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Suspensão de CNH e passaporte do devedor - O que podemos esperar do julgamento da ADIn 5941?

Ao validar o artigo 139, IV, estamos franqueando ao Estado-Juiz a possibilidade de intromissão, sem fundamento legal algum, salvo no seu “sentimento particular de justiça” na esfera privada de Direitos de cada um dos 210 milhões de brasileiros.

22/2/2023

Devemos nos preocupar com o recente julgamento da ADIn 5941, que julgou improcedente a ação que impugnava o artigo 139, IV, da lei 13.105/15?

Sim e não!

Primeiro lugar, temos que o ajuizamento da ação junto ao STF no formato Ação Direta de Inconstitucionalidade nos pareceu meio atabalhoado, visto que em momento algum o artigo 139, IV, do Código de Processo Civil diz que: 1) as medidas executivas seriam atípicas, e; 2) que estariam os magistrados autorizados a suspender passaportes e CNH de devedores.

Tudo isso é fruto de uma interpretação [esdrúxula] de um texto legal [muito] mal escrito.

Melhor seria, em nosso entendimento, que o problema, se fosse o caso de se atacá-lo através do controle concentrado de constitucionalidade, que se movesse, então, uma ADPF. Data máxima vênia, a melhor solução para a demanda fora aquela encontrada pelo Ministro [André] Mendonça e extinguir o feito sem o julgamento do mérito, posto faltar o pressuposto processual do Interesse de Agir.

Todavia, a mesma foi julgada e o STF considerou improcedente a demanda. Detalhe importante: em momento algum o STF franqueou/liberou a cassação e/ou suspensão de documentos como forma de se coagir devedores a cumprirem suas obrigações.

Assistindo ao julgamento, como o fizemos, o STF diz que não é possível se julgar – em caráter abstrato – a inconstitucionalidade da norma e que esta discussão deve ser feita caso a caso.

Bem, isso é o que tem acontecido desde os anos de 2016, quando se criou este modismo jurídico chamado Atipicidade dos Meios Executivos (discutir se os meios executivos são típicos ou atípicos não é o foco deste artigo) em diversos tribunais do país.

Todavia, temos que considerar que diversos Ministros, dentre eles Luiz Fux, sinalizaram que as Medidas Atípicas são um avanço em nosso sistema e que suspensão de passaporte e CNH podem – sim – ser válidas, ressalvando-se a proteção a Direitos Fundamentais.

PASSAPORTE E CARTEIRA NACIONAL DE HABILITAÇÃO SÃO A REPRESENTAÇÃO FORMAL DE DOIS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Bem, esta fala do Ministro Fux é contraditória visto que o Direito de sair do próprio país é previsto no Tratado definidor de Direitos Fundamentais do qual o Brasil é signatário, qual seja, o Pacto de São José da Costa Rica.

O Artigo “22. 2” da, supracitada, norma dispõe que: “Toda pessoa terá o direito de sair livremente de qualquer país, inclusive de seu próprio país”. No mesmo tratado, o artigo “22.3” regulamenta que: “O exercício dos direitos citados não pode ser restringido senão em virtude de lei, na medida indispensável em uma sociedade democrática para prevenir infrações penais ou para proteger a segurança nacional, ou a ordem públicas a moral ou a saúde públicas, ou os direitos e liberdades das demais pessoas”.

Como visto acima, o Direito de sair do próprio país é um direito fundamental, assim recepcionado por nosso Ordenamento Jurídico Constitucional. Temos assim que a suspensão do Passaporte, na prática, equivale à suspensão inaceitável de um Direito Fundamental.

O mesmo se diga com a Carteira Nacional de Habilitação: num país onde milhões de pessoas ficaram desempregas e endividadas por conta da pandemia de Covid-19, temos que a suspensão da CNH limita o mercado de trabalho deste contingente populacional que perderá a oportunidade de trazer o sustento para suas famílias através de aplicativos de serviço de transportes de pessoas e mercadorias.

ATRAVÉS DO ARTIGO 139, IV DO STF, PODEMOS VOLTAR A ACEITAR A PRISÃO CIVIL DO INFIEL DEPOSITÁRIO?

Sim, sabemos que a súmula vinculante número 25, do Supremo Tribunal Federal veda a prisão civil do infiel depositário.

