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Democracia, sociedade civil e transformação digital

A adoção das práticas GovTech em prol da Ética e do Compliance no setor público, atacando frontalmente os esquemas de corrupção – ainda que em um único município, por menor que seja, produziria o necessário exemplo a ser replicado.

3/3/2023

Cerca de 2.300 anos depois de Platão postular que o Estado existe para facilitar o bem comum e que numa democracia prevalece a liberdade, Winston Churchill sentenciou que “a democracia é a pior forma de governo, salvo todas outras as alternativas que foram testadas de tempos em tempos”. Neste contexto, a redução das imperfeições de um Estado Democrático de Direito depende do amadurecimento de uma sociedade civil organizada, coeteris paribus o funcionamento das instituições públicas em suas atribuições constitucionais.

Adam Fergunson, filósofo escocês do século 18, moldou a ideia da sociedade civil como contraponto ao Indivíduo Isolado. No entanto, o entendimento contemporâneo amplia sua importância e outorga o papel de força intermediadora entre o cidadão e o Estado. Corolário, tal atribuição expõe a insuficiência do sistema tripartite proposto por Aristóteles em sua obra “A Política”, com a separação do governo nos poderes legislativo, executivo e judiciário. Tal mediação ocorre por meio de estruturas tão diversas quanto associações profissionais, sindicatos, grupos religiosos ou políticos, entidades patronais e organizações do terceiro setor. Ainda que esta abundância de vetores legitime e fortalece a sociedade civil, também gera o paradoxo entre a busca pela representatividade e a divergência dos interesses. 

Enquanto setores da sociedade civil exaurem tempo e recursos para composições que produzem benefícios ainda precários, resta espaço para imperfeições implícitas na sentença de Churchill, como a corrupção estrutural e suas consequências para bem-estar das pessoas e empresas. A equação segue incompleta pois um Estado Democrático de Direito, garantidor da liberdade, é necessário, mas insuficiente. Falta a sociedade civil organizada, como agende, de fato, mediador, moderador, e observador diligente dos três poderes.

O fenômeno da transformação digital, que fascina a iniciativa privada, será o grande aliado da sociedade civil no amadurecimento das democracias. Iniciativas capazes de impor o fim da corrupção dos agentes públicos estão em testes ou implantação em países como Coreia do Sul, Colômbia, Ucrânia, Emirados Árabes Unidos, Estônia, Rússia, França, Espanha e Estados Unidos. São ecossistemas que fortalecem a transparência dos procedimentos públicos a partir da adoção de soluções tecnológicas tão variadas quanto como blockchain e smart contracts, robotic process automation (RPA) e soluções de inteligência artificial como o Processamento de Linguagem Natural (NLP) e o Aprendizado de Máquina (ML). 

A OCDE estabelece 12 princípios para práticas de Governos Digitais: abertura, transparência e inclusão; engajamento e participação na elaboração de políticas públicas e prestação de serviços; criação de uma cultura orientada por dados no setor público; proteção da privacidade e garantia da segurança; liderança e comprometimento político; uso coerente da tecnologia digital em todas as áreas de políticas públicas; estruturas eficazes de organização e governança para coordenar; fortalecimento da cooperação internacional com governos; desenvolvimento de casos claros de negócios; reforço das capacidades de gestão de projetos de tecnologia da informação e comunicações; aquisição de tecnologias digitais; e quadro legal e regulatório.

O Índice de Maturidade GovTech (GTMI), iniciativa do Banco Mundial, mapeia 198 economias a partir de 22 boas práticas – O Brasil faz parte do grupo de 69 países com índice considerado muito alto, denominados GovTech Leaders. Por outro lado, segundo o Índice de Percepção de Corrupção coordenado pela Transparência Internacional, o Brasil está em 94o lugar entre 180 nações, com 38 pontos (vs. 12 da Somália em último lugar e 90 da Finlândia, em primeiro). Mas se o argumento deste artigo é que a Transformação Digital fortalece a sociedade civil ante às ineficiências do sistema democrático tripartite, como pode um país, como o Brasil, ser considerado líder em maturidade GovTech e conviver com práticas do setor público que instauram tamanha desconfiança na população?

No Brasil, estudos e aplicações das chamadas tecnologias da indústria 4.0 ocorrem na Receita Federal, Banco Central, Serpro, Tribunais de Contas e Ministério da Economia, entre outros. Os projetos contemplam a adoção de identidades digitais, sistemas de votação, registros públicos (nascimento, patentes, veículos), operações aduaneiras, prontuários médicos e rastreabilidade da cadeia produtiva. São iniciativas que ampliam a capacidade de controle do estado sobre pessoas e empresas, mas não favorecem a influência da sociedade civil sobre os poderes do Estado. Mas falta a vontade política para adoção das mais recentes tecnologias em projetos voltados para a mitigação dos crimes cometidos por agentes públicos ou por particular contra a administração geral, dentre os quais encontram-se o peculato, concussão, prevaricação, corrupção ativa e passiva, condescendência criminosa e advocacia administrativa.

As opções técnicas estão disponíveis, têm custo de implantação acessíveis e mão-de-obra qualificada. Todavia, é improvável que a parcela servidores que hoje alcança benefícios irregulares, frequentemente em posições de decisão, facilite uma jornada de transformação digital que restrinja as regalias angariadas da coisa pública. Ainda que as alternativas tecnológicas ofereçam a possibilidade de uma democracia menos imperfeita, cabe à Sociedade Civil avançar nos esforços de auto coordenação para que ganhe a musculatura necessária para que possa desmontar os mecanismos que corrompem o setor público. A adoção das práticas GovTech em prol da Ética e do Compliance no setor público, atacando frontalmente os esquemas de corrupção – ainda que em um único município, por menor que seja, produziria o necessário exemplo a ser replicado.

Alexandre Oliveira, Phd, Cca
Cons. de Administração focado em Estratégias e Riscos da Transformação Digital. Membro da Comissão Estratégia (IBGC). Pós-graduado Negócios Digitais e em Finanças. Doutor em Decisões Corporativas.

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