Migalhas de Peso

Merchandising, licensing e consumer products

Os bens de consumo que contam com aposições de ativos intelectuais de titulares terceiros, que funcionam como bens de produção, são produtos cuja presença e venda no mercado de consumidores/usuários finais é massificada.

2/3/2023

A Hello Kitty® estampa camisetas e mochilas. O brasão do time de futebol de sua predileção estampa canecas e chinelos. Aquela personagem do desenho animado virou jogo de videogame ou vice-versa1; ou virou uma ativação de um parque de diversões ou de um shopping-center. Você pode colecionar diversos personagens da saga Harry Potter® em Funko POP!®. Você pode montar um LEGO® de um sensacional veículo Aston Martin®, presente no filme do James Bond®. Sua filha assiste a Galinha Pintadinha na televisão, brincando com a pelúcia da galinha2. E por aí vai.

Os bens de consumo, fast-moving consumer goods (e também, por que não dizer, os serviços, i. e., “experiências”3) que contam com aposições de ativos intelectuais (a bem dizer, do valor sugestivo4 destes – produtos que incorporam, exploram, exibem, usam tais ativos) de titulares terceiros que funcionam como bens de produção, são produtos cuja presença e venda no mercado de consumidores/usuários finais é massificada5.

Num ambiente negocial em que tais ativos intelectuais - sobremaneira marcas e obras - são usual e costumeiramente apelidados de properties e franchises (num enquadramento diverso do que dogmaticamente se interpreta por estrutura de franquia, mas não radicalmente distinto)6-7, é nitidamente

perceptível as características relacionais de negócios jurídicos licenciante-licenciado, como verdadeiras «plataformas de negócio»8. Assim sendo, a seguinte análise, muito sentido apresenta:

«O mercado de licenciamento de produtos para consumo é um mercado global, com titulares de direitos de propriedade intelectual aptos a licenciar suas propriedades com relativa facilidade em múltiplos países. O número de proprietários de direitos no mercado de licenciamento de produtos para consumo é difícil de estimar, mas poderia incluir possivelmente centenas de diferentes titulares, licenciando milhares de propriedades altamente diferenciadas, distribuídas por dúzias de categorias de produtos para consumo. Dentro de cada categoria de produtos para consumo, a mesma propriedade pode ser licenciada a múltiplos licenciados, a fim de ser utilizada por uma larga variedade de produtos, como realmente é o caso da categoria de brinquedos e jogos. Além do mais, o mercado de licenciamento de produtos para consumo é caracterizado por significativas tendências da moda, com a popularidade de propriedades mudando consideravelmente com frequência ao longo de um mesmo exercício fiscal.» (Versão pública de resposta de um agente econômico a ofício exarado pelo CADE nos autos públicos do Ato de Concentração “Disney/Fox”9)

Não se trata aqui, portanto, de uma «licença/concessão» de direito de autor(/marca/direitos de personalidade) de feitio tradicional, eis que «a exploração atinente não está relacionada ao mero uso da obra por si mesmo (exploração primária)»10, configurando-se o merchandising, prima facie neste contexto11, como «exploração secundária de elementos com reputação positiva e alto valor de reconhecimento (awareness), fora de seu escopo original (inicial) de exploração, via concessão a terceiros (licença) para conexão com produtos e serviços com o objetivo de transferir a ‘imagem positiva’”12, comumente vedada a cessão de posição contratual e o sublicenciamento.

Os meios e os fins de exploração industrial das franchises desejadas, é estrito. A clássica expressão «todos os direitos reservados» bem decorre deste fato. A interação «entre properties, produtos, pessoas e lugares, que modelam como o campo do licenciamento opera e como os membros [executivas e executivos – observação nossa13] deste campo compreendem a natureza de seu trabalho e as ferramentas necessárias para ter êxito»14, é complexa15.

