Migalhas de Peso

A validade do contrato de franchising à luz do tema 725 do STF

Em 30/08/2018, o Supremo Tribunal Federal julgou o RE 958252 declarou a constitucionalidade da terceirização do trabalho, em sua ampla acepção, sem distinção de atividade-fim e atividade-meio.

28/2/2023

Em 30/8/18, o Supremo Tribunal Federal julgou o RE 958.252 declarou a constitucionalidade da terceirização do trabalho, em sua ampla acepção, sem distinção de atividade-fim e atividade-meio.

O acórdão, publicado em 13/9/19, fixou a seguinte tese:

“É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante”.

À primeira vista, o mencionado acórdão poderia parecer estranho às situações jurídicas de franchising, submetidas, inicialmente, à lei 8.955/94 e, depois, à lei 13.966/19. É que, a começar, sob o ponto de vista da natureza do liame nesta modalidade de articulação da atividade econômica, desde há muito a própria literalidade do texto legal rejeitava a existência de contrato de trabalho.

Seguindo essa linha, já constava historicamente da lei 8.955/94:

“Art. 2º Franquia empresarial é o sistema pelo qual um franqueador cede ao franqueado o direito de uso de marca ou patente, associado ao direito de distribuição exclusiva ou semi-exclusiva de produtos ou serviços e, eventualmente, também ao direito de uso de tecnologia de implantação e administração de negócio ou sistema operacional desenvolvidos ou detidos pelo franqueador, mediante remuneração direta ou indireta, SEM QUE, NO   ENTANTO, FIQUE CARACTERIZADO VÍNCULO EMPREGATÍCIO” (grifou-se).

A seguir, a lei 13.966/19 corroborou esforço maior em repelir a configuração de relação de emprego nas hipóteses de franquia:

“Art. 1º Esta lei disciplina o sistema de franquia empresarial, pelo qual um franqueador autoriza por meio de contrato um franqueado a usar marcas e outros objetos de propriedade intelectual, sempre associados ao direito de produção ou distribuição exclusiva ou não exclusiva de produtos ou serviços e também ao direito de uso de métodos e sistemas de implantação e administração de negócio ou sistema operacional desenvolvido ou detido pelo franqueador, mediante remuneração direta ou indireta, SEM CARACTERIZAR RELAÇÃO DE CONSUMO OU VÍNCULO EMPREGATÍCIO EM RELAÇÃO AO FRANQUEADO OU A SEUS EMPREGADOS, AINDA QUE DURANTE O PERÍODO DE TREINAMENTO” (grifou-se).

Frise-se que a lei 8.955, de 15 de dezembro de 1994 (Lei de Franquia) também salientava a ausência de vínculo:

“Art. 2º Franquia empresarial é o sistema pelo qual um franqueador cede ao franqueado o direito de uso de marca ou patente, associado ao direito de distribuição exclusiva ou semi-exclusiva de produtos ou serviços e, eventualmente, também ao direito de uso de tecnologia de implantação e administração de negócio ou sistema operacional desenvolvidos ou detidos pelo franqueador, mediante remuneração direta ou indireta, SEM QUE, NO ENTANTO, FIQUE CARACTERIZADO VÍNCULO EMPREGATÍCIO.” (grifou-se).

Desde o advento da nova Lei de Franquias, são iterativos os julgados que, replicando o teor do art. 1º da lei 13.966/19, negam a presença de natureza celetista nos acordos de franchising, mormente quando atendidos os seguintes pressupostos básicos: negócio edificado segundo regras de instrumento típico e, em segundo lugar, com estrito acatamento da legislação dessa modalidade de enleio civil. Embora seja crescente esse acervo de acórdãos específicos sobre franquia - que existiam e vêm se consolidando, em maior medida, desde o ano de 2019 - não deixa de merecer comentário a idoneidade do pronunciamento do STF, no RE 958252, para o aprofundamento do debate sobre a inexistência de elo empregatício nos instrumentos submetidos ao regime da lei 13.966/19.

