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O direito à saúde frente aos desafios impostos pelo Poder Público delegante nas transferências voluntárias

A exigência de regularidade fiscal de organizações sociais executoras de ações de saúde sob o olhar do Poder Judiciário brasileiro.

15/3/2023

Como forma de incentivar a execução de ações de interesse recíproco e de projetos que ele não pode executar diretamente por conta da distribuição de atribuições entre os entes da Federação, o Poder Público faz uso do previsto sistema de cooperação entre entes federados e pessoas jurídicas a eles vinculadas: as transferências voluntárias.

Definidas pelo art. 25 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), as Transferências Voluntárias consistem na entrega de recursos financeiros a outro ente da federação, a título de cooperação, auxílio ou assistência financeira, que não decorra de determinação constitucional, legal ou os destinados ao Sistema Único de Saúde (SUS).

No Brasil, uma média de 10 bilhões anuais de Emendas Parlamentares são investidos em transferências voluntárias1.

A área de saúde, desde a aprovação da Emenda Constitucional 86/15 (Orçamento Impositivo), recebe grande parte do orçamento. Isso porque metade do percentual previsto para as emendas individuais ao projeto de lei orçamentária dever ser destinada a ações e serviços públicos de saúde (art. 1,  Item III, § 9º,  e §11 da Emenda Constitucional 86/15).

Dessa forma, organizações da sociedade civil (OSC), entidades privadas sem fins lucrativos, executoras de ações de saúde, à exemplo das santas casas, hospitais filantrópicos, centros de saúde especializados, ao serem destinatários dos recursos públicos por meio das referidas transferências, estarão sujeitas a prestar contas de sua boa e regular aplicação.

Antes disso, para estarem aptas a formalizar com o ente público o instrumento que disciplina os repasses, tais entidades devem atender inúmeras condições, dentre as quais, estarem adimplentes com o pagamento de tributos, de contribuições previdenciárias, FGTS, além de demonstrarem regularidade de Prestação de Contas no tocante a recursos públicos anteriormente recebidos.

Pelo menos são essas algumas das exigências firmadas pela Portaria Interministerial 414, de 2020, que estabelece normas para execução do decreto 6.170, de 25 de julho de 2007 (Dispõe sobre as normas relativas às transferências de recursos da União mediante convênios e contratos de repasse, e dá outras providências), relativamente a pretensa celebração de convênios e contratos de repasse por parte de organizações da sociedade civil com o ente público federal.

Sem a demonstração certificada de regularidade fiscal nos diversos âmbitos federados de tributação, as organizações da sociedade civil estão sujeitas a ter a inadimplência apontada nos Cadastros Informativos de Créditos não Quitados, à exemplo do CADIN e CEPIM e, por conseguinte, lograrem-se impedidas pelo próprio poder Público de celebrar o instrumento que viabilizaria o repasse dos recursos públicos.

O que decorre de tal impedimento, entretanto, ultrapassa os interesses das partes acordantes. De um lado, ao cabo, tem-se o interesse do ente tributante na arrecadação de tributos e, de outro, o interesse pela prestação e manutenção de relevante serviço público de saúde, à luz dos arts. 196 e 197 da CF.

Prevê, a Carta Constitucional, que são de relevância pública as ações e serviços de saúde, devendo sua execução ser feita diretamente pelo Poder Público ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado, num tempo em que a saúde também é assentada como um de direito de todos e dever do Estado.

No caso em que se inviabiliza as organizações da sociedade civil de conveniarem com o Poder Público sob o rigor defasado de portarias administrativas aliadas ao ente tributante, debilita-se a eficácia da própria lei constitucional.  

Isso porque, frequentemente, o objeto de tais convênios preveem a aquisição de Equipamentos e Materiais Permanentes para Atenção Especializada em Saúde destinados a equipar e incrementar as santas casas, hospitais, centros de especialidades que se dedicam,  inclusive, a atender recorrente demanda da população que socorre-se do Sistema Único de Saúde (SUS).

Atenta a esta demanda social, a própria legislação federal tem flexibilizado a exigência regularidade fiscal de tais entidades nas hipóteses em que os repasses se destinem à prestação de serviços e ações relativas à saúde, o que notadamente revela um legislador meditativo sobre os interesses envolvidos e predisposto a atender esses interesses em detrimento da arrecadação. Observe-se os artigos 25, § 3º da lei Complementar 101/00, e art. 26, § 2º, da lei 10.522/02.

