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Os campos de concentração do Nordeste como experiência aos Direitos Humanos

Em 1915 e 1932 o Brasil já possuía campos de concentração, não pelos mesmos motivos que iria ocorrer na Alemanha nazista, mas não menos grave. Se não eram exterminados propositalmente, eram por omissão do Estado, proporcionando uma terrível experiência aos propósitos dos Direitos Humanos na gerência de calamidades desta natureza.

13/3/2023

Quando ouvimos algum relato sobre campos de concentração, inevitavelmente nosso cérebro trata de nos fornecer tudo que já ouvimos sobre o assunto, como fazem os algoritmos no mundo virtual. Nosso banco de dados alojado na nossa memória irá nos entregar somente referências sobre os horrores do terceiro reich nazista, o que é compreensível. Entretanto, temos na nossa história eventos quase idênticos na forma de operar e tratar um certo grupo social usando a mesma lógica no modo de acondicionar os indesejáveis, apenas com a diferença de que, por aqui, as pessoas não eram exterminadas propositalmente.

No ano de 1915 o Nordeste passou por um período de grave escassez de água, já começado por volta de 1913. Assim, como já ocorria quase anualmente naquela região, a seca não provocou grande alvoroço no começo. O período de estiagem daquele ano, porém, não foi como nos anos anteriores, o volume pluviométrico esperado pra que o povo pudesse nutrir alguma esperança não veio, de tal sorte que a possibilidade de morrer em decorrência da seca começou a assustar os sertanejos. 

Mas, não era a primeira vez que tal calamidade pública acontecia no Ceará por conta de grande período de estiagem. Outrora ocorrera situação semelhante, quando milhares de pessoas triplicaram a população da capital, em 1877. Estima-se que, na seca citada do século XIX,  mais de cem mil sertanejos foram pra Fortaleza em busca de socorro e sobrevivência, enquanto uma grande parte migrou pro Norte, época conhecida como o primeiro ciclo da borracha nesta região (VASCONCELO, 2022, meio virtual).

Na chamada grande seca de 1877, foi a primeira vez que o país se deparou com os horrores da catástrofe climática provocada pelas secas no norte do país, uma vez que a região ainda não era conhecida como Nordeste, nome que só veio a surgir no século XX. Há uma frase que se atribui a Dom Pedro II, que teria afirmado que não restaria uma só joia da coroa, mas que não deixaria o povo “nordestino” perecer por conta das secas. Como dito, não havia tal termo nordestino na época de Dom Pedro II, como é comum afirmarem, porém, a grave crise chegou ao seu conhecimento e teria provocado espanto e preocupação.

Já no século XX, com o advento da República proclamada no final do século XIX, o país tentava se consolidar como um Estado regido pela coisa pública, mesmo que só fosse mais um projeto de intenção que de prática. O Imperador se foi, as joias da coroa se foram e as secas voltaram com toda sua fúria, pois a natureza sempre cobra o boleto na data que ela quer. A data era 1915, pra começar. 

A longa estiagem começou a provocar baixas entre as pessoas mais vulneráveis, o que se estendeu a todas as demais famílias do sertão, quando a alimentação e a água acabaram, principalmente no Ceará. O prolongamento da estiagem foi chegando a um ponto em que as famílias sertanejas não viam outra alternativa senão procurar ajuda na capital, Fortaleza. Eram milhares de sertanejos decididos a lutar por suas vidas, tendo em vista que o Estado brasileiro não agia efetivamente pra ajudá-los. O êxodo rural se deu por meio da linha de trem, principal referência que os camponeses tinham pra se orientar em direção à capital.

Ao chegarem em Fortaleza, que vivia uma espécie de belle époque, não foram bem recebidos. As ruas da cidade se enchiam, as pessoas pediam ajuda e o poder público, agora, tinha um grande problema pra resolver, uma vez que os moradores da capital, predominantemente ricos, não gostaram nada do que viam.

