Além dos meios judiciais, tradicionalmente conhecidos, têm ganhado bastante destaque os métodos privados de solução de controvérsias no âmbito do setor de energia. Pretende-se com tais métodos que haja maior eficiência e celeridade para as partes envolvidas, contribuindo, sobretudo, com a continuidade e o desenvolvimento da atividade comercial.
A discussão sobre conflitos relacionados à energia elétrica assume contornos mais relevantes quando se observam a suscetibilidade de surgimento de disputas decorrentes do processo de comercialização e sua importância para o mercado, que envolvem diversos agentes, vários contratos e uma circulação de riquezas inestimável.
Para se ter uma ideia, considerando os dados fornecidos pela própria da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (“CCEE”), atualmente existem mais de 13 (treze) mil agentes firmando contratos, das mais variadas complexidades, com relação à comercialização de energia1.
Nesse contexto, visando à resolução de divergências relativas à comercialização de energia elétrica entre os agentes integrantes CCEE, a lei Federal 10.848/042 e o decreto 5.177/043, além de criarem a própria CCEE - cuja finalidade é viabilizar a comercialização de energia elétrica -, estabeleceram que as regras para a resolução das eventuais divergências entre os agentes integrantes da CCEE serão estabelecidas na convenção de comercialização e em seu estatuto social, que deverão tratar, por sua vez, do mecanismo adequado e da convenção de arbitragem, nos termos da Lei da Arbitragem4.
A esse respeito, com a intenção de corroborar e modernizar as normas referentes à utilização da arbitragem no setor de energia, a Agência Nacional de Energia Elétrica (“ANEEL”) deu um importante passo na revisão da convenção arbitral que disciplina os conflitos decorrentes da comercialização de energia elétrica entre os agentes da CCEE, bem como aqueles instaurados com a própria entidade.
Especificamente, em 14/2/23, por meio da 4ª Reunião Pública Ordinária da Diretoria de 2023 (“4º RPO”)5, a Diretoria da ANEEL, por unanimidade, homologou a convenção arbitral aprovada na 68ª Assembleia Geral Extraordinária (“AGE”)6, para o fim específico de integrá-la na convenção de comercialização de energia elétrica, que passa a ser obrigatória a todos os agentes da CCEE e à própria CCEE, conforme o disposto no art. 44 da Resolução Normativa nº 957/20217.
Entre as principais novidades contidas na nova convenção arbitral, e que foram expressamente sublinhadas na 4ª RPO, estão:
- Pluralidade de Câmaras: a Câmara Arbitral da FGV, que anteriormente detinha exclusividade, agora terá concorrentes. Foi inserida cláusula que permite a qualquer Câmara homologada pela CCEE aderir à convenção arbitral, semelhante ao modelo que hoje já é utilizado pela Advocacia Geral da União - AGU. Essa alteração, além de trazer maior competividade, traz maior flexibilidade operacional e otimização de custos da arbitragem (cláusula 2ª);
- Convenção de Comercialização e definição de conflitos arbitráveis: em atenção à celeridade, e concedendo maior facilidade às partes, o novo texto da convenção arbitral passa a fazer referência direta à convenção de comercialização, evitando-se que, no futuro, ao revisar a convenção de comercialização, tenha que novamente revisar a convenção arbitral recém homologada (cláusula 1ª)8;
- Exceção à via arbitral para conflitos bilaterais que não repercutam nas operações da CCEE: esclareceu-se que a via arbitral não é obrigatória aos conflitos bilaterais que não afetem direitos de terceiros e não repercutam nas operações da CCEE (cláusula 1ª, §1º);
- Cobrança judicial de valores inadimplidos: ratificou-se e tornou-se expressa a utilização da via judicial pela CCEE para cobrança de valores inadimplidos por agentes ou não agentes, inclusive penalidades (cláusula 1ª, §§ 3º e 4º);
- Mecanismo de Proteção ao Mercado: permite-se à CCEE requerer ao Tribunal Arbitral então constituído a prestação de garantias idôneas nos casos em que a operacionalização da decisão venha a impactar outros agentes que não estejam envolvidos no conflito (cláusula 3ª, §2º);
- Suspeição de árbitros e redução do prazo de quarentena para ex-contratado, ex-prestador de serviço ou ex-consultor: com o intuito de ampliar o rol de possíveis árbitros a serem selecionados pelas partes, a cláusula 13 da atual convenção foi modificada no seguinte sentido: (i) o rol ali descrito passou a ser interpretado como hipótese de suspeição e não mais de impedimento, permitindo que os critérios de afastamento de árbitros seja subjetivo, ou seja, sujeitos à avaliação das partes envolvidas e (ii) especificamente para o caso de ex-contratado, ex-prestador de serviço em caráter permanente ou temporário, ou ex-consultor, o tempo de quarentena foi reduzido de 2 anos para 6 meses;
- Repositório de jurisprudência: conquanto a divulgação aos agentes da CCEE dos extratos das sentenças arbitrais já ocorra (cláusula 19), foi inserido um dispositivo que obriga as Câmaras Arbitrais a criarem um repositório público de ementas, respeitando-se as questões de confidencialidade (cláusula 16); e
- Regra de transição: determinou-se que a nova convenção é aplicável aos conflitos que sejam instaurados após a homologação da convenção arbitral pela ANEEL. Além disso, foi incluída a Cláusula 25, §2º, a qual deixa expressa que a regra prevista na cláusula 1ª, §§3º e 4º, sobre a cobrança de valores inadimplidos, é válida desde o início da vigência da convenção arbitral atual (cláusula 25).
