1. Não é novidade que a fase inquisitorial é revestida de elementos informativos, informações essas que são colhidas no momento da prisão em flagrante, investigação policial, provas irrepetíveis ou até mesmo de denúncia anônima. Porém, os citados elementos servem apenas para impulsionar o processo, ou seja, tais conteúdos devem ser debatidos em fase judicial para que então se torne uma prova robusta para condenar ou absolver.
2. Ao analisar o artigo 155 do Código de Processo Penal, o artigo de lei é sucinto e claro, vejamos: “O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusividade nos elementos informativos colhidos na investigação [...]” grifo nosso. Pede-se especial atenção ao que foi destacado no dispositivo supracitado, uma vez que é dever do juiz ao apreciar a prova, fundamentar a decisão com base nas provas judicializadas.
3. Mas de fato, há uma inversão do sistema acusatório, no qual é admitido no vigente processo penal uma condenação com base apenas nas provas produzidas no inquérito policial. Nesse sentido, demanda cautela quanto a admissão da denúncia anônima como única prova no processo, em especial ao delito de tráfico de drogas. Pois como se sabe, tal denúncia pode ser feita por qualquer pessoa, através de ligação ou site (disque denúncia).
4. Diante da incerteza da fonte das denúncias anônimas, é de se observar que a citada informação deve ter o máximo de cautela ao ser admitida no processo penal, uma vez que, a simples denúncia anônima é apenas o primeiro ensejo para uma futura investigação.
5. Em atenção a isso, é notório que a denúncia anônima gera um protocolo, ou seja, um número, para que a pessoa que fez a denúncia acompanhe em tempo real. Frisa-se que o protocolo (prova) da denúncia anônima, deve ser juntado ao processo, pois senão a condenação da presente ação será apenas com base na citada denúncia que nem sequer tem provas de sua existência.
6. Nesse diapasão, a Secretaria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, ressalta em seu parecer como deve ser feito a denúncia anônima, vejamos:
“[…] Em todas as ligações é garantido o sigilo e o anonimato do informante, que recebe uma senha secreta para complementar, acompanhar e cobrar, a qualquer tempo, a tramitação da denúncia junto aos órgãos responsáveis. Também, contempla a Denúncia Digital 181, através do site da Secretaria da Segurança Pública, onde pode descrever, sem se identificar, sobre o(s) fato(s) denunciado(s), o(s) local(is) do objeto da denúncia e a descrição do(s) suspeito(s). A denúncia pela Internet pode ser feita no link Denúncia Digital 181.
7. Firme nesse preceito, em que a denúncia anônima deve ser verificada e juntada nos autos com o devido número de protocolo. O legislador ao preceituar art. 5°, parágrafo 3° o Código de Processo Penal, nos ensina o seguinte: “Art. 5°. Nos crimes de ação pública o inquérito policial será iniciado: §3o. Qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal em que caiba ação pública poderá, verbalmente ou por escrito, comunicá-la à autoridade policial, e esta, verificada a procedência das informações, mandará instaurar inquérito.”
8. Logo, ao observar o dispositivo legal e o que diz a Secretaria pública do Estado do Rio Grande do Sul, é possível observar que a denúncia anônima pode ser acompanhada em qualquer tempo, sendo assim, na maioria das vezes a denúncia é repassada aos policiais via setor de inteligência. Dito isso, é dever da guarnição encaminhar a denúncia anônima ao setor de investigação, para que então se faça as devidas diligências prévias. Conforme diz o nosso artigo 5°, do Código de Processo Penal citado acima.
9. Infelizmente, os nossos Tribunais de Justiça vêm admitindo a denúncia anônima como prova solitária no processo. Diante da problemática, a indagação que se faz é a seguinte: Será que seria o fim do sistema acusatório? Essa resposta poderia ser respondida facilmente se as inovações trazidas pela Lei n° 13.964/2019, que não só expressamente adotou o sistema acusatório no art. 3°-A, como também consagrou a exclusão física dos autos do inquérito. Nesse sentido dispõe o artigo 3°-C, parágrafo 3°:
§ 3º Os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado.
10. O referido artigo está atualmente suspenso, mas de fato, traria ao processo maior imparcialidade do julgador em fase judicial, que não mais terá contato com os atos do inquérito (ou qualquer investigação preliminar). Mesmo que os Tribunais Superiores (STJ) assumam a posição que a busca pessoal com base em denúncia anônima é invalida, conforme (RHC n. 158.580/BA). As comarcas desprezam os entendimentos majoritários.
11. Devido o importante tema, cita-se o Advogado criminalista Aury Lopes Junior, senão um dos maiores penalistas do Brasil: “ A fraude reside no fato de que a prova é colhida na inquisição do inquérito, sendo trazida integralmente para dentro do processo e, ao final, basta o belo discurso do julgador para imunizar decisão”.
12. Contudo, observa-se que a prova (denúncia anônima) sozinha no processo, não pode desencadear a condenação do acusado, tornado a prova nula se admitida. Necessário lembrar, que nos processos de tráfico de drogas, as únicas testemunhas são os policiais que fizeram a prisão, salvo eventuais exceções. Afinal, é ou não o fim do processo acusatório?
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LOPES JUNIOR, Aury, Fundamentos do Processo Penal Introdução Crítica, 7a ed. São Paulo: Saraiva, 2021, cp. 3. pags 232/233;
TALON, Evinis, O criminalista. Gramado, RS: International Center for Criminal Studies, 2018. V.3. Cp 1, pags 72/73;
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Portaria MC n° 670, de 13/09/2021. https://ssp.rs.gov.br/disque-denuncia;
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. decreto-lei nº 3.689: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del3689.