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1 “Entre filmes, desenhos animados e franquias esportivas, em geral há mais jogos lançados a cada ano baseados em propriedades intelectuais licenciadas do que em conceitos/concepções originais. A vantagem de se trabalhar em um jogo licenciado é que ele já apresenta um público/audiência incorporada. O revés é que pode impacar a criatividade, as ideias, os conceitos e a jogabilidade porque você tem que se preocupar em manter o alinhamento do ‘brand’, em detrimento do que seria verdadeiramente bom para o jogo. Os jogos licenciados exigem mais influência externa de terceiros e partes interessadas que desejam contribuir com o processo criativo e de desenvolvimento, como o jogo é projetado e como sua ‘property’ é interpretada.” (D. Cohen/Sergio Bustamante II. Producing Games: From Business and Budgets to Creativity and Design. Nova Iorque: Taylor & Francis Routledge Focal Press, 2012. [ebook] [tradução livre])

2 Cfr. Renata de Salvi. “Só faltam os ovos de ouro: animação da web ‘Galinha Pintadinha’ vira fenômeno cada vez mais rentável”. Revista Propaganda, set. 2012.

3 Cfr. (I) “Os consumidores de hoje exigem experiências. De Star Wars a Harry Potter, os fãs não querem apenas assistir ou ler seus personagens favoritos. Eles querem ser os personagens. Eles querem trajar as vestes de Grifinória, agitar suas varinhas e beber a cerveja amanteigada.” (Madhavi Sunder. Intellectual Property in Experiences. Michigan Law Review, v. 117, ed. 2, 2018, p. 200 [tradução livre]); (II) Igor Reis. Conversa com a executiva Marici Ferreira para o canal “EP Grupo”. Disponível em: , 2023.

4 Cfr. (I) “Quando, em direito, nos referimos ao merchandising pretendemos aludir à autorização conferida pelo titular de um bem (v.g., uma marca). que adquiriu valor sugestivo pela sua utilização numa determinada actividade, a uma outra pessoa para que esta o use - numa actividade diferente - para distinguir os seus produtos ou serviços ou para integrá-los nestes, sempre com o objectivo de promover a sua venda.” (Maria Miguel Carvalho. Merchandising de marcas: a comercialização do valor sugestivo das marcas. Coimbra: Almedina, 2003. p. 14); (II) Susana Navas Navarro. Contrato de merchandising y propiedad intelectual. Madrí: Reus, 2001.

5 Cfr. (I) “Com efeito, nenhum produto é colocado no mercado sem antes ter sido objeto dos chamados estudos de consumo, testes, que revelam ou confirmas as expectativas dos consumidores quanto a seu design, configuração ou apresentação, não sendo os produtos em causa apenas produtos de luxo, mas também produtos de consumo de massa.” (François Greffe/Pierre Greffe. Traité des dessines et modeles. Paris: LexisNexis, 2014. p. 1, [tradução livre]); (II) “As dificuldades encontradas para definir a noção de cultura também estão presentes na definição de cultura de massa, que, com a associação dos termos ‘cultura’ e ‘massa’, possui um caráter opaco e confuso.” (Myriam Bahuaud. Dessin animé, jouet: des produits dérivés. Paris: L’Harmattan, 2001. p. 43 [tradução livre])

6 Tal perspectiva é criticamente relatada por Alexis Boisson (La licence de droit d’auteur. Tese de doutorado defendida perante a Faculdade de Direito da Universidade de Montpellier, 2011. p. 21 [tradução livre]), ao tecer comentários sobre as interrelações entre os termos “licença” e “concessão”: “O termo concessão, derivado diretamente do latim clássico concessio, autorização, atribuição, está intimamente relacionado ao de licença, como é o caso, por exemplo, no direito público. Em direitos de autor, lemos frequentemente que um autor ou produtor concede seu direito de representação ou concede uma licença. Notaremos que, em nosso meio, o termo concessão é tradicionalmente preferido ao de licença, classicamente utilizado na propriedade industrial. É verdade que a concessão sugere intuitivamente um vínculo mais estreito, uma intensidade maior dos direitos conferidos. Sem dúvida, podemos ver aqui uma influência do uso do termo no direito administrativo. Entretanto, sem prejuízo de nossas conclusões subsequentes, nenhuma diferença substantiva parece emergir entre estes dois termos. Portanto, vamos usá-los como sinônimos, preferindo o termo licença. De fato, embora seja mais popular no direito de autor, o termo concessão tem uma falha importante: convida à confusão com contratos de concessão exclusiva relativos à distribuição. É verdade que os contratos de distribuição têm vínculos com contratos de direitos autorais: pode-se ser tentado a comparar o autor ao ‘produtor’ (sic), o explorador da obra ao ‘distribuidor’ (sic). Acima de tudo, veremos que os direitos autorais às vezes penetram nestas relações. Entretanto, esta polissemia oferece paralelos que são tão sedutores quanto enganosos. Por exemplo, o hábito de linguagem que tende a designar uma série de filmes de sucesso sob o termo ‘franquia’, das quais vários agentes interessados [intervenants], muitas vezes simples licenciados, realizarão obras derivadas, desenhos animados, merchandising etc.”. Especialmente sobre contratos de distribuição, vide Paula Forgioni. Contrato de distribuição. São Paulo: Thomson Reuters Revista dos Tribunais, 2014.

