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Uma análise criminológica sobre terrorismo

A carência de estudos criminológicos sobre terrorismo no Brasil torna o fenômeno refém de percepções momentâneas, subjetivas e reativas. O conceito legal é insuficiente e demanda estudos cientificamente direcionados.

13/3/2023

Os acontecimentos do dia 8 de janeiro de 2023 em Brasília têm suscitado diversos debates em torno da classificação jurídica das condutas praticadas. A terminologia adotada por diversos portais de notícias, especializados em conteúdo jurídico ou não, advogados, ministros e outros comentaristas variou principalmente entre denominar os envolvidos nos referidos eventos como “vândalos” , “golpistas”  e “terroristas” . Os debates que se sucederam envolveram mais do que a busca por uma catalogação jurídica no caso específico, mas a própria busca do senhorio do conceito de terrorismo e as suas nuances, naquilo que pode ser representado com uma “competição de narrativas”, seguindo a ideia de Jean-François Lyotard e Frederic Jameson (1984).

No cerne do debate, estão as leis 13.260/16 e 14.197/21, as quais versam sobre terrorismo e sobre a prática de atos antidemocráticos no Brasil, respectivamente. A análise dos tipos penais presentes nas referidas leis foi apresentada por diversos juristas ao longo das semanas que se seguiram. Contudo, o âmago da questão tem se limitado à análise de uma fórmula jurídica pronta, desprovida de qualquer embasamento criminológico a respeito do tema. Para entender o que é terrorismo é necessária uma leitura asséptica de ideologias, percepções subjetivas, sensoriais e reações momentâneas, e sim, buscar-se definir de forma científica e estruturada o que caracteriza o referido fenômeno.

A criminologia norte-americana e europeia há muito tempo se debruça sobre o tema, ao passo que estudos criminológicos no Brasil são escassos e muitas vezes limitados a uma elástica interseção entre a teoria do Direito Penal do Inimigo, de Günther Jakobs (Bürgerstrafrecht und Feindstrafrecht; 2004), sem qualquer abordagem efetivamente criminológica e científica sobre terrorismo propriamente dito. Criminologia é uma ciência social e não uma ciência jurídica, cuja oportuna interdisciplinaridade não isenta a adoção de métodos de pesquisa apropriados (LaFree & Freilich, 2017). A carência de uma criminologia brasileira científica e voltada a estudos qualitativos e quantitativos sobre o tema, torna o conceito de terrorismo refém de ações momentâneas, adstrito a conceitos legais que não possuem o devido embasamento e a uma pobreza técnica que acaba por torná-lo claudicante. A corroborar esse cenário, pode-se facilmente constatar a ausência, por exemplo, de pesquisas científicas sobre contraterrorismo no Brasil. Nesse ponto, atente-se que não se está considerando a simples criação de dispositivos legais sobre o tema ou a importação de modelos adotados em outros países, mas sim a existência de estudos que analisem empiricamente fatos, padrões de conduta e as suas nuances para se entender o fenômeno do terrorismo no Brasil. Buscam-se estudos direcionados, com elementos empíricos primários e concretos, e não percepções fruto de reações momentâneas e idiossincrasias políticas. A esse propósito, o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas tem frequentemente criticado a vagueza das leis nacionais de terrorismo no monitoramento do cumprimento das obrigações de direitos humanos, incluindo o princípio da legalidade, irretroatividade, não discriminação e liberdades políticas (2008).

Com efeito, o presente ensaio propõe apresentar algumas breves noções sobre o fenômeno do terrorismo à luz de estudos criminológicos e propor referenciais teóricos e científicos para refinar o tema no Brasil. Propõe-se analisar questões que envolvem o conceito de terrorismo, as ondas do terrorismo moderno e alguns breves apontamentos sobre contraterrorismo sem se adentrar no exame individual dos fatos ocorridos em Brasília.

Terrorismo: um campo minado conceitual

De acordo com Ben Saul, definir terrorismo é um “campo minado conceitual” (2019). Prossegue o professor australiano afirmando que “a luta para definir terrorismo também reflete genuínas diferenças normativas (ideológicas, filosóficas, políticas, religiosas ou morais) sobre quando a violência deve ser considerada lícita ou ilícita, justificada ou injustificada, ou legítima ou ilegítima”. Sob esse prisma, Gary LaFree (2018) observa que não existe uma definição universal do que seja terrorismo e que o comportamento que a maioria reconheceria como terrorismo muitas vezes se sobrepõe a atividades de insurgência, guerrilha, limpeza étnica, crimes de ódio, crime organizado, entre outros. Pretender conferir um conteúdo material unívoco ao terrorismo constitui uma tarefa difícil, o que não significa, todavia, permitir um flanco aberto para interpretações por analogia, extensivas, oportunistas e em desconformidade com os parâmetros elementares de um Estado Democrático de Direito.

