Migalhas de Peso

Desmistificando o crédito trabalhista na recuperação judicial

Preparar-se para o inusitado é necessário.

13/2/2023

Em razão de sua natureza alimentar, o crédito trabalhista possui disciplina própria no Direito das Empresas em Crise, o que impacta nos mais diversos momentos do processo – e é essa a análise crítica que se buscará fazer à luz das alterações feitas na lei 11.101/05 (“LREF”) por meio da lei 14.112/20.

O primeiro elemento a se destacar é a forma de cômputo dos créditos trabalhistas na votação do plano de recuperação judicial. O art. 45, § 2º da LREF determina que a votação seja computada por cabeça, isto é, pela maioria simples dos credores presentes, independentemente do valor de seu crédito. Esse dispositivo carrega em sua racionalidade a ideia de que o crédito trabalhista, de natureza alimentar, é importante para todos os credores, pouco importando o montante. Exige-se, apenas, que o credor esteja presente à votação, o que se afigura bastante razoável para fins de manifestação de vontade e interesse no recebimento do crédito.

O segundo elemento diz respeito ao prazo para o pagamento e adimplemento do crédito trabalhista. O art. 54 da LREF dispõe, expressamente, que o plano de recuperação judicial não poderá prever prazo superior a 1 (um) ano para pagamento dos créditos derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes de trabalho vencidos até a data do pedido de recuperação judicial. Esse prazo pode ser estendido em até 2 (dois) anos, se, cumulativamente: (1) o plano contar com garantias julgadas suficientes pelo juiz; (2) houver aprovação dos credores trabalhistas (maioria simples presente na Assembleia Geral de Credores); e, (3) houver garantia da integralidade do pagamento dos créditos trabalhistas. Ainda a título de prazos, importante mencionar o § 1º do art. 54 da LREF, segundo o qual o plano não poderá prever prazo superior a 30 (trinta) dias para o pagamento, até o limite de 5 (cinco) salários-mínimos por trabalhador, dos créditos de natureza estritamente salarial vencidos nos 3 (três) meses anteriores ao pedido de recuperação judicial.

Isto é, do art. 54 da LREF podem ser extraídos os seguintes elementos: no que concerne ao prazo, há uma divisão entre créditos de natureza estritamente salarial e créditos trabalhistas lato sensu (isto é, derivados da legislação trabalhista ou decorrentes de acidentes de trabalho). Os primeiros, no limite previsto na lei (cinco salários-mínimos por trabalhador e vencidos nos três meses anteriores ao pedido de recuperação judicial), têm que ser pagos em até 30 dias da homologação do plano. Os últimos, devem ser pagos, conforme o caso, em 1 (um) ou, no máximo, em 2 (dois) anos.

A primeira questão que se faz é: também esses prazos se contam da homologação do plano? Em 17 de janeiro de 2019, foi publicado no Diário de Justiça de São Paulo o seguinte enunciado representativo do entendimento das Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do TJSP: “O prazo de um ano para o pagamento de credores trabalhistas e de acidentes de trabalho, de que trata o art. 54, caput, da lei 11.101/05, conta-se da homologação do plano de recuperação judicial ou do término do prazo de suspensão de que trata o art. 6º, parágrafo 4º, da lei 11.101/05, independentemente de prorrogação, o que ocorrer primeiro”. Esse entendimento permaneceu até a reforma da LREF pela lei 14.112/20. Com a reforma (e, entre outras mudanças, a possibilidade de prolongamento do stay period), o verbete foi cancelado, remanescendo, contudo, o entendimento de que o prazo em questão é contado da homologação do plano de recuperação judicial.

A segunda questão que se faz é: o pagamento de crédito trabalhista na recuperação judicial admite deságio? Quando há extensão do prazo para 2 (dois) anos, a resposta é negativa, haja vista a clareza da expressão “garantia da integralidade do pagamento dos créditos trabalhistas” contida no art. 54, § 2º, III, da LREF. Esse foi o entendimento adotado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no julgamento do Agravo de Instrumento 2271229-70.2021.8.26.0000, em que se entendeu que a correção monetária do crédito trabalhista pela Taxa Referencial (TR) representa deságio indireto (ou implícito), uma vez que “permaneceu zerada por três anos” e apresentou “números inexpressivos a partir de dezembro de 2021”. O voto do Des. Alexandre Lazzarini (datado de 06 de fevereiro de 2023) foi além e reforçou que:

“É importante lembrar, ainda, que a atualização monetária constitui mera recomposição do valor da moeda, sendo imprescindível, sob pena de deságio implícito em desfavor dos credores. Assim, não há como se admitir um índice (TR) de 0,74% nos últimos 12 meses, ante uma inflação média de 12%, no mesmo período (INPC e IPCA). Assim, estabelecer a TR como índice de correção monetária é induzir o credor em erro, dando-se a perspectiva de que será mantido o poder aquisitivo do dinheiro, diferente dos juros que são a sua remuneração. Uma primeira situação é afirmar que há a atualização monetária; uma segunda situação é afirmar que os valores não serão corrigidos, sabendo-se as suas consequências; e, uma terceira situação é fingir que há correção monetária, estabelecendo a TR para tal fim. Além disso, os juros aplicados (1% ao ano) não se aproximam dos juros de mercado, previsto pelos especialistas em cerca de 8% para 2023”.

