O art. 129, I, da Constituição Federal reservou ao Ministério Público, o monopólio da ação penal pública, na forma da lei:
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;
Deste modo, de acordo com o referido dispositivo da Constituição Federal, o único órgão autorizado a promover uma acusação criminal, em crime de ação pública incondicionada, é o Ministério Público.
Segundo o art. 41, do Código de Processo Penal, a denúncia será o primeiro ato processual decorrente de – em regra – provas colhidas pela polícia judiciária.
“Art. 41. A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.”
Posteriormente, nos termos do art. 396, do CPP, a denúncia será enviada ao controle do Poder Judiciário que, em linhas gerais, sem adentrar no mérito da prova apresentada pela acusação, promoverá despacho de recebimento ou de rejeição sumária da acusação:
“Art. 396. Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias.
Parágrafo único. No caso de citação por edital, o prazo para a defesa começará a fluir a partir do comparecimento pessoal do acusado ou do defensor constituído.”
Isto é, a instauração da ação penal é feita através de provas colhidas sem o oferecimento do contraditório. Pode-se dizer que são indícios probatórios utilizados pelo Ministério Público para justificar a acusação criminal inicial.
Essas provas precisam ser validadas no decorrer do processo, uma vez que é vedado ao órgão judicante condenar apenas com base em provas colhidas em inquérito policial. Confira trechos da ementa do AgRg no AREsp 2.235.904/MG, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 14/2/23, DJe de 17/2/23:
“Em julgados recentes, ambas as Turmas que compõem a Terceira Seção deste Superior Tribunal de Justiça alinharam a compreensão de que "o reconhecimento de pessoa, presencialmente ou por fotografia, realizado na fase do inquérito policial, apenas é apto, para identificar o réu e fixar a autoria delitiva, quando observadas as formalidades previstas no art. 226 do Código de Processo Penal e quando corroborado por outras provas colhidas na fase judicial, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa."
Assim, consoante o referido julgado, a prova inquisitorial (sem contraditório e ampla defesa) não se confunde com a prova judicial (com contraditório e ampla defesa), pois, conforme analisado, a prova colhida em sede de inquérito policial, apenas é apta, para identificar o réu e fixar a autoria delitiva.
De acordo com o art. 127, §1º, da CF/88, o Ministério Público tem independência funcional para exercer a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis:
“Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
§ 1º - São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.”
Isto é, o Ministério Público possui independência funcional para interpretar a prova, sem a interferência de outros poderes.
Portanto, quando o Ministério Público requer a absolvição de uma pessoa, não há espaço constitucional para que o órgão judicante rejeite a pretensão Ministerial, e promova uma condenação em desacordo com o que foi postulado pelo órgão acusador.
Essa interpretação – ainda que atualmente minoritária no âmbito do STJ - tem ganhado força entre os Ministros João Otávio de Noronha e Sebastião Reis Júnior. Suas Excelências são adeptos a tese de que atividade persecutória persiste até o término da ação penal, ou seja, a prova indiciária que subsidiou a denúncia poderá ser rechaçada pela própria acusação ao final da instrução probatória.
Confira trechos de recente acórdão lavrado pela egrégia Quinta Turma:
“Nos termos do art. 129, I, da Constituição Federal, incumbe ao Ministério Público o monopólio da titularidade da ação penal pública.
Tendo o Ministério Público, titular da ação penal pública, pedido a absolvição do réu, não cabe ao juízo a quo julgar procedente a acusação, sob pena de violação do princípio acusatório, previsto no art. 3º-A do CPP, que impõe estrita separação entre as funções de acusar e julgar.
E a acusação não é atividade que se encerra com o oferecimento da denúncia, já que a atividade persecutória persiste até o término da ação penal. Assim, considero que, quando o Ministério Público requer a absolvição do réu, ele está, de forma indireta, retirando a acusação, sem a qual o juiz não pode promover decreto condenatório, sob pena de acusar e julgar simultaneamente.
O entendimento minoritário de rejeição da tese de possibilidade de condenação sem pedido expresso da acusação em alegações finais já foi defendido, nesta Corte, pelo Ministro Sebastião Reis Júnior, para quem:
“Não vejo como compreender que, depois da lei 13.964/19, quando o legislador pátrio, ao incorporar ao nosso Código de Processo Penal o Juiz de garantias (art. 3º-B), ao explicitar, em lei, a opção pelo sistema acusatório (art. 3º-A) e ao tirar do juiz o poder de interferir na opção do Ministério Público em arquivar inquéritos policiais ou elementos informativos da mesma natureza (nova redação do art. 28), dispositivos até agora vigentes, como o art. 385 do CPP, ainda continuem aplicáveis.
Mesmo que tais dispositivos (arts. 3º-A, 3º-B e 28, todos do CPP) estejam com sua eficácia suspensa por decisão do Supremo Tribunal Federal, é fato que o legislador optou claramente por limitar a atuação do juiz na ação penal a apenas julgar, deixando a cargo das partes a responsabilidade pelo impulso do processo.
Assim, sem querer me prolongar mais, tendo em vista que, como consequência do sistema acusatório que hoje vige no processo penal brasileiro, não pode o juiz condenar sem que haja pedido expresso nesse sentido pelo órgão acusador, sob pena de exercer o poder punitivo sem a necessária invocação, peço vênia à eminente Ministra Relatora e aos que pensam de forma diferente para conceder a ordem nos termos do pedido
AgRg no AREsp 1.940.726/RO, relator Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT), relator para acórdão Ministro João Otávio de Noronha, Quinta Turma, julgado em 6/9/22, DJe de 4/10/22”
Destarte, o pedido de absolvição feito pelo Ministério Público, não deve ser ignorado pelo órgão judicante, pois, de acordo com o que foi sustentado nesse estudo, a acusação não é atividade que se encerra com o oferecimento da denúncia, na medida em que a prova indiciária não se confunde com a prova judicial, e a persecução processual-criminal é monopólio do Ministério Público, e deve persistir até o término da ação penal.