No âmbito do Poder Judiciário brasileiro, a quem compete detido controle de legalidade dos atos administrativos da Administração Pública, tem sobressaído um olhar lúcido sobre a problemática das entidades hospitalares filantrópicas que, por atos administrativos do próprio Poder Público, remanescem impedidas de celebrar convênios que viabilizam a execução de projetos que ele próprio lhes delega.

Nesta seara, diante do ato administrativo impeditivo das partes conveniarem, a despeito da pendência de demonstração de regularidade fiscal e de prestações de contas por parte da entidade convenente, destaca-se a preponderância da manutenção da prestação de relevante serviço público de saúde, principalmente diante da grave situação de saúde pública vivenciada pelo Brasil.

A esse respeito, acertam os Tribunais de Justiça brasileiros ao replicarem a inteligência segundo a qual “o impedimento à celebração de convênios é materialmente tautológico: i) pois que o Estado recorre a entidades assistenciais sem fins lucrativos para operacionalizar a prestação de serviço público originalmente sob sua responsabilidade, ii) suprime-lhe as verbas necessárias para tal fim, e, ato contínuo, e, contraditoriamente, iii) utiliza-se desta circunstância para efetivamente obstar repasses, em prejuízo à população que, de início, dependia do serviço delegado e, neste ínterim, restará desatendida (TRF 3. AI0023124-31.2016.4.03.0000 . 3ª Turma. Relator: Desembargador Federal Carlos Muta. e - DJF3 Judicial 1 DATA: 21/7/17) .

Tal ato impeditivo do Poder Público, verdade é, que materializa oposição de seu poder-dever de fiscalização e arrecadação tributária ao seu próprio poder-dever de garantir, coletivamente, o direito constitucional à saúde, o qual tem, por sua vez, tutela albergada na celebração do convênio pretendido pela entidade hospitalar filantrópica.   

Sob essa luz, desvela-se sensato estabelecer precedência ao direito fundamental em questão, o direito à saúde. Isso, não só em razão de sua hierarquia normativa, como, também, por força de um juízo principiológico de proporcionalidade que deve nortear a atuação estatal. Não é razoável, tampouco proporcional, preferir o interesse de arrecadação do ente tributante sob o escopo da retenção de recursos públicos destinados a amparar a coletividade de direito fundamental.

Como bem elucidou o douto magistrado Roberto Lima Campelo da Justiça Federal da 3ª Região, cujo pedido de tutela de entidade filantrópica estava sob seu crivo2, “de fato, a restrição de entidades em cadastros públicos é medida indireta de exigência de conformidade daquelas com a legalidade. O propósito não é, de fato, reter recursos destinados à saúde, mas evitar que o erário seja vertido em favor de entidades que operam irregularmente”.(...) Reter recursos públicos nesse cenário se assemelha a sanção política, o que não pode ser tolerado.

E mais, ponderou o julgador: “(…) no conflito entre o interesse da arrecadação de tributos e da manutenção da prestação de relevante serviço público de saúde, resta evidente que, no caso concreto, este deve prevalecer sobre aquele, principalmente diante da grave situação de saúde pública vivenciada pelo Brasil e a região do oeste paulista, em que cada dia mais são crescentes os casos de Covid-19 e a necessidade de internação dos usuários do SUS nas instituições de saúde, muitos deles com a utilização das unidades de terapia intensiva”.

Atente-se para que esse juízo é totalmente compatível com as inúmeras medidas legislativas e orçamentárias adotadas pelo Poder Público, desde meados de 2020, para o combate à pandemia, as quais mitigaram inúmeras outras restrições administrativas para o repasse de recursos destinados a tal finalidade.

______________

1 Entrevista de Rosana Pereira, multiplicadora do SICONV – Plataforma+BRASIL, em 13 Set, 2021.

2 Processo 5002629-59.2022.4.03.6113 – O escritório Santos Perego & Nunes da Cunha Advogados Associados patrocina a causa, conduzida pelos sócios Rodrigo Santos Perego, Maria Luísa Nunes da Cunha e a Advogada Cynara Almeida Pereira . Leia a decisão.

Cynara Almeida
Advogada do escritório Santos Perego & Nunes da Cunha Advogados Associados.

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