No início do ano, o mercado e a sociedade brasileira como um todo foram surpreendidos com o que ficou conhecido como “caso Americanas”, no qual “inconsistências contábeis” anunciadas pelo CEO que havia entrado recentemente em exercício apontaram a existência de um passivo de pelo menos 20 bilhões de reais não contabilizado nas demonstrações da empresa.
O rombo, que depois foi mensurado em mais de 40 bilhões, levou uma das gigantes do varejo brasileiro à imediata recuperação judicial, com efeitos em praticamente todos os grandes bancos do país, que tiveram de provisionar a maior parte de seus créditos (com direito a prejuízo no resultado trimestral estritamente bancário do Bradesco), sem contar bancos do chamado “Middle market” (como o ABC do Brasil e Daycoval), fundos imobiliários (MXRF, LVBI, GGRC entre outros), locadores de imóveis de varejo, e, sobretudo, diversos investidores pessoas físicas que foram afetados diretamente pela compra de títulos de dívida que até então eram considerados de baixo risco (“risco Americanas” – a Fitch classificava a empresa com crédito “AA+”, posteriormente a rebaixando para “CC”, ainda antes do pedido de recuperação judicial), ou indiretamente pelo investimento em fundos com risco supostamente baixo que possuíam entre seus ativos o crédito privado da empresa (“Nu reserva”).
O que causou ainda maior surpresa foi o fato de que a empresa era uma SA, com capital aberto e negociado em bolsa, demonstrações publicadas periodicamente, fiscalizada pela CVM, auditada por uma das “Big Four” – as 4 maiores empresas de contabilidade com reputação a nível global – e vista como opção ótima de investimentos por diversos fundos com enorme expertise e tradicionalmente reconhecidos, como o aqueles geridos pela mítica gestora “Verde” e pela “Moat” que tinha diversos de seus veículos de investimento expostos à empresa.
Após o ocorrido diversas análises tentaram verificar se, ex post factum, era possível encontrar indícios da mencionada inconsistência contábil ao longo dos anos, e, apesar de serem apontadas supostas suspeitas – como o fato de que a empresa produziu de lucro no primeiro ano em que comprada pelo grupo de novos controladores praticamente o mesmo valor que estes pagaram pelo total de seus ativos -, a grande maioria dos analistas se rendeu à hipótese de que fatos como estes são de muito difícil constatação – como no também relativamente recente caso da empresa “IRB” e sua querela contábil com o fundo “Squadra” -, e estão muito além da capacidade de análise do investidor comum – e muitas vezes, como se demonstrou, do próprio profissional.
Em síntese, quando os documentos envolvem dinheiro grande, com possíveis conflitos de interesse entre as partes proprietárias e terceiros indeterminados, toda cautela é pouca.
Ainda recentemente causou frisson na comunidade jurídica vídeo em que o juiz de paz em uma serventia de Registro Civil no Estado de São Paulo se negou a continuar o casamento após a noiva “brincar” sobre a sua livre manifestação, declarando, em tom jocoso, não querer casar com o noivo, tendo o ato de ser adiado para a próxima data livre no referido cartório, invocando os termos do art 1538 do Código Civil que determina a não realização da audiência em caso de não ser a vontade livre e espontânea. Nesse último caso, diversos doutrinadores apontaram a correção do proceder do juiz de paz, tendo declarado José Fernando Simão que a decisão fora correta e seguira exatamente o Código Civil, e Flávio Tartuce que se tratava de um momento solene que não admitia brincadeiras.
Este último caso revelou ao final que, para certos atos, o Direito exige uma certeza da manifestação de vontade isenta de dúvidas, que não admite informalidades, nem qualquer erro, devendo ser manifestada em sua lisura e simplicidade o acordo que se quer perfeito.
Ora, é no limiar entre os dois casos que calha lembrar do tantas vezes esquecido artigo 108 do Código Civil, que determina que a venda de imóveis com valor superior em 30 vezes o maior salário mínimo no país deve sempre se manifestar por escritura pública. O que se tem em mente aqui, tal qual no art.1538 anteriormente citado no caso do casamento, é que a aquisição – ou venda – daquele que é possivelmente o maior bem do patrimônio das pessoas envolvidas não deve ficar à mercê de declarações não sérias ou impensadas, e não é por acaso que a maior parte dos imóveis das incorporadoras e construtoras é vendida ainda no lançamento, quando a venda do bem conta com toda a pressão do marketing voltado para convencer a pessoa a realizar a compra, pressão esta que, justamente a escritura pública visaria aliviar.
Ora, se se permitisse a compra e venda de tais bens de raiz através de “contratos em papel de pão” – dos quais uma das versões mais conhecidas no Brasil é a venda por “contrato de gaveta” – então muito provavelmente diversas dessas vendas correriam o risco de se ver atacadas, e mesmo futuramente anuladas, com a declaração judicial sobre a inexistência de vontade adequadamente qualificada, como no caso do juiz de paz.
Entretanto, é justamente isso que vem ocorrendo em diversos Estados do país através dos chamados “instrumentos particulares com força de escritura pública”, os quais foram novamente reforçados pela recente MP 1.162/23 que reformulou o “Programa Minha Casa, Minha Vida”. Ora, por meio de tais contratos, quando admitidos, o que se dá especialmente em relações envolvendo instituições financeiras, o poder de certificar a vontade das partes fica à mercê da instituição, oferecendo um verdadeiro “pacote completo” no qual o crédito vem junto com a “escritura”, como se não houvesse nenhuma possibilidade de conflito de interesses entre os futuros devedores e credores, que acabam ficando com o poder unilateral de controlar, em suas mãos, todas as cláusulas do contrato de financiamento e garantia, o qual, diga-se de passagem, não costuma ser de fácil compreensão para o cidadão comum.
Mas não apenas isso, muitas das instituições financeiras transferem esse trabalho a empresas terceirizadas, especializadas em formalização documental, as quais se valem, por sua vez, de prestadores de serviços como, por exemplo, motoboys, para fazer a certificação da identidade e da vontade das partes que assinam, simplesmente assim, sem qualquer capacitação, ou maiores elucidações. “Você é fulano de tal, eu sou da empresa X, assina aqui embaixo, por favor. Obrigado, tchau” e se assinou o maior passivo e de mais longa duração de uma família brasileira.
Ora, considerando que uma parte enorme das operações do mercado imobiliário se dá por meio da aquisição financiada, não se assustem se um dia um juiz corajoso resolver, como o juiz de paz do vídeo, levar a sério a possibilidade de anulação dos contratos que não tiveram sua adequada instrução e qualificação da vontade perante o consumidor.
Na verdade, considerando que esses contratos particulares não são fiscalizados por um agente estatal no momento de sua formalização, nem tampouco pelos próprios bancos, que terceirizam o serviço, e nem mesmo auditados sequer por uma “Big Four”, o risco oculto talvez seja mesmo um verdadeiro “perigo oculto”. E, nesse caso, considerando o tamanho do mercado imobiliário, estamos diante de um risco de crédito muito maior do que o das Americanas.
E a sua empresa? Tem pleno controle sobre a ausência de “inconsistências documentais” nas operações imobiliárias que pratica?