Migalhas de Peso

A tardia, mas necessária, efetivação do inciso IX, art. 8º, da Lei Maria da Penha

Apesar dos inúmeros avanços, a plena efetividade da legislação ainda enfrenta desafios, tanto que o Brasil segue sendo um dos países com a maior taxa de feminicídio no mundo.

28/2/2023

A educação, como a arte, é trilha permanente do engrandecimento humano, a partir do florescimento individual, para o compartilhar de saberes e valores sociais. Exatamente por sua potencialidade é direito humano e fundamental.

Nas tantas lutas para a emancipação feminina, a educação foi um dos veículos tradicionais para o desenvolvimento de habilidades, além de ter viabilizado a independência financeira e a ocupação de espaços públicos.

As professoras são a grande maioria dos docentes da educação básica, fenômeno conhecido como “feminização do magistério”1. Tal circunstância pode ser, em parte, entendida como um reflexo da naturalização do papel de assistência e cuidado2. Além disso, as mulheres são o grupo mais afetado por qualquer política ou tomada de decisão referente ao processo educacional, pois, em razão da manutenção da tradicional divisão dos papéis de gênero, ainda são, nos lares, as principais responsáveis pela educação e cuidado dos(as) filhos(as).

A emancipação3 e a formação de uma consciência cidadã estão diretamente relacionadas à educação. Contudo, as instituições de ensino também podem ser, como tem sido, “locus de reprodução dos discursos sociais mantenedores da desigualdade”4, pois são “um espaço que atua na direção e reprodução das convenções da sociedade na qual se insere”5.

O compromisso com uma educação libertadora, democrática e voltada ao exercício da cidadania, portanto, deve se refletir não só nos normativos que integram as regras e princípios do direito educacional, mas, sobretudo, em cada projeto pedagógico e plano de ensino aplicado em sala de aula.

O direito educacional é um ramo do direito público consistente em um conjunto de normas destinadas à regulação da área educacional. A prestação dos serviços educacionais, seja diretamente pelo poder público ou, mediante delegação, autorização e fiscalização, pelo setor privado, deve seguir uma série de diretrizes.

O bloco normativo constitucional regulatório do direito à educação é extenso, tendo a Constituição da República dedicado inúmeros artigos ao trato da matéria, o que já revela sua relevância jurídica. A Constituição, de igual maneira, instalou um núcleo axiológico garantidor da igualdade entre homens e mulheres, como podemos observar do texto do art. 5º, caput, inciso primeiro6, e art. 7º, XXX7.

A Lei Maria da Penha que, em 2023, completará 17 (dezessete) anos de vigência, é um dos marcos legais mais importantes, na história do direito positivo brasileiro, referente à proteção da mulher. A Lei é uma política pública, do tipo estruturada, e foi responsável por tipificar o crime de violência doméstica, estabelecendo, ainda, uma rede de acolhimento para mulheres8. É fruto da aplicação, no Brasil, das normas de direitos humanos previstas na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, da qual o Brasil é signatário.

Apesar dos inúmeros avanços, a plena efetividade da legislação ainda enfrenta desafios9, tanto que o Brasil segue sendo um dos países com a maior taxa de feminicídio no mundo10. Isso não significa que a lei não seja um instrumento de fundamental importância no combate à repreensão dos atos de violência, mas que, sozinha, não conseguirá alterar um estado de coisas consolidado no tempo e arraigado nos valores e costumes sociais.

Além do fortalecimento de medidas institucionais para a aplicação da lei, a esperança encontra-se na educação de crianças, jovens e até mesmo adultos para a paz, o respeito, a diversidade e não violência.

Essa esperança foi abraçada pela Lei Maria da Penha. Contudo, dentre as normas insertas na citada legislação e que ainda não foram objeto de políticas públicas específicas, nos deparamos com o inciso IX, art. 8º, objeto de nossas reflexões. O texto da norma segue abaixo:

Art. 8º A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais, tendo por diretrizes: 

IX - o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à eqüidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher.

Como dito, a esperança foi contemplada pela Lei Maria da Penha. Contudo, a forma como ela está sendo implementada em todos os níveis educacionais de ensino -se está- e como estão sendo avaliadas as competências e habilidades resultantes desse processo educacional para os direitos humanos, em especial, para o problema da violência contra a mulher, é uma grande questão.

A falta de uma política pública educacional específica para tornar real e efetiva a norma acima destacada se torna ainda mais grave quando pensamos no problema a partir dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) nasceram na Conferência das Nações Unidas sobre desenvolvimento sustentável no Rio de Janeiro em 2012. Em 2015 o PNUD elaborou novos objetivos e metas, o tal do ODS, com meta até 2030.

