo ato (transferência para a conta do juízo) somente pode se dar após ter sido oportunizado ao executado o direito de impugnar a referida indisponibilidade alegando aquelas duas matérias.

Assim, se entendêssemos que a situação jurídica mencionada na expressão “a requerimento do exequente, sem dar ciência prévia do ato ao executado” contida no caput do artigo 854 corresponde ao momento em que o juiz despacha o requerimento inicial do cumprimento de sentença (ou petição inicial no processo de execução) seria desde este instante que o magistrado já poderia proceder à indisponibilização do valor devido.

Alguém poderia dizer, “mas se o dinheiro estiver bloqueado na conta bancária, como ele faria para “pagar voluntariamente” e cumprir a determinação do art. 523 ou 827”? Antes fosse este o problema das execuções. A resposta é simples. Bastaria uma petição do executado, no prazo do pagamento, autorizando a transferência do valor bloqueado reconhecido como devido para a conta do juízo.

Destarte, outrem poderia argumentar que isso seria uma espécie de “tutela antecipada da penhora” o que não procede, porque a penhora só se concretiza com a transferência da quantia para a conta do juiz após o prazo da mini impugnação (art. 854, §3º).

É claro que alguém poderia argumentar e dizer que os arts. 523, §3º e 829, §1º só autorizariam o início dos atos de penhora do art. 854 “tão logo verificado o não pagamento no prazo assinalado”, para usar a mesma expressão do texto legal.

Este é o argumento que naturalmente se utiliza para a realização de qualquer penhora de bens, sendo certo, por outro lado, que tal interpretação é absolutamente incompatível com a redação do art. 854, especialmente quando este diz “sem dar ciência prévia do ato ao executado”. Mais do que ciência, seria uma “neon advertência” em total descompasso com os dizeres do texto do caput do art. 854.

Ademais, não esqueçamos, que o procedimento do art. 854 é forma especial de realização penhora como tantas outras formas especiais contidas na subseção V e ss. da Seção III do capítulo IV do Título II do Livro II do CPC, sobre as quais o procedimento geral de realização da penhora só se aplica subsidiariamente.

A verdade é que ao se fixar o início do procedimento da penhora eletrônica de ativos financeiros em momento posterior ao inadimplemento processual do art. 523 e 827 isso implica em fazer com que o prazo previsto para pagar sirva para que o executado, tranquilamente, zere suas contas bancárias tornando infrutífera qualquer ordem futura de indisponibilidade.

Se é verdade que não podemos presumir que os 98.8% de executados identificados na pesquisa realmente zeraram suas contas tão logo tenham sido intimados/citados para pagar no prazo legal, também é verdade que mal nenhum faria a interpretação aqui sugerida àqueles que antes do prazo para pagar nada tinham em suas contas.

A sugestão exegética do art. 854 do CPC aqui proposta até poderia se mostrar inócua, tal como um verdadeiro “emplasto Brás Cubas” que não foi capaz de impedir que nosso personagem morresse de pneumonia porque simplesmente molhou-se na chuva. Contudo, ao menos teríamos tentado tratar com dignidade o ato executivo de penhora que serve ao exequente e não ao executado. Se não desse certo, talvez o caminho seguinte fosse pedir a quebra retroativa do sigilo bancário do executado para saber se em algum momento da existência do processo ele (devedor/executado) zerou suas contas para escapar da penhora. Pelo menos assim teríamos a certeza da causa morte da penhora on line, mas, isso é conversa para outro momento.

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1 [https://www.migalhas.com.br/depeso/246666/o-momento-de-realizacao-da-penhora-online-dos-ativos-financeiros-do-executado]

Marcelo Abelha Rodrigues
Mestre e doutor em Direito pela PUC/SP. Pós-doutorado em Direito Processual pela Universidade de Lisboa. Professor e sócio do escritório Cheim Jorge & Abelha Rodrigues Advogados Associados.

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