Ocorre, que se formos ler o acórdão (Recurso Extraordinário 46.634, Relator Excelentíssimo Ministro Gilmar Mendes) que serviu de caso paradigma para a Súmula Vinculante 25, veremos, tal como expomos em nosso livro1, fundamenta a impossibilidade da prisão civil do infiel depositário por conta de tal modalidade de prisão violar o disposto no Pacto de São José:

“(...) o conteúdo de fundo da mesma é, indiscutivelmente, a impossibilidade da violação do Tratado Internacional Definidor de Direitos Humanos, qual seja, o Pacto de São José da Costa Rica.”

Posto isto, é totalmente legítima a pergunta. Se o STF aceitou, em tese, a violação do Pacto de São José da Costa Rica no que diz respeito à Suspensão do Passaporte, não teria, então, ocorrido uma revogação tácita da Súmula vinculante número 25.

Parece-nos que sim, e este tema seria oportuníssimo para ser abordado em Embargos de Declaração ao acórdão, ainda não publicado, da citada ADI 5941.

Com efeito, não é possível tratar da violação de Direitos Fundamentais, como se os mesmos fossem bombons, de diferentes sabores, sortidos numa caixa, onde poderíamos escolher o de um sabor, e rejeitar outro. A violação de um Direito Fundamental, mormente para a proteção de um Direito Comum não alçado a esta categoria (e assim é o Direito Creditório), abre o perigosíssimo precedente para a violação de outros Direitos Fundamentais, como, por exemplo, Liberdade de Expressão e Devido Processo Legal.

ATIPICIDADE DOS MEIOS EXECUTIVOS – QUAIS OS LIMITES?

Por fim, mas não menos importante, temos que nos perguntar qual o limite dos meios atípicos. Importante lembrarmos que não apenas em ações que versem sobre valores que os mesmos podem ser utilizados. O texto legal fala em “cumprimento de decisões judiciais”2.

Por outra, eventualmente em liminar em ação civil pública onde se determinasse, a uma empresa, o plantio de “X milhões de árvores”, o não cumprimento desta poderia ensejar a suspensão do passaporte dos sócios, ou então, a suspensão das mídias sociais da referida empresa? Por que não!

Se o Juiz pode suspender a CNH de um cidadão valendo-se do [cínico] argumento de que quem não pode pagar uma dívida também não pode ter carro (até onde sabemos, nunca foi requisito para ter licença para dirigir ser proprietário de um veículo automotor), poder-se-ia arguir que seria viável determinar a suspensão do devedor, na qualidade de usuário, de qualquer serviço de aplicativo de transportes como UBER, por exemplo. Com efeito, o transporte coletivo existe e seria melhor que o devedor, ao invés de gastar com aplicativos, usasse metrô e ônibus apenas para, desta feita, poder adimplir com seus débitos.

Seria lícito se determinar a suspensão do Plano de Saúde do devedor. Na ótica puramente utilitarista, acatada pelo STF, pensamos que sim. Com efeito, milhões de pessoas no Brasil não têm plano de saúde e dependem, exclusivamente, do SUS quando têm algum problema médico. A Saúde pode ser um Direito Fundamental, e este é garantido aos cidadãos através do SUS, todavia o Direito a um Plano de Saúde pode ser encarado como algo supérfluo a um devedor que, supostamente, não tem condições de honrar suas dívidas.

Percebem a gravidade do problema? Ao validar (e consideremos aqui a altíssima dose de Ativismo Judicial que impregna o Direito Brasileiro no presente momento) o artigo 139, IV, estamos franqueando ao Estado-Juiz a possibilidade de intromissão (por assuntos que não se limitarão a dívidas, diga-se de passagem), sem fundamento legal algum, salvo no seu “sentimento particular de justiça”na esfera privada de Direitos de cada um dos 210 milhões de brasileiros.

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1 PAPINI, Paulo Antonio. Medidas Atípicas para Cumprimento de Ordem Judicial – Suspensão do Passaporte e CNH do Devedor. São Paulo. Lualri. 2018. ISBN 978-85-92749-19-4. Pgs. 57-58. Nota do autor: o livro citado foi o primeiro publicado, no Brasil, a tratar deste – polêmico – tema. 

2 Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária;

Paulo Antonio Papini
Advogado em São Paulo. Mestre e Doutorando pela Universidade Autónoma de Lisboa. Pós-graduado em Processo Civil. Especialista em Direito Imobiliário. Professor na ESA/UNIARARAS e ESD-Campinas.

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