O objetivo 5 visa alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas. 

5.a Empreender reformas para dar às mulheres direitos iguais aos recursos econômicos, bem como o acesso a propriedade e controle sobre a terra e outras formas de propriedade, serviços financeiros, herança e os recursos naturais, de acordo com as leis nacionais

5.b Aumentar o uso de tecnologias de base, em particular as tecnologias de informação e comunicação, para promover o empoderamento das mulheres

5.c Adotar e fortalecer políticas sólidas e legislação aplicável para a promoção da igualdade de gênero e o empoderamento de todas as mulheres e meninas, em todos os níveis

5.1 Acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas em toda parte

5.5 Garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública. 

Grande marco para a matéria, sem dúvidas, está na lei 14.164/21, que alterou o art. 26, § 9º da Lei nº 9.394/96 (Diretrizes e Bases da Educação Nacional). Com a mudança, o citado dispositivo legal passou a prever que os conteúdos relativos aos direitos humanos e à prevenção de todas as formas de violência contra a criança, o adolescente e a mulher deverão ser incluídos e tratados como temas transversais, nos currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio.

Outra ação importante de iniciativa da lei 14.164/21 foi a instituição da Semana Escolar de Combate à Violência contra a Mulher, a ser realizada anualmente, no mês de março, em todas as instituições públicas e privadas de ensino da educação básica.

Em relação à inserção, nos currículos, dos temas relativos aos direitos humanos e à prevenção de todas as formas de violência contra a criança, o adolescente e a mulher temos uma reflexão a fazer. A transversalidade, apesar de importante mecanismo pedagógico, esbarra no destaque que o conteúdo merece possuir nos currículos.

Ademais, nem sempre é fácil medir e avaliar a forma como esses temas estão sendo implementados no cotidiano da sala de aula. Daí, por que, o papel do Estado na consolidação e fiscalização continuada dessa política é imprescindível.

Os conteúdos abordados de forma transversal não têm o enfoque necessário para se enfrentar matérias de tamanha sensibilidade e envergadura na formação de base de qualquer cidadão(ã). E, tais conteúdos, temos de concordar, não podem continuar passando despercebidos no desenvolvimento humano dos(as) brasileiros(as).

O tratamento transversal dos temas exige um compromisso da gestão e do(a) docente com sua contextualização e inserção nos planos de ensino.

A educação, que deve ser realizada de forma dialogada com as instituições de ensino, família, estado e sociedade, para ser emancipadora e formar cidadãos(ãs) para o estado de coisas que almejamos alcançar - uma sociedade livre, justa e solidária, sem preconceito de raça, classe, gênero e origem -  precisa enfrentar, de modo significativo e compromissado, problemas de base, como a violência contra a mulher.

Tal enfrentamento deve ser partilhado e assumido por todos os agentes do processo educacional. Tanto o corpo docente, como gestor, precisa, antes de tudo, estar preparado e capacitado para aplicar transversalmente esses conteúdos em suas disciplinas, seja sob o enfoque do ensino ou das atividades extracurriculares.

Como destaca Delors11:

[...] a educação surge como um trunfo indispensável à humanidade na construção dos ideais da paz, da liberdade e da justiça social.

A importância da incorporação da temática ao processo educacional reside na justificativa de que a violência contra a mulher afeta toda a sociedade, atingindo não só sua esfera privada, mas todos os espaços que ela ousa adentrar. O Brasil, por exemplo, ocupa o 142º lugar no ranking de mulheres nos espaços de poder12. Essa relação público-privada está muito mais imbricada do que podemos supor.

A violência doméstica é uma manifestação de poder para manutenção das mulheres aprisionadas nos papéis tradicionais de gênero, impedindo seu desenvolvimento igualitário e sua emancipação. A violência política é uma forma de expulsar as mulheres dos espaços públicos e de tomada de decisão.

No zig-zag de uma cultura violenta e cruel que objetifica as mulheres e tensiona-se no sentido de manter o status quo, não há saída senão através da educação de homens e mulheres para uma nova cultura voltada ao respeito, à paz, à diversidade e à igualdade. O desenvolvimento desses sentimentos morais é essencial ao nosso presente e futuro democrático13. Eis o papel não só simbólico, mas emancipatório e democrático do inciso IX, art. 8º, da Lei Maria da Penha.