7 Em capítulo dedicado aos aspectos da “construção de uma franquia [building a franchise]”, num excelente livro sobre produção de animações, Catherine Winder e Zahra Dowlatabadi (Producing Animation. Boca Raton: Taylor & Francis CRC, 2019. [ebook] [tradução livre]) apontam que “saber como se conectar estrategicamente com a audiência pretendida é fator crítico para o sucesso” comercial do projeto; percebendo que, hoje, “não é mais realístico pensar em criar um projeto para uma única tela”, eis que “o produtor deve também levar em consideração aspectos promocionais, de marketing e extensão de conteúdo já no início do planejamento”, cuja proatividade (approach 360°) “é bastante esperada por financiadore distribuidores, licenciados e audiência”. Já Kathy Bowrey e Michael Handler (Franchise dynamics, creativity and the law. In: Law and Creativity in the Age of the Entertainment Franchise. Cambridge: Cambridge University Press, 2014. [ebook] [tradução livre]) atentam a que “o conceito de entertainment franchise dificilmente é articulado com precisão”, e mesmo que a noção dogmática (de direito comercial) para franquia seja “útil para a construção de uma ideia geral do conceito, ela não chega perto de capturar a complexidade” do fenômeno entertainment franchise com inteireza. Fato é que “as franquias de entretenimento mais valiosas são construídas em torno de propriedades que vão ao ar na TV [no streaming etc. – observação nossa] todos os dias [...]” (L. Shaw. “O plano da Netflix para vender brinquedos, camisetas e ingressos para shows”. Revista Licensing Brasil, ed. 80, 2021, p. 47). Um exemplo de correlação que pode ser estabelecida entre a noção dogmática-comercialista do franchising, e a noção apresentada no presente texto, é a previsão contratual de pagamento – pelo licenciado – de taxa relativa ao fundo de marketing (marketing fund) para o licenciante (taxa esta distinta de royalites e outras contrapartidas financeiras, a exemplo da garantia mínima): “A maioria dos franqueadores exige que os franqueados contribuam para um fundo de publicidade ou marketing, além dos pagamentos de royalties da franquia. Essas contribuições podem ser valores fixos em dólares ou, mais comumente, uma porcentagem fixa das receitas [revenues] da franquia.” (Ed Teixeira/Richard Chan, Franchise Strategies: The Entrepreneur’s Guide to Success. Nova Iorque: Taylor & Francis Routledge, 2022. [ebook] [tradução livre])

8 Cfr. Marcos Bandeira de Mello. Participação no 6º Fórum Internacional de Gestão de Redes de Franquia e Negócios, 2020. Disponível em:

9 Ato de Concentração Ordinário 08700.004494/2018-53 (Disney/Fox).

10 Andreas Freitag. Merchandisingvertrag. In: Urhebervertragsrecht. Baden-Baden: Nomos, 2008. p. 903 [tradução livre]

11 É pertinente atentar-se ao uso da palavra merchandising com outras significações na ciência da administração, na(s) disciplina(s) de marketing (no sentido de produtos, promoções, eventos, experiências, campanhas publicitárias etc.).