A Diretoria da ANEEL decidiu, ainda, por unanimidade, recomendar à Superintendência de Regulação Econômica e Estudos do Mercado que realize estudo sobre a necessidade de modificação da convenção de comercialização para avaliar a participação dos agentes nos procedimentos de arbitragem, especialmente no que tange ao Ambiente de Contratação Regulado9.
Em suma, pode-se dizer que se trata, sobretudo, de um importante passo a consolidação e desenvolvimento da arbitragem no setor de energia brasileiro. As alterações, inevitavelmente, indicam uma aceitação do instituto pelo setor e, possivelmente, um aumento considerável na utilização dos mecanismos privados de solução de controvérsias pelos agentes atuantes no mercado de energia, inclusive do próprio Estado
Vale dizer, por fim, que a convenção arbitral aprovada na 68ª AGE entrou em vigor em 27/2/23, a partir da publicação do ato homologatório da ANEEL (Resolução Homologatória 3.173), conforme dispõe o parágrafo 1º da Cláusula 7ª da convenção arbitral, sendo aplicável a todos os procedimentos arbitrais instituídos a partir desta data, nos termos do parágrafo 1º da Cláusula 25ª, também da nova convenção arbitral.
----------
1 De acordo com o Balanço de 2022 da CCEE, “O número de Agentes associados à CCEE vem crescendo significativamente desde 2016, alcançando em 2022 a marca de 13.386 cadastros, um crescimento de 10,6% em relação a 2021. Dos quais 70 registros são da categoria Distribuição, 1.842 da categoria Geração e 11.474 da categoria Comercialização.” Acesso em 26.02.2023
2 Art. 4º - Fica autorizada a criação da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica - CCEE, pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, sob autorização do Poder Concedente e regulação e fiscalização pela Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, com a finalidade de viabilizar a comercialização de energia elétrica de que trata esta Lei. § 5º As regras para a resolução das eventuais divergências entre os agentes integrantes da CCEE serão estabelecidas na convenção de comercialização e em seu estatuto social, que deverão tratar do mecanismo e da convenção de arbitragem, nos termos da lei 9.307, de 23 de setembro de 1996.
3 Art. 3º - A convenção de comercialização referida no § 1º do art. 1º do decreto no 5.163, de 30 de julho de 2004, deverá tratar das seguintes disposições, dentre outras: (..) IV - convenção arbitral.
4 Em relação às regras da CCEE, é interessante anotar que há uma estipulação de cláusula escalonada, em que é obrigada a instituição da mediação de forma prévia ao procedimento arbitral (Art. 45, da Resolução Normativa ANEEL 957 de 7/12/21: “Fica obrigada a Câmara de Arbitragem a instituir processo de mediação com o objetivo de promover, no âmbito privado e de forma prévia ao procedimento arbitral, uma solução amigável de Conflitos.”)
5 Acesso em:
6 Em 3/11/21, a CCEE encaminhou à ANEEL a convenção arbitral aprovada na 68ª AGE. Após, em julho de 2022, a Superintendência de Regulação Econômica e Estudos do Mercado (SRM) e a Superintendência de Mediação Administrativa, Ouvidoria Setorial e Participação Pública (SMA) da ANEEL emitiriam, conjuntamente, a Nota Técnica nº 91/2022–SRM-SMA/ANEEL analisando a convenção arbitral e opinando pela possiblidade de homologação, pela Diretoria Colegiada da ANEEL, da convenção arbitral aprovada na 68ª AGE.
7 Art. 44. Os Agentes da CCEE e a CCEE deverão dirimir, por intermédio da Câmara de Arbitragem, todos os conflitos que envolvam direitos disponíveis, nos termos da lei 9.307, de 23 de setembro de 1996, nas seguintes hipóteses: I - conflito entre dois ou mais Agentes da CCEE que não envolva assuntos sob a competência direta da ANEEL ou, na hipótese de tratar, já tenha esgotado todas as instâncias administrativas acerca do objeto da questão em tela; II - conflito entre um ou mais Agentes da CCEE e a CCEE que não envolva assuntos sob a competência direta da ANEEL ou, na hipótese de tratar, já tenha esgotado todas as instâncias administrativas acerca do objeto da questão em tela; e III - sem prejuízo do que dispõe cláusula específica nos CCEARs, conflito entre Agentes da CCEE decorrente de Contratos Bilaterais, desde que o fato gerador da divergência decorra dos respectivos contratos ou de Regras e Procedimentos de Comercialização e repercuta sobre as obrigações dos agentes contratantes no âmbito da CCEE. Parágrafo único. A Convenção Arbitral é parte integrante desta Convenção de Comercialização, bem como obrigatória a todos os agentes da CCEE e à CCEE, conforme disposto nos §§ 5º, 6º e 7º do art. 4º da lei 10.848, de 2004.
8 “CLÁUSULA 1ª. Nos termos da legislação e regulamentação vigentes, são considerados conflitos (“CONFLITOS”) passíveis de resolução através da Arbitragem aqueles definidos na Convenção de Comercialização vigente.” Aqui, vale pontuar ainda que, nos termos do art. 4º, § 7º da lei 10.848/04 são considerados direitos disponíveis e, portanto, arbitráveis os relativos a créditos e débitos decorrentes das operações realizadas no âmbito da CCEE: “Consideram-se disponíveis os direitos relativos a créditos e débitos decorrentes das operações realizadas no âmbito da CCEE.”
9 Art. 1º, §2º, inc. I do decreto 5.163/04: “Para fins de comercialização de energia elétrica, entende-se como: I - Ambiente de Contratação Regulada - ACR o segmento do mercado no qual se realizam as operações de compra e venda de energia elétrica entre agentes vendedores e agentes de distribuição, precedidas de licitação, ressalvados os casos previstos em lei, conforme regras e procedimentos de comercialização específicos”.