Convém deixar patente que, nada obstante o presente estudo propor a construção de interface entre um acórdão sobre terceirização e o panorama dos negócios de franquia, não há - rigorosamente e de nenhuma maneira - terceirização de trabalho no franchising. A esse respeito, recorde-se que a terceirização se caracteriza pela delegação da oferta de serviços por uma empresa a outra especialmente organizada para tal fim. No núcleo do seu conceito, portanto, encontra-se a ideia de transferência de prestação laboral. Na terceirização, a tomadora não celebra contrato de trabalho com a prestadora, embora esta possa manter, com os seus próprios agentes, diversas espécies de vínculos, inclusive o empregatício baseado na CLT.

Não há que falar em terceirização no contrato de franquia. Conforme estabelece o art. 1º da lei 13.966/19, a cessão “ao franqueado [d]o direito de uso de marca ou patente, associado ao direito de distribuição exclusiva ou semiexclusiva de produtos ou serviços e, eventualmente, também ao direito de uso de tecnologia de implantação e administração de negócio ou sistema operacional desenvolvidos ou detidos pelo franqueador, mediante remuneração direta ou indireta”. Em outras palavras, na relação de franquia, o dono do modelo de negócio fornece ao franqueado o próprio direito de se identificar junto ao mercado por meio de sua marca; a prerrogativa de distribuição de produto ou de serviço; e também um conjunto de informações, dentre as quais se destaca o know-how da tecnologia necessária para o desenvolvimento do seu próprio negócio.

O uso do nome e a transferência de conhecimentos sobre a realização das operações de dada ação de repercussão econômica são elementos centrais nos instrumentos de franchising e peça estranha aos casos da simplória prestação de serviços mediante terceirização a pessoa delegada.

Aliás, a respeito da dicotomia entre franquia e terceirização, já teve a oportunidade de se manifestar o TST:

“O contrato de franquia visa a promover a cooperação entre empresas, proporcionando ao franqueador maior participação no mercado e ao franqueado o direito de uso da marca, da tecnologia e do sistema de gestão. Conquanto o franqueador e o franqueado somem esforços para alcançar objetivos comuns, o contrato regular de franquia caracteriza-se pela autonomia da personalidade e do patrimônio dos contratantes. Em face das características específicas expressamente previstas em lei, o contrato regular de franquia não se confunde com o contrato de terceirização de serviços, em que o tomador se beneficia diretamente da mão-de-obra dos empregados da prestadora. Não integra, pois, o objeto do contrato regular de franquia a simples arregimentação de mão-de-obra, mas a cessão de direito de uso de marca ou patente que, em regra, integram a atividade-fim do franqueador” (TST, RR-1669-70.2014.5.09.0245, 4ª Turma, Rel. Min. Alexandre Luiz Ramos, DJe 9/8/19).

Mesmo sendo díspares entre si os institutos de franchising e de terceirização, o acórdão do Supremo Tribunal Federal proferido no RE 958252, representativo de controvérsia com repercussão geral e que declarou a constitucionalidade da terceirização do trabalho, serve também para jogar luzes sobre a matéria submetida à sistemática da lei 13.966/19.

A utilidade do decisum do Pretório Excelso sobre o Tema 725, para enriquecer o debate das franquias, não se constrói por ilações. Ela se revela desde a redação da tese produzida naquela oportunidade: “É lícita a terceirização OU QUALQUER OUTRA FORMA DE DIVISÃO DO TRABALHO ENTRE PESSOAS JURÍDICAS DISTINTAS, INDEPENDENTEMENTE DO OBJETO SOCIAL DAS EMPRESAS ENVOLVIDAS, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante” (grifou-se). Como se vê, o tribunal constitucional afirmou a licitude não apenas da terceirização, mas de “qualquer outra forma de DIVISÃO DO TRABALHO entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas”.

O que está dito no verbete vai além da simples retórica ou do excesso semântico.