12 Andreas Freitag. Merchandisingvertrag. In: Urhebervertragsrecht. Baden-Baden: Nomos, 2008. p. 905 [tradução livre]

13 Para se ter um exemplo da atuação prática no contexto do consumer products e licensing, veja-se a descrição da vaga de “Associate Manager, Licensing Operations” na sociedade empresária Mattel, anunciada em 2023: “A equipe de Operações de Licenciamento gerencia todas as atividades globais de licenciamento de royalties, faturamento, cobranças, administração de contratos e suporte ao sistema. Gerenciamos todas as linhas de negócios, incluindo conteúdo, consumer products, eventos ao vivo e jogos. [...] Você irá: Revisar contratos de conteúdo complexos e interpretar os termos, incluindo direitos e estruturas de pagamento complexas para o sistema de licenciamento; supervisionar se a equipe tem acesso a todos os portais de terceiros e documentar os procedimentos para o processamento de faturas e royalties; desenvolver processos claros e implementá-los com a equipe de conteúdo e a equipe de processamento offshore; estabelecer parcerias com as equipes comercial e jurídica, liderando reuniões quando apropriado para a resolução de consultas; gerenciar o risco de inadimplência da Mattel e concluir as atividades de baixa quando aplicável; negociar e aprovar acordos de plano de pagamento com partes interessadas internas e externas [...]” (MATTEL. Descrição da vaga de “Associate Manager, Licensing Operations”, 2023. Disponível em: https://web.archive.org/web/20231227024435/https://jobs.mattel.com/en/job/el-segundo/associate-manager-licensing-operations/2015/58009987392)

14 Avi Santo. Configuring the Field of Character and Entertainment Licensing: The Licensing Expo and Other Sites of IP Management. Nova Iorque: Taylor & Francis Routledge, 2022. [ebook] [tradução livre]

15 Em entrevista ao Meio & Mensagem, Marcos Rosset, à época General Manager da sociedade empresária The Walt Disney Company (Brasil) Ltda, ao ser indagado sobre a atividade do setor de licenciamentos da companhia, relatou que “o licenciamento está entre os principais negócios, sem sobra de dúvida. A qualquer momento você visita o varejo e encontra pelo menos 5 mil itens. São números extraordinários. Estamos em alimentos, em higiene pessoal, papelaria, vestuário, brinquedos. O licenciamento tem uma participação também estratégica, porque ele posiciona o personagem e assegura a permanência e a exposição desse personagem diretamente com seu público-alvo. Temos aproximadamente 130 licenciados, em todas as categorias citadas, além de licenciamento direto, que nos dá uma exposição muito grande – são os casos da C&A, da Riachuelo, das Pernambucanas, do Wal-Mart e do Carrefour, que são as empresas que têm a licença para explorar nossos personagens da marca em determinadas categorias; por isso, acontece de eles terem produtos de marca própria” (E. Parente. “Disney para as massas”. Meio & Mensagem, out. 2007, p. 11). Em 2002, foi reportado no prestigioso periódico The Licensing Journal, a constituição de uma divisão de licenciamento, no Brasil, da sociedade empresária Warner Bros.: “A Warner Bros. Consumer Products anunciou que a Warner Bros. (South), Inc. representará os interesses de licenciamento da empresa no Brasil. As operações oficiais começaram no primeiro dia do ano. A Warner Bros. (South), Inc. presta serviços aos licenciados locais e regionais da Warner Bros. Consumer Products sediados no Brasil e fornece suporte aos parceiros de varejo brasileiros da empresa. O escritório se reporta à sede da Warner Bros. Consumer Products em Burbank, Califórnia, e também trabalha em estreita colaboração com outros escritórios da AOL Time Warner sediados no Brasil, como AOL, Warner Bros. Pictures, Warner Home Video, Warner Music International e Cartoon Network. O escritório de produtos para consumo da Warner Bros. (South), Inc. supervisionará todas as facetas de vendas de licenças, marketing de varejo, promoções e aspectos operacionais correspondentes no Brasil. Também gerenciará o pessoal, identificará e garantirá oportunidades de product placement, acompanhará os contratos de licenciados e supervisionará o processo de garantia da marca. No entanto, a fim de proporcionar aos licenciados e varejistas no Brasil as mesmas vantagens que os principais parceiros mundiais, a execução dos contratos e os aspectos comerciais finais continuarão a ser conduzidos nos Estados Unidos pela Warner Bros. Consumer Products.” (AA.VV. Warner Bros. settles in down South.: business briefs. The Licensing Journal, v. 22, ed. 2, fev. 2002. [tradução livre])

Otávio Henrique Baumgarten Arrabal
Graduando em Direito pela Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB).

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