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Terras devolutas em faixa de fronteira: ADIn 5623/STF e o registro imobiliário

Como o Registro de Imóveis tem como principal pilar a segurança jurídica externada em seus atos jurídicos, evitando exatamente conflitos judiciários posteriores, mister que, na medida do possível, sejam instados os órgãos da União (FUNAI, INCRA, IBAMA, ICMBio, SPU, AGU etc) para emissão prévia de parecer em títulos de terras devolutas em áreas de fronteira, precipuamente quando existam estudos de demarcação de terras indígenas.

10/2/2023

Em 2016 a Contag propôs, no STF, a ADIn 5623, objetivando a interpretação conforme à CF dos arts. 1º, 2º, 3º e 6º da lei 13.178/15, que dispôs acerca da ratificação dos registros imobiliários decorrentes de alienações e concessões de terras públicas situadas nas faixas de fronteira, sendo que em 28.11.2022 o STF julgou parcialmente procedente tal ação de controle concentrado de constitucionalidade.

A faixa de fronteira é prevista no art. 20, § 2º da CF: “A faixa de até cento e cinquenta quilômetros de largura, ao longo das fronteiras terrestres, designada como faixa de fronteira, é considerada fundamental para defesa do território nacional, e sua ocupação e utilização serão reguladas em lei”.

Por sua vez, estão entre os bens da União, conforme art. 20, inciso II: “as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei”.

A importância de imóveis rurais em áreas de fronteira é tão intensa, que a lei 5.709/71, em seu artigo 7º determina que o Conselho de Segurança Nacional, previamente dê seu consentimento: “A aquisição de imóvel situado em área considerada indispensável à segurança nacional por pessoa estrangeira, física ou jurídica, depende do assentimento prévio da Secretaria-Geral do Conselho de Segurança Nacional”.

Como o Brasil é um país continental e fronteiriço com inúmeros outros países, verifica-se que em tais áreas de fronteira há grande intensidade de crimes transnacionais (tráfico de drogas e armas, contrabando, p. ex), imigração ilegal, grilagem de terras com extrema violência, invasão de terras indígenas, desmatamento de áreas de preservação ambiental, dentre outros problemas que afetam diretamente a sociedade brasileira, portanto, em tais áreas sempre haverá interesse da União quando se tratar de terras devolutas.

O Registro de Imóveis, como instituição que traduz segurança jurídica para o país no que tange ao fólio real, fulcrado no art. 236 da CF, além das leis 6.015/73 e 8.935/94, necessita de real efetividade de seus atos, sob pena de irradiar problemas jurídicos de toda sorte, com títulos que poderão ser questionados judicialmente, tanto é que a Ministra Relatora da ADIn 5623, em seu voto, aduziu:

“[...] O registro público imobiliário constitui, assim, um dos instrumentos fundamentais para a segurança jurídica nos negócios levados a efeito e relacionados à titularidade, posse e uso da terra. A indefinição da propriedade rural constitui obstáculo ao desenvolvimento, retarda investimentos e o implemento de políticas públicas, prejudicando o atendimento das finalidades públicas atendidas somente quando cumpridas as funções sociais da terra”.

A segurança jurídica é um dos pilares para que o Registro de Imóveis tenha ampla legitimidade perante a população brasileira e para que exerça seu papel com desenvoltura e higidez, ainda mais quando envolve pessoas de boa-fé:

“[...] o postulado da segurança jurídica, enquanto expressão do Estado Democrático de Direito, mostra-se impregnado de elevado conteúdo ético, social e jurídico, projetando-se sobre as relações jurídicas, mesmo as de direito público (RTJ 191/922), em ordem a viabilizar a incidência desse mesmo princípio sobre comportamentos de qualquer dos Poderes ou órgãos do Estado, para que se preservem, desse modo, sem prejuízo ou surpresa para o administrado, situações já consolidadas no passado. A essencialidade do postulado da segurança jurídica a necessidade de se respeitarem situações consolidadas no tempo, especialmente quando amparadas pela boa-fé do cidadão, representam fatores a que o Poder Judiciário não pode ficar alheio” (RE 619.014 AgR/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJe de 25.2.2013)

A boa-fé, embora guarde enorme importância no registro imobiliário, tem sua eficácia atenuada na forma do parágrafo único do artigo 1247 do Código Civil:

Art. 1.247. Se o teor do registro não exprimir a verdade, poderá o interessado reclamar que se retifique ou anule. Parágrafo único. Cancelado o registro, poderá o proprietário reivindicar o imóvel, independentemente da boa-fé ou do título do terceiro adquirente.

De qualquer forma, o instrumento de ratificação prevista na lei 13.178/15 nada mais é do evidenciar o respeito do legislador a pessoas de boa-fé que, se cumpridos os requisitos legais, efetivem seu direito de propriedade perante a União.