O Supremo Tribunal Federal sufragou não só o ponto de vista de que os instrumentos de delegação de atribuições e de fornecimento de mão-de-obra são hígidos sob a perspectiva dos valores da Constituição de 1988. Ele também foi explícito em afirmar que, por conseguinte, quaisquer outras manifestações de divisão de trabalho entre pessoa jurídicas são juridicamente válidas. Existe um silogismo na assertiva desta tese. Ela está a impor que, se os simplórios contratos de terceirização não maculam o ordenamento constitucional, tampouco são antinômicos em relação ao modelo de 1988 os outros modelos mais sofisticados de divisão de trabalho.

É neste instante que o tema 725 passa a interessar também aos casos de franchising.

Conforme afirmado no voto do Relator do RE 958252, Ministro Luiz Fux, o que a rigor se apreciava era a idoneidade das amarras interpretativas impostas ao desenvolvimento da atividade econômica pelos agentes produtivos:

“Considerando as balizas teóricas ora lançadas, tem-se in casu uma intervenção severa na configuração da atividade econômica (é dizer, a proibição de divisão de tarefas, dentro de um mesmo ciclo produtivo, entre pessoas jurídicas distintas), estabelecida por intérprete constitucional não investido de legitimidade democrática para realizar escolhas discricionárias entre as possibilidades semânticas e sistemáticas da Carta Magna, qual seja, o Judiciário. Por isso, é imprescindível submeter a medida a um crivo ainda mais minucioso e rígido para verificação de seus suportes fáticos”.

Por isso, é compreensível que, ao declarar a inconstitucionalidade da Súmula n. 331, do TST, a Suprema Corte tenha estendido o seu pronunciamento a “qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas”. Em última ratio, protegeu-se a legitimidade e a liberdade da divisão do trabalho entre pessoa jurídicas diversas.

Todas as formas contemporâneas de divisão do trabalho dotadas de juridicidade e de legitimidade constitucional, inclusive aquelas estabelecidas por meio da celebração de contratos de franchising, podem e devem ser compreendidas no rol daquilo que o Ministro Barroso, em seu voto, considerou ser “uma estratégia sofisticada e, eventualmente, imprescindível para aumentar a eficiência econômica, promover a competitividade das empresas brasileiras e, portanto, manter e ampliar postos de trabalho”.

Também é de se destacar a importância do acórdão do STF, na apreciação do Tema 725, para o aperfeiçoamento do raciocínio de que é idônea a diferenciação da regulamentação jurídica do trabalho em situações a envolver sujeitos com alta especialização ou dotados de grande capacidade intelectiva. No contraponto deste argumento está a própria origem da norma juslaboral, destinada a proteger o trabalhador vulnerável. E é importante dizer que o aresto do STF não se distancia de uma premissa inicial - e necessária - segundo a qual a legislação do trabalho tem vocação natural para proteger essa parcela de trabalhadores considerados vulneráveis. Por isso, o Ministro Marco Aurélio, recordando voto de sua própria lavra, ao tempo em que era magistrado do TST, consigna:

“A legislação trabalhista, de cunho eminentemente social, congrega direitos básicos que visam evitar enriquecimento sem causa à custa daquele que já é hipossuficiente na relação jurídica, objetivo ameaçado na contratação de serviço, cujo lucro resulta da diferença entre o que recebe da empresa-cliente e os direitos que pagam aos empregados”.

Embora o entendimento de Marco Aurélio, no STF, tenha sido vencido na composição do resultado final, o próprio Ministro teve a oportunidade de considerar:

“O Direito não deve fechar os olhos diante da realidade globalizada do mercado de trabalho do início do século XXI, altamente especializado e em constante mutação”.

O voto do Ministro Luiz Fux, por sua vez, afinado com a orientação que restou amparada na elaboração da tese, deixa patente que, no contexto contemporâneo mundial, “não há verdadeiramente uma subordinação entre as empresas que compõem o sistema produtivo, senão uma coordenação entre agentes especializados para a consecução do melhor resultado final possível ao consumidor”.

