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Responsabilidade tributária dos sócios

A dissolução irregular sem comunicação desse fato ao fisco pode, quando muito, configurar infração acessória punida com imposição de multa pecuniária, desde que haja expressa previsão legal nesse sentido.

14/3/2023

A responsabilidade tributária dos sócios de sociedades está disciplinada nos arts. 134 e 135 do CTN.

Nenhum desses dispositivos tem merecido interpretação que deveria ser dada pela jurisprudência de nossos tribunais, que vêm inovando a legislação positivada.

Examinemos sucintamente cada um desses dispositivos do CTN.

A responsabilidade subsidiária do sócio.

A respeito dispõe o art. 134 do CTN:

“Art. 134. Nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, respondem solidariamente com este nos atos em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis:

[....]

VII - os sócios, no caso de liquidação de sociedade de pessoas.”

Como se vê da lapidar redação do art. 134, a responsabilidade aí referida difere da responsabilidade solidária regulada pelo Código Civil, em que cada um responde, de per si,  pela dívida total.

Setores da doutrina especializada têm criticado essa norma do CTN, sustentando necessidade de interpretá-la segundo o direito comum.

O equívoco desse posicionamento é manifesto.

O legislador tributário não está vinculado a conceitos e definições do direito civil fora das hipóteses do art. 110 do CTN.

Com efeito, prescreve o seu art. 109:

“Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários.”

Realmente, o legislador alterou parcialmente o conteúdo da responsabilidade solidária do sócio, que só responde de forma subsidiária, isto é, na impossibilidade do cumprimento da obrigação tributária principal pelo contribuinte. A norma se refere à impossibilidade de exigência, mas, a exigência será sempre possível, embora o cumprimento da obrigação nem sempre seja  possível. É a primeira observação.

Em segundo lugar, essa responsabilidade subsidiária só se verifica na hipótese de liquidação da sociedade pessoas, como expresso está no inciso VII retrotranscrito.

Em terceiro lugar, essa responsabilização solidária e subsidiária só pode ser imputada a sócio que efetivamente tenha intervindo na situação configuradora do fato gerador da obrigação tributária, por ato comissivo ou omissivo.

Entretanto, a jurisprudência de nossos tribunais tem imputado a responsabilidade tributária a sócios pelo simples fato de figurarem como tais nos atos constitutivos da sociedade.

Na inicial da execução fiscal os sócios figuram no polo passivo sem ao menos ter seus nomes consignados na CDA. Essa ilegalidade vem sendo perpetrada pelo fisco e pelos tribunais que interpretam literalmente o inciso II, do art. 124 do CTN comentado em artigo anterior.

Responsabilidade do sócio por substituição

A respeito dispõe o art. 135 do CTN:

“ Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:

I - as pessoas referidas no artigo anterior;

II - os mandatários, prepostos e empregados;

III - os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.”

Trata-se de caso de responsabilidade por substituição, isto é, os infratores mencionados nos incisos I a III respondem pelos créditos tributários substituindo o contribuinte. Aqui o equívoco da jurisprudência é bem mais grave.

Como se verifica do caput do 135, somente os créditos tributários resultantes de atos praticados com excesso de poderes, infração de lei, contrato ou estatuto acarretam a responsabilização pessoal do sócio ou administrador.

Exemplifiquemos para maior compreensão:

a) um determinado administrador tem a liberdade de autorizar operações comerciais de até R$ 10.000.000,00 conforme previsão nos atos constitutivos da sociedade. Entretanto, ele resolve exceder os limites de sua atribuição ordenando uma operação no valor de R$ 20.000.000,00. O crédito tributário que resultar dessa operação será de responsabilidade daquele administrador (excesso de poderes);

b) um determinado sócio ou administrador resolve promover o contrabando ou descaminho. O crédito tributário decorrente do contrabando ou descaminho será de responsabilidade do citado administrador, sem prejuízo de respectiva sanção penal (infração de lei);

c) finalmente, o sócio de uma sociedade que se dedica exclusivamente à compra e venda de calçados resolve explorar a atividade de compra e venda de gados. O imposto devido por essa operação atípica é de responsabilidade daquele sócio (infração de contrato social).

Apesar a solar clareza do dispositivo sob comento, a jurisprudência de nossos tribunais tem responsabilizados os sócios por créditos tributários preexistentes à prática de atos excessivos ou infracionais.

O que é pior, na hipótese de dissolução irregular de sociedade – assim entendida o fato de a empresa não se encontrar no local mencionado na inscrição cadastral, sem comunicação ao fisco do novo endereço – a jurisprudência do STJ caminhou no sentido de redirecionar a execução para o sócio-administrador (Ag. Resp. 1127936, Dje 5-10-2009). O mesmo redirecionamento acontece no caso de insolvência sem o pedido de quebra (AgRg Ag 690633, Dj de 29/5/06)

A ilegalidade dessas decisões é patente.

Em primeiro lugar, a execução fiscal só pode ser dirigida contra pessoa que figura na CDA, que espelha o controle da legalidade da inscrição da dívida.

Em segundo lugar, nenhum dispositivo permite a responsabilização do sócio sem que tenha participação na situação configuradora do fato gerador. Não há responsabilidade objetiva em matéria tributária.

Em terceiro lugar, a responsabilização prevista no art. 135 do CTN diz respeito exclusivamente ao crédito tributário resultante dos atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei ou contrato, o que claramente exclui os créditos tributários preexistentes.

Em quarto lugar, essa jurisprudência do STJ, consoante escrevemos “equivale a criar a figura de responsabilidade objetiva sem nexo causal, contrariando o preceito do § 6º do art. 37 da CF” [1]

De fato, equivale à inovação legislativa mediante o enxerto indevido do inciso IV ao art. 135 do CTN, prevendo a responsabilidade do sócio pelos créditos tributários preexistentes em caso de dissolução irregular de sociedade, assim entendido o fato de a empresa não mais se encontrar no local referido na declaração cadastral, sem comunicação posterior.

Ora, a insolvência é uma situação de fato que independe da vontade do sócio que leva ao encerramento da atividade econômica, sem poder dar baixa regular na Junta Comercial por depender de certidão negativa de tributos. Na insolvência não há novo endereço a ser comunicado, como na hipótese  de mudança de local da sociedade.

O que é pior, a dissolução irregular não constitui fato gerador de obrigação tributária.

Não é a citada dissolução irregular que faz nascer o crédito tributário, que é necessariamente preexistente.

A dissolução irregular sem comunicação desse fato ao fisco pode, quando muito, configurar infração acessória punida com imposição de multa pecuniária, desde que haja expressa previsão legal nesse sentido.

O redirecionamento da execução contra o sócio só seria possível nas hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica previstas no art. 50 do Código Civil levada a efeito mediante a observância do devido processo legal assegurando-se ao sócio a observância do princípio do contraditório e ampla defesa, de conformidade com o disposto no art. 133 do CPC.

Impõe-se a revisão da jurisprudência do STJ que criou nova hipótese de responsabilidade do sócio, sem amparo no Código Tributário Nacional, adentrando no campo do direito tributário penal, impondo a pena de pagamento de todos os créditos tributários de responsabilidade da empresa em caso de sua insolvência.

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1 Cf. nosso Direito Financeiro e Tributário, 31ª Ed. Dialética 2022, p.859.

Kiyoshi Harada
Sócio do escritório Harada Advogados Associados. Especialista em Direito Tributário pela USP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário - IBEDAFT.

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