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Nova lei que equipara injúria racial ao racismo atinge atividades religiosas

Constrangimento, humilhação, vergonha... são algumas das condutas vedadas e que agora constituem crime de racismo. Saiba como isso afeta a liberdade religiosa e como se proteger juridicamente.

17/2/2023

A nova lei 14.532, sancionada em 11 de janeiro pelo presidente Lula trouxe uma série de modificações à lei 7.716/89 (lei do Crime Racial) e decreto-lei  2.848/40 (Código Penal).

Nesse texto, não busco comentar todas as alterações minunciosamente, mas limito minha análise as alterações que afetam diretamente o direito à liberdade religiosa no Brasil.

É possível que o espírito do legislador buscasse melhorar o arcabouço jurídico na prote-ção ao exercício deste direito, porém, há de se realizar uma hermenêutica textual mais pro-funda para extrair consequentemente os seus pontos positivos e negativos.

De início, teço comentários ao artigo 1° da lei, que consequentemente alterou o art. 2°-A da lei 7.716/89:

§ 2º-A Se qualquer dos crimes previstos neste artigo for cometido no contexto de ativida-des esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público:

Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e proibição de frequência, por 3 (três) anos, a locais destinados a práticas esportivas, artísticas ou culturais destinadas ao público, conforme o caso.

O parágrafo faz referência ao artigo “Art. 2º-A, o qual afirma que ”Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional”, irá trazer ao agente delituoso uma penalidade de reclusão a ser arbitrada de 2 a 5 anos, e multa.

Neste sentido, é importante destacar o significado legal do termo ‘injúria’, que segundo a doutrina pode ser definido da seguinte forma:

“Injúria significa ofender ou insultar (vulgarmente, xingar). No caso presente, isso não basta. É preciso que a ofensa atinja a dignidade (respeitabilidade ou amor-próprio) ou o deco-ro (correção moral ou compostura) de alguém. Portanto, é um insulto que macula a honra subjetiva, arranhando o conceito que a vítima faz de si mesma.”

Visto o significado do termo e como a conduta pode se manifestar no dia a dia da sociedade, fica mais fácil identificar as possíveis implicações práticas do parágrafo, que traz em sua literalidade a vedação no âmbito da religião a todo discurso que possa constituir uma ofensa à pessoa ou grupo que estará sendo o alvo daquele discurso.

Importa mencionar como exemplo uma recente decisão proferida pela Suprema Corte bra-sileira no Recurso Ordinário em Habeas Corpus, que negou provimento ao Recurso impe-trado pelo Pastor Tupirani da Hora Lopes, líder da ‘Igreja Pentecostal Geração Jesus Cristo’, o qual foi condenado a 18 anos de prisão, por produzir e publicar diversos vídeos com ataques a judeus e membros de outras religiões.

É certo que o caso acima ocorreu bem antes da vigência da nova lei (em 2018), porém, serve como precedente para futuras decisões judiciais que tratem de analisar os casos contidos no parágrafo 2o-A.

Não é possível atacar outras instituições religiosas diversas da minha sob o pretexto da liberdade religiosa, isto porque não se pode usar um direito brilhantemente reconhecido em nossa carta magna para o cometimento de ilícitos. Sendo a religião algo que é de ex-trema importância numa população diversa e plural como a nossa, “Ofender e denegrir o sagrado é um ataque ao mais íntimo do homem. Aqui vale a expressão: “Ao que lhe é mais sagrado”. Atacar sua fé no sagrado é solapar a sua dignidade de ser humano. Esta é a última barreira, o último muro para a bestialidade. Aqui deixamos de ser humanos, para nos tornarmos animais.” (REGINA, J.M.; VIEIRA, T.R., 2018).

Dessa maneira, observo que o sentido do §2o-A não busca criminalizar todo discurso feito por um líder eclesiástico ou pessoa pertencente a alguma religião, mas apenas aqueles que evidentemente incitem o ódio ou a ofensa a outras pessoas ou religiões. Estando to-talmente protegidos aqueles que ao usarem de sua liberdade de expressão e religiosa busquem de forma respeitosa discordar de outras práticas, expressões, rituais ou liturgias, fazendo uso do proselitismo, que é inerente a todas as religiões.

Seguindo, passo a análise do novo § 2º-B que assim está redigido:

“Sem prejuízo da pena correspondente à violência, incorre nas mesmas penas previstas no caput deste artigo quem obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer mani-festações ou práticas religiosas.”