Sobre a utilização do termo “terrorismo” propriamente dito, a sua origem parece ter entrado no discurso político no final do século XVIII para descrever o período jacobino de terror durante a revolução francesa e, desde então, o seu uso tem oscilado para estigmatizar vários tipos de violência estatal e não estatal, dependendo da perspectiva do desaprovador (Saul, 2019). A seu turno, a compreensão do que caracteriza o terrorismo em si passa por diversas distinções, mas possui alguns elementos centrais que a particularizam. Um dos pontos que está na essência do conceito é o seu “componente de choque” que intenciona gerar na coletividade, além do impacto gerado nas vítimas imediatamente atingidas (Richards, 2018). Ben Saul (2019), em uma interpretação mais restrita e objetiva, fomenta a discussão afirmando que ideia de que terrorismo consiste no uso da ameaça ou uso de violência instrumental ou coercitiva contra civis. No particular da dimensão da violência, Igor Primoratz (2009) pontua que todo uso de violência política produz algum grau de medo, porém no terrorismo propriamente dito, causar medo e, coerção através do medo, é o objetivo. Dessa forma, toda conceituação de terrorismo precisa levar em conta essa dimensão psicológica. Por outro ângulo, no que tange à dimensão da atividade terrorista em si, torna-se imprescindível distingui-la de outras formas de violência política. Nesse ponto, Gary Richards (2018) pondera que a diferença entre terrorismo e não-terrorismo não pode ser pautada na razão por qual cada grupo luta, caso contrário estar-se-ia considerando terrorismo como a violência da qual não gostamos ou não concordamos.

Nesse panorama, em relação à atividade terrorista, essa deve ser compreendida com um método particular de violência política, ao invés de ser conceituada de acordo com quem é o perpetrador ou o qual é a sua causa (Richards, 2018). Esse “método” não faz menção aos diferentes tipos de violência, mas sim ao intento por trás do ato, notadamente, o de gerar um impacto psicológico para além das vítimas imediatas. Analisar o terrorismo como um método e não como um tipo de particular de ação de um grupo ajuda a entender o fenômeno de forma mais objetiva e independentemente de quem tenha sido o seu perpetrador. Sob essa perspectiva, Richard Jackson (2011) alega que há mais mérito em descrever terrorismo do que o de conceituá-lo.

Buscando apresentar os componentes mais comuns no terrorismo, Gary Richards (2019) apresenta os seguintes elementos: violência, ameaça de violência, impacto psicológico pretendido e motivação política. À luz dessas premissas, conceitua, então, terrorismo como “o uso da violência ou ameaça de violência com o objetivo principal de gerar um impacto psicológico além das vítimas imediatas ou objeto de ataque por motivos políticos” (Richards, 2019). Tal compreensão, ciente de suas limitações e da complexidade do tema, foi construída a partir de recentes movimentos na história que passaram a pavimentar o caminho para a construção da noção de terrorismo, como se analisará na sequência. De todo modo, como se pode perceber, entender e conceituar terrorismo não se limita a uma mera subsunção mecânica a uma fórmula legal, sem adentrar em qualquer investigação sobre quais aspectos metodologicamente o caracterizam, sob pena de se incorrer em indevida banalização do conceito.

As ondas do terrorismo moderno

Os componentes acima apresentados precisam ser entendidos em um contexto histórico e evolutivo das atividades que então caracterizam a noção de terrorismo. Apesar de algumas manifestações de violência terrorista em um passado distante, entende-se que o terrorismo moderno se iniciou no final do século XIX (Weinberg, 2018). Desde os seus primórdios na Revolução Francesa, jovens radicais na Europa se engajaram ativamente em seus propósitos em obter os seus intentos por intermédio de uma “diplomacia coercitiva” (Weinberg, 2018). Diversos autores apresentam descrições temporais sobre o crescimento desse fenômeno. David C. Rapoport, professor emérito da Universidade da California, publicou em 2004 um estudo procurando sistematizar as recentes tendências, naquilo que ele definiu as quatro ondas do terrorismo moderno. De acordo com o mencionado professor, as ondas de terrorismo moderno estariam, em linhas gerais, assim distribuídas:

  1. Onda anarquista (1878-1919). Método mais efetivo para destruir convenções políticas e demonstrar que estruturas de poder podem ser desafiadas. Exemplo: assassinato do Grão Duque Sergei na Rússia em 1905;
  2. Onda anticolonial (1920-1960): Movimentos de libertação em reação às colônias europeias. O terrorismo e compreendido como insurgência e táticas de guerrilha. Exemplo: Guerra na Argélia entre 1954-1962;
  3. Onda de esquerda (1960-1990): Oposição ao capitalismo e suporte a uma revolução violenta global adotando táticas de guerrilha urbana. Exemplo: Tupamaros na América Latina);
  4. Onda religiosa (1979-2019): Táticas de martírio e suicídio, com uma característica transnacional. Exemplo: ataques de 11/9/01.

Em adição a essas ondas, Daniel Köhler (2019), pesquisador na universidade de Hamburgo, aponta para uma quinta onda de terrorismo, a qual é marcada por movimentos de extrema-direita. Estabelece como marco temporal 2011 e como principais características o crescimento da figura do “lobo solitário”, transnacionalização de audiências, transmissão em tempo real de ideologias, manifestos e influências mútuas de ataques. Apresenta como um exemplo proeminente os ataques perpetrados por Ander Breivik em 2011 na Noruega.