O “caput” do art. 54 da LREF por sua vez, embora não seja tão literal quanto o  § 2º, III, que o integra, está sujeito à mesma lógica. Isso porque sua redação afirma que não se “poderá prever prazo superior a 1 (um) ano para pagamento”. Ora, pagamento pressupõe que se trate da integralidade e não de parte. Essas observações relativas ao deságio tomam especial corpo quando se tem em mente a existência de entendimento jurisprudencial consolidado no sentido de prestigiar a soberania da vontade dos credores manifestada em assembleia geral (art. 35, I, “a, da LREF), e, portanto, uma certa reticência em juízos axiológicos sobre as disposições dos planos de recuperação judicial. A ressalva que se faz, e nesse ponto, deve ser chamada atenção para o Enunciado nº 44, da I Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal, é o controle judicial da legalidade. Frise-se: controlar a legalidade de um plano de recuperação judicial não significa fazer considerações ou se imiscuir no controle de sua viabilidade econômica (sobre o que se falará mais adiante). O fato é que o art. 54 da LREF é norma cogente e não pode o magistrado admitir que, uma vez que não houve manifestação de insurgência dos credores quanto a uma disposição que a afronte, seria possível sua convalidação. Há um mínimo existencial legislativo que deve ser preservado; ou, dito de outro modo, a lei não contém palavras inúteis. A lógica concernente aos credores da Classe I na recuperação judicial é a da centralidade das relações de trabalho. Não por outro motivo, o art. 47 da LREF, ao elencar as razões da recuperação judicial, contempla a busca pela manutenção do emprego dos trabalhadores. Ora, se se pretende que os empregos sejam preservados, por que motivo se poderia imaginar que a título de superar a situação de crise econômico-financeira do devedor seria admissível que os créditos trabalhistas custeiem a recuperanda? O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem adotado exatamente essa posição, como se vê do voto do Des. Franco de Godoi no julgamento do Agravo de Instrumento 2272537-44.2021.8.26.0000 “era dever da empresa recorrida o adimplemento dos créditos derivados da legislação do trabalho no prazo previsto no art. 54 da Lei de Recuperação Judicial e Falências, sendo tal morosidade motivo suficiente para a convolação da recuperação judicial em falência”.

Uma última discussão para a qual se pretende chamar a atenção é a aplicação ou não, à recuperação judicial, do limite de 150 (cento e cinquenta) salários-mínimos a que se refere o art. 83, inciso I, da LREF. A questão é: referido dispositivo faz parte do regramento da falência. Pode haver aplicação por analogia nas recuperações judiciais? Sobre o tema, destaca-se o entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial 1.989.088-SP, de Relatoria da Min. Nancy Andrighi, em que se entendeu pela impossibilidade da analogia. E a razão de assim ter se entendido, “reside na circunstância de – justamente por se tratar de execução coletiva de devedor insolvente [como na hipótese de falência] – inexistir patrimônio apto a satisfazer a integralidade dos créditos inadimplidos”. Entendeu-se, no referido precedente, pela excepcionalidade da limitação (que tem por consequência que o excedente é classificado como crédito quirografário, e, na dicção do acórdão, “como indicam as regras ordinárias de experiência, dificilmente será satisfeito em sua integralidade”). O voto foi além e, ainda, observou que o arbitramento em questão tem justificativa quando há “ponderação com os direitos dos demais credores” (o que é razoável quando se tem uma massa falida, mas não o é quando se tem uma empresa em atividade). Quando referida norma foi formulada, e isso é possível de extrair do parecer apresentado pelo Senador Ramez Tebet durante o processo de edição da lei 11.101/05, pensou-se na limitação como forma de evitar abuso em pretensões levadas a efeito pelos administradores das sociedades falidas e não porque se vislumbrava alguma minoração da importância do crédito alimentar na falência.

À guisa de conclusão, conquanto essas poucas linhas não tenham tido a pretensão de exaurir o debate, o que se nota é que as assimetrias informacionais muitas vezes açodam o credor inserido na Classe I a enxergar a recuperação judicial como um evento “sombrio” (a gloomy part1) no Direito. Não se está mais diante do pactum ut minus solvatur e nem se permite a partilha do corpo do devedor entre os credores2. Há, sim, espaço para evolução no entendimento jurisprudencial (o próprio pensamento exarado pela Min. Nancy Andrighi no Recurso Especial nº 1.989.088-SP encontra quem pense de modo diferente), mas que deve estar sempre atento à missão de controle judicial de legalidade, numa perspectiva de se promover a preservação da empresa quando há atividade empresarial a ser preservada (e nunca fazendo-se uma “conta de chegada”, ou utilizando-se o art. 47 como uma panaceia do Direito das Empresas em Crise).

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1 Cf. NOEL, Francis Regis.  A history of bankruptcy law. Washington: Potter & Co., 1919, p. 7.

2 Cf. FERREIRA, Waldemar. Tratado de direito comercial, v. 14. São Paulo: Saraiva, 1965, p. 6.

Bruno Marques Bensal
Mestre (2016) e Doutor (2022) em Direito Comercial pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Advogado em São Paulo.

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