Aqui vemos o legislador preocupado em reforçar a garantia da liberdade religiosa no Bra-sil, pois há tempos são relatados inúmeros casos onde grupos ou comunidades religiosas vem sofrendo algum tipo de restrição ou limitação no exercício do culto. E aqui ressalto que tais restrições vem sendo operada não somente por grupos radicais e promotores de preconceito - o que muito se vê contra as religiões de matriz africana -, mas também pelo próprio poder estatal, que em algumas situações extrapola os limites da vigilância, cito como exemplo, o fechamento da ‘Igreja Assembleia de Deus’ em Curitiba no ano de 2021, após a realização de uma cerimônia online. Na ocasião, houve uma grave violação ao exercício do culto e a liberdade religiosa dos fiéis, em razão de se tratar não de um culto presencial - o que poderia realmente por em perigo a vida de terceiros naquele momento pandêmico -, mas de um culto online.

Portanto, o objetivo do § 2º-B é inibir essas condutas que obstam ou visam impedir a livre celebração ou manifestação religiosa.

Outra alteração trazida pela lei foi o art. 20-C:

“Art. 20-C. Na interpretação desta lei, o juiz deve considerar como discriminatória qual-quer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangi-mento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dis-pensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência.”

Aqui o maior intuito do legislador foi de proteger os grupos mais vulneráveis socialmente, vide minoritários, estes que por muitas vezes vem sendo silenciados e sofrendo repres-sões por parte de uma certa maioria que insiste em não observar um dos objetivos funda-mentais da República brasileira, esculpido no art. 3°, I da CF/88, qual seja, “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, o que evidentemente só pode ser alcançado numa juris-dição constitucional que assegure direitos fundamentais a todos os grupos, sejam eles a maioria ou a minoria, é justamente este o objetivo primordial do art. 20-C trazido pela lei 14.532/23, reprimir as condutas que gerem discriminação à organizações, pessoas ou comunidades religiosas que estejam inseridas no contexto minoritário.

Cabe destacar ainda que tal proteção se estende àquelas pessoas que não professam nenhum tipo de fé ou credo, pois “numa autêntica democracia, tanto os que creem, que são a maioria, quanto os que não creem, que são a minoria, têm idênticos direitos, poden-do atuar como desejarem, de acordo com suas convicções, apenas exercendo, quanto ao Poder Político, os seus direitos de cidadania. Têm, os crentes, voz ativa, assim como os não crentes” (REGINA, J.M.; VIEIRA, T.R., 2018).

Por fim, o art. 140, § 3º do Código Penal também foi alterado, passando a constar a se-guinte redação:

Art. 140.

(...)

§ 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.”(NR)

Esta última alteração legislativa traz o uso de elementos sagrados à religião no intuito de cometer a injúria como passível de punição.

Dessa forma, a configuração do ilícito somente se daria ao fazer urso de tais elementos, podemos citar alguns como ‘crucifixos’, ou roupas e estilos característicos de determinada religião, com o objetivo de promover insulta ou ofensa contra outras religiões.

Não resta dúvidas portanto que o espírito do legislador foi o de proteger e resguardar um direito fundamental que é a liberdade religiosa, consagrada em nossa Constituição.

Mas ainda assim, e apesar de toda boa vontade legislativa com as alterações promovidas, há de se ligar um alerta para como se dará a aplicação dos referidos dispositivos supra-mencionados em casos concretos, pois a hermenêutica textual pode ser expandida de-pendendo da avaliação interpretativa a ser realizada pelos órgãos julgadores.

Neste sentido, asseverou um certo jurista, que preferiu o anonimato:

“O grande problema é a extensão da interpretação, que pode ser dada para qualquer tipo de conduta. A lei também não especifica quais são esses grupos minoritários, e essas generalizações são muito preocupantes. Não há precisão e, por outro lado, há uma amplitu-de, o que permite interpretar os fatos dentro de um contexto que não existe [...]”

Assim, vejo como totalmente válida e legítima as preocupações que se amontoam acerca da lei, o que infelizmente decorre de uma série de fatores presentes em nosso Estado Democrático de Direito, como a falta de segurança jurídica e os contraditórios julgamentos proferidos por alguns órgãos de justiça, que aumentam o temor social a cada novo texto legal que é redigido e consequentemente aprovado.

Cabe agora a nós que compomos a comunidade jurídica observar diligentemente como serão aplicados todos esses dispositivos. E que sirvam para o fortalecimento da liberdade religiosa no Brasil, nunca ao contrário.

Allamys Pedro dos Santos Silva
Graduando em Direito pelo Centro Universitário Maurício de Nassau e Estagiário Jurídico em Jesimon Tenório Sociedade Individual de Advocacia.

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