Tais premissas históricas não são exaurientes, isto é, não contemplam todas as manifestações e descrições de atos terroristas na história, mas são um referencial para estabelecer padrões de ações e intenções e entender o fenômeno terrorista de forma dissociada de reações impulsivas e tecnicamente irrefletidas. O Brasil possui diversos episódios em sua história que podem se amoldar às mencionadas ondas terroristas, mas que precisam ser compreendidos em uma leitura global e que estejam fundamentados em estudos científicos analíticos, conforme os componentes apontados na seção anterior. A questão que precisa ser examinada de forma direcionada e com métodos apropriados, então, é se os atos perpetrados no dia 8 de janeiro estão inseridos no contexto de uma das apontadas ondas, com todas as suas características, ou se limitaram à prática de outros crimes descritos pela legislação penal, com todas as suas respectivas peculiaridades.

Contraterrorismo

Entender corretamente terrorismo é importante para propiciar tarefas adequadas de contraterrorismo e não medidas ad hoc, reativas, politicamente direcionadas e irrefletidas. Como o conceito de terrorismo ainda não foi propriamente analisado no Brasil, isto é, de acordo com uma epistemologia local (Swaaningen, 2022; Santos, 2014), essa situação irá impactar negativamente na adoção de medidas de contraterrorismo, as quais, igualmente, torna-se mais desafiadoras diante da ausência de estudos direcionados a respeito do tema. A esse propósito, um interesse exemplo dos perigos de medidas de contraterrorismo precipitadas diz respeito àquelas que foram adotadas nos eventos que sucederam aos ataques terroristas de 11/09. Nos episódios que se seguiram aos ataques perpetrados, observou-se uma forte comoção nos Estados Unidos em busca de punir os responsáveis pelo ocorrido. Em um momento de forte clamor popular, diversas medidas foram aprovadas pelo congresso americano, entre elas, o Patriot Act, o qual possibilitou amplos poderes de investigação e a adoção das chamadas “técnicas de interrogatório aprimoradas” (Louis e Shor, 2019). Na época, apenas a deputada Barbara Lee votou contra o pacote de medidas, temendo pela adoção de medidas precipitadas que não só comprometeriam a coerência do sistema americano como também colocariam em risco a vida de outras pessoas. A assim denominada “guerra ao terror” produziu e continua produzindo inúmeras análises, narrativas e consequências. Tal abordagem trouxe o problema da “normalidade da anormalidade” (Franko, 2020). Os excessos cometidos pelo contraterrorismo empregado pelo governo americano hoje são notórios e objeto de grande repúdio, a exemplo das torturas cometidas na prisão de Guantanamo Bay.

Nessa linha, vale observar que medidas de contraterrorismo estão diretamente relacionadas à proteção de direitos humanos. Harris e Monaghan (2018) argumentam que o uso excessivo da força pelo governo visando prevenir atos de terrorismo pode acarretar na violação de direitos como a privacidade e liberdade. Sendo assim, pode-se perceber que terrorismo e contraterrorismo são dois lados da mesma moeda. A correta compreensão do primeiro refletirá na adoção de medidas legítimas e adequadas no segundo. Logo, é intuitivo perceber que o cenário brasileiro carece de estudos mais aprofundados sobre o tema, sem os quais a probabilidade de adoção de medidas inadequadas se revela extremamente alta.

Conclusão

O terrorismo é um fenômeno global, o qual tem as suas manifestações em território brasileiro. A compreensão, contudo, do que será caracterizado como terrorismo ou não é uma tarefa que demanda cautela e estudos cientificamente direcionados. Não pode ser limitada a esforços retóricos para desacreditar oponentes políticos, seja qual momento for. Além do perigo de incorrer-se em violações de direito humanos, deve-se ponderar que a história é cíclica e precedentes estabelecidos em momentos de clamor e emoção podem futuramente reverter não apenas em detrimento da população como também em indevidas represálias políticas, camufladas por uma pretensa legitimidade jurídica. Os fatos ocorridos em Brasília denotaram extrema gravidade, contudo a sua subsunção ao conceito de terrorismo não pode ser feita de forma superficial, reativa e precipitada. Tal evento pode ser sim um elemento catalisador de estudos criminológicos pertinentes para buscar-se entender como o terrorismo se desenvolve em território brasileiro, quais as suas características, expressões, composições, ausências e demais circunstâncias relevantes. A mera leitura legal é insuficiente para compreender o fenômeno. Recomenda-se, pois, o aprimoramento de estudos sociais, criminológicos e científicos voltados a entender tais aspectos e, assim, dar subsídios adequados para a prevenção adequadas de ato terroristas em território brasileiro.

Fernando Procópio Palazzo
Assessor jurídico. Mestrando em Criminologia pela Erasmus Universiteit Rotterdam e pela Universiteit Ghent e especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC.

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