Diz-se que as oligarquias locais foram ouvidas primeiro que o próprio povo flagelado. As elites da capital exigiam uma solução pra conter a grande massa de gente que lotava grandes espaços públicos como praças, ruas e largos. Tanto a chamada alta sociedade formada por médicos, políticos quanto até pela imprensa local, passaram a exigir uma medida imediata pra conter aquela multidão de flagelados  (TRAVASSOS, 2011, p. 718).

Há um conhecido discurso do deputado de Fortaleza, Ildefonso Albano, no qual relata toda crueldade daquele cenário desolador, proferido na Câmara dos Deputados Federais, denunciando a gravidade do problema ao governo federal da época (ALBANO, 1917). A classe política, como sempre, preocupava-se mais em como afastar a massa de sertanejos moribundos das vias públicas que, de fato, promover política de enfrentamento e superação do problema vivido pelo povo que agonizava.

No ano de 1915 foi criado o campo de concentração de Fortaleza em Alagadiço, nos dias atuais denomina-se bairro São Gerardo, com o intuito de manter a multidão controlada e acalmar a pressão da alta classe local. O lugar onde os sertanejos ficaram concentrados era chamado de “curral do governo”, uma referência que traduzia bem como as pessoas eram tratadas, chegando a acondicionar cerca de oito mil flagelados (CÂNDIDO, 2014, p.109).

A multidão faminta e sedenta clamava em alta voz aos guardas e agentes responsáveis pelo controle da massa, uns gritavam, outros reclamavam e tantos outros apenas choravam. Não podiam sair do local do confinamento, pois havia rígido controle, inclusive, com relação a quem causasse alguma confusão  (TRAVASSOS, 2011, p. 719). Era uma espécie de contenção de crise, mas sem uma proposta de resolução eficaz e humana.

Tal cenário de horror climático inspirou um dos maiores clássicos da nossa literatura, O Quinze, de Rachel de Queiroz. No romance, a autora relata o drama de quem viveu naquela época, traduzindo ao leitor toda a carga de sofrimento, angústia e devastação silenciosa causada pela fome e sede. Assim, os campos de concentração do Ceará, embora não tivessem o objetivo de exterminar suas presas de forma deliberada, precederam até mesmo os campos nazistas.

Se não houve atuação direta e intencional pra exterminar os pobres sertanejos alojados nos campos de concentração do Ceará, sobrou a mesma prática por omissão. Há relatos de que cerca de 400 pessoas morriam em determinados dias, o que não possibilitava o enterro individual dos flagelados. Assim, as valas comuns eram abertas e depositados os corpos tão raquíticos quanto os dos judeus anos depois.

Após a seca devastadora de 1915 veio outra em 1932, tão severa quanto a última e tão mal gerida quanto a experiência anterior. Embora ainda não houvesse uma política de atuação de Direitos Humanos, esse grave fato serve de experiência histórica pra que crises como essa possam ser melhor administradas com a valorização humana que as pessoas mereciam e não tiveram.

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CÂNDIDO, Tyrone Apollo Pontes. Proletários das secas: arranjos e desarranjos nas fronteiras do trabalho (1877-1919). 2014. Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2014. 

Famintos aglomerados na estação de Iguatu. In: ALBANO, Ildefonso. O secular problema do Nordeste: discurso pronunciado na Câmara dos Deputados em 15 de outubro de 1917. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1917.  Biblioteca Maria Beatriz Nascimento/Arquivo Nacional. OR 4472

TRAVASSOS, Lidiany Soares Mota. Uma história não contada: o campo de concentração para flagelados de 1915 em Fortaleza – Ceará. In:  An Eletrônicos do V Colóquio de História “Perspectivas Históricas: historiografia, pesquisa e patrimônio”. Luiz C. L. Marques (Org.). Recife, 16 a 18 de novembro de 2011. p. 717-730. 

VASCONCELO, Marcelo. Intolerância Regional no Brasil: uma visão histórica e jurídica. Kdp/Amazon, 2022 [meio virtual].

Marcelo Vasconcelo
Advogado, jornalista credenciado no CRP, articulista de portais, autor independente, membro da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa e da Comissão de Direitos Humanos da 3° subseção da OAB/SP.

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