Por isso, dada a importância da matéria e do processo educacional na formação de cidadãos e cidadãs mais tolerantes e imbuídos dos valores que o nosso espírito constitucional almeja realizar, identificamos ser fundamental o papel do Estado na criação, acompanhamento e avaliação de uma política pública estruturada  e específica voltada a assegurar que os comandos normativos do inciso IX, art. 8º, da Lei Maria da Penha e, por consectário, do art. 26, §9º, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, sejam plenamente efetivados. Esse passo é urgente e necessário.

___________

1 https://www.correiobraziliense.com.br/euestudante/educacao-basica/2022/02/4987233-mulheres-sao-maioria-na-educacao-basica-no-brasil.html

2 AUAD, D., Ramos, M. R. N., & Salvador, R. B. (2018). Educação, emancipação e feminismos possíveis: um olhar histórico sobre a igualdade de gênero na escola. Revista Educação e Emancipação, 10(4), p.186–208

3 Destaque a Paulo Freire, pedagogo que defendeu o caráter emancipatório da educação.

4 AUAD, D., Ramos, M. R. N., & Salvador, R. B. (2018). Educação, emancipação e feminismos possíveis: um olhar histórico sobre a igualdade de gênero na escola. Revista Educação e Emancipação, 10(4), p.186–208

5 AUAD, D., Ramos, M. R. N., & Salvador, R. B. (2018). Educação, emancipação e feminismos possíveis: um olhar histórico sobre a igualdade de gênero na escola. Revista Educação e Emancipação, 10(4), p.186–208

6 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.

7 “Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...] XXX - proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil.”

8 “Desde o momento de vigência da Lei Maria da Penha, em 7 de agosto de 2006, toda mulher brasileira passou a ter direito a um atendimento qualificado nas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, inclusão em programas de assistência social, manutenção do vínculo trabalhista, atendimento de saúde e psicossocial, medidas protetivas como afastamento do agressor e até mesmo acolhida em casas-abrigo, dependendo da gravidade de cada caso. Hoje esses direitos parecem quase um senso-comum, mas são relativamente recentes no Brasil e estão em processo constante de implementação.” Conferir https://brasil.un.org/pt-br/139554-lei-maria-da-penha-completa-15-anos-promovendo-o-enfrentamento-da-violencia-baseada-no#:~:text=Com%20a%20cria%C3%A7%C3%A3o%20da%20Lei,de%20viol%C3%AAncia%20ou%20sobreviventes%20de .

9 Conferir https://www.camara.leg.br/noticias/904861-nos-16-anos-da-lei-maria-da-penha-procuradora-da-mulher-cobra-efetiva-implantacao-da-norma/.

10 Conferir https://www.camara.leg.br/noticias/904861-nos-16-anos-da-lei-maria-da-penha-procuradora-da-mulher-cobra-efetiva-implantacao-da-norma/.

11 DELORS, Jacques. Educac¸a~o: um tesouro a descobrir. 9. ed. Sa~o Paulo: Cortez, Brasi'lia/DF: MEC; UNESCO, 2004 p.11 .

12 Conferir https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/11/brasil-e-142o-no-ranking-de-participacao-de-mulheres-na-politica.shtml

13 NUSSBAUM, Martha. Sem fins lucrativos. Por que a democracia precisa das humanidades. Martins Fontes, São Paulo, 2015.

Ana Paula Araújo de Holanda
Conselheira Federal pela OABCE. Doutora e Mestre em Direito. Professora de Direito da UNIFOR. Secretaria Geral da Comissão Nacional de Educação Jurídica da OAB. Presidente da Associação Brasileira das Mulheres de Carreira Jurídica - Ceará. Vice-Presidente do Instituto dos Advogados do Ceará. Associada do IAB. Advogada e Mediadora Judicial

Jéssica Teles de Almeida
Mestre e Doutoranda pela UFC. Professora de Direito Eleitoral e Direitos Humanos da UESPI. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE e do Grupo Ágora (UFC).

Raquel Cavalcanti Ramos Machado
Mestre pela UFC, doutora pela Universidade de São Paulo. Professora de Direito Eleitoral e Teoria da Democracia. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP, do ICEDE, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE e da Transparência Eleitoral Brasil.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

ITBI na integralização de bens imóveis e sua importância para o planejamento patrimonial

19/11/2024

Cláusulas restritivas nas doações de imóveis

19/11/2024

A relativização do princípio da legalidade tributária na temática da sub-rogação no Funrural – ADIn 4395

19/11/2024

Quais cuidados devo observar ao comprar um negócio?

19/11/2024

Estabilidade dos servidores públicos: O que é e vai ou não acabar?

19/11/2024