De fato, embora a propriedade seja um direito fundamental, não é um direito absoluto, dado que condicionado a inúmeros princípios constitucionais e legais no país:

“o direito de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que, sobre ele, pesa grave hipoteca social, a significar que, descumprida a função social que lhe é inerente (CF, art. 5º, XXIII), legitimar-se-á a intervenção estatal na esfera dominial privada, observados, contudo, para esse efeito, os limites, as formas e os procedimentos fixados na própria Constituição da República” (ADI 2.213 MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 23.4.2004).

Conforme decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 5623 para se ratificar tais títulos de terras devolutas, os respectivos imóveis rurais devem claramente se submeter à política agrícola e ao plano nacional de reforma agrária previstos no art. 188 da Constituição da República e dos demais dispositivos constitucionais que protegem os bens imóveis que atendam a sua função social, conforme inc. XXIII do art. 5., caput e inc. III do art. 170, art. 186 da Constituição Federal.

Ademais, o artigo 231, § 6º da Carta Magna, assevera:

São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.

Há de se ter extrema cautela em imóveis que tenham estudos antropológicos indígenas efetivados ou em tramitação pela FUNAI, pois os títulos anteriores são nulos e extintos, cabendo análise criteriosa pelos envolvidos, pois o Superior Tribunal de Justiça julgou recentemente:

A sobreposição da propriedade rural com área indígena, ainda que o processo de demarcação não tenha sido concluído, inviabiliza a certificação de georreferenciamento. STJ. 2ª Turma. AREsp 1.640.785-MS, Rel. Min. Francisco Falcão, julgado em 25/10/2022 (Info 755).

Como o Registro de Imóveis tem como principal pilar a segurança jurídica externada em seus atos jurídicos, evitando exatamente conflitos judiciários posteriores, mister que, na medida do possível, sejam instados os órgãos da União (FUNAI, INCRA, IBAMA, ICMBio, SPU, AGU etc) para emissão prévia de parecer em títulos de terras devolutas em áreas de fronteira, precipuamente quando existam estudos de demarcação de terras indígenas.

Por fim, como tais terras devolutas em faixa de fronteira são imóveis de interesse da União, eventual dúvida em relação ao título apresentado ao Registro de Imóveis deverá ser encaminhada para análise ao Juiz Federal da Subseção Judiciária respectiva, conforme entendimento consolidado do Superior Tribunal de Justiça:

O processamento e julgamento de procedimento administrativo de dúvida suscitado por oficial de registro imobiliário relativamente a imóveis de autarquia pública federal compete ao Juízo federal. (STJ. 1ª Seção. CC 180.351-CE, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 28/9/22) (Info 751).

[...] 1. Tratando-se de pedido de abertura de matrícula, no Registro de Imóveis, de bem em nome da União, sobressalta o interesse desta, tanto mais que a eficácia atributiva de propriedade do registro implica em a decisão influir no domínio federal.

2. À luz do sistema constitucional de prerrogativas da União, a decisão de qualquer procedimento judicial que possa infirmar o seu domínio deve tramitar na Justiça Federal, consoante a ratio essendi da Súmula 150 do STJ. (...) (STJ. 1ª Seção. CC 32.584/RJ, Rel. Min. Eliana Calmon, Rel. p/ acórdão Min. Luiz Fux, julgado em 11/12/02).

Em tal sentido é a lei 8º, § 3º da lei 6.739/79:

Art. 8º. A A União, o Estado, o Distrito Federal ou o Município prejudicado poderá promover, via administrativa, a retificação da matrícula, do registro ou da averbação feita em desacordo com o art. 225 da lei no 6.015, de 31 de dezembro de 1973, quando a alteração da área ou dos limites do imóvel importar em transferência de terras públicas.             

§ 1º O Oficial do Registro de Imóveis, no prazo de cinco dias úteis, contado da prenotação do requerimento, procederá à retificação requerida e dela dará ciência ao proprietário, nos cinco dias seguintes à retificação.                   

§ 2º Recusando-se a efetuar a retificação requerida, o Oficial Registrador suscitará dúvida, obedecidos os procedimentos estabelecidos em lei.

§ 3º Nos processos de interesse da União e de suas autarquias e fundações, a apelação de que trata o art. 202 da Lei no 6.015, de 31 de dezembro de 1973, será julgada pelo Tribunal Regional Federal respectivo.

Robson Martins
Doutor em Direito (ITE/SP) e Mestre (UFRJ). Especialista em Direito Civil, Notarial e Registral. Professor universitário. Procurador da República. Promotor de Justiça PR 99/02. Técnico JFPR 93/99.

Érika Silvana Saquetti Martins
Doutoranda Dto ITE. Mestre Dto. UNINTER. Mestranda Pol Públicas UFPR. Espec Dto e Proc Trabalho, Dto. Público e Notarial e Registral. Professora Pós Graduação latu sensu Direito Uninter. Advogada.

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