O TST, por sua vez, parece compreender o alcance abrangente do Tema 725 pois, ao desdobrar ulteriormente a leitura do que havia sido decidido pelo STF, tanto no julgamento da repercussão geral quanto em caso de reclamação posterior, assentou:

“[...] 1. FRANQUIA. ‘PEJOTIZAÇÃO’. RECONHECIMENTO DE VÍNCULO DE EMPREGO. IMPOSSIBILIDADE. TEMA 725 DA TABELA DE REPERCUSSÃO GERAL DO STF. EFEITO VINCULANTE. AMPLITUDE DEFINIDA PELO STF NA RCL 47843 DE FORMA A ABARCAR A HIPÓTESE DE ‘PEJOTIZAÇÃO’. TRANSCENDÊNCIA POLÍTICA RECONHECIDA CONHECIMENTO E PROVIMENTO.

[...] Acresce que, em relação ao Tema 725 da Tabela da Repercussão

Geral, importa observar que, em recente julgado, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela licitude da terceirização por ‘pejotização’, ante a inexistência de irregularidade na contratação de pessoa jurídica formada por profissionais liberais.

[...] Desse modo, não há mais falar em reconhecimento de vínculo de emprego em razão da existência de terceirização por ‘pejotização’” (TST, RR-1976-42.2015.5.02.0032, 4ª Turma, Rel. Min. Alexandre Luiz Ramos, DJe 21/10/22).

O “recente julgado” do STF a que faz menção o TST, posterior ao exame do Tema 725, é a apreciação de reclamação que resultou no seguinte aresto:

“CONSTITUCIONAL, TRABALHISTA E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NA RECLAMAÇÃO. OFENSA AO QUE DECIDIDO POR ESTE TRIBUNAL NO JULGAMENTO DA ADPF 324 E DO TEMA 725 DA REPERCUSSÃO GERAL. RECURSO PROVIDO.

1. A controvérsia, nestes autos, é comum tanto ao decidido no julgamento da ADPF 324 (Rel. Min. ROBERTO BARROSO), quanto ao objeto de análise do Tema 725 (RE 958.252, Rel. Min. LUIZ FUX), em que esta CORTE fixou tese no sentido de que: ‘É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante’.

2. A Primeira Turma já decidiu, em caso análogo, ser lícita a terceirização por ‘pejotização’, não havendo falar em irregularidade na contratação de pessoa jurídica formada por profissionais liberais para prestar serviços terceirizados na atividade-fim da contratante (Rcl 39.351 AgR; Rel. Min. ROSA WEBER, Red. p/ Acórdão: ALEXANDRE DE MORAES,

Primeira Turma, julgado em 11/5/20).

3. Recurso de Agravo ao qual se dá provimento” (Rcl 47843 AgR, Relatora: Cármen Lúcia, Relator p/ Acórdão: Alexandre de Moraes, 1ª Turma, DJe 7/4/22).

Os contratos de franquia, adequadamente regulamentados em lei há quase vinte anos, podem alcançar segurança jurídica ainda maior com a diuturna contribuição dos tribunais brasileiros, resolvendo controvérsias hermenêuticas a respeito de seus mecanismos. O julgamento do Tema 725 do STF, sobre a juridicidade dos casos de terceirização ou de qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, parece trazer esse tipo de oportunidade de esclarecimento e de construção da desejável unidade do ordenamento jurídico.

Alex Santana de Novais
Graduado em Direito pela UFMG. Especialista pela FGV. Mestre em Direito do Trabalho pela PUC Minas. Advogado Trabalhista desde 1994. Sócio da ASAF - Alex Santana e Antônio Fabrício Sociedade de Advogados. Conselheiro Titular da OAB Minas. Auditor do TJD - MG até 2022. Ex professor de Direito do Trabalho da PUC Minas. Autor de Diversas Obras Jurídicas.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Partilha de imóvel financiado no divórcio

15/7/2024

Inteligência artificial e Processo Penal

15/7/2024

Você sabe o que significam as estrelas nos vistos dos EUA?

16/7/2024

Advogado, pensando em vender créditos judiciais? Confira essas dicas para fazer da maneira correta!

16/7/2024

O setor de serviços na reforma tributária

15/7/2024