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Uso de marcas por advogados

Com a perigosa diminuição das distinções regulatórias entre a empresarialidade e a não-empresarialidade no exercício das profissões liberais, majorando-se a litigância sobre contrafação de marcas e a atuação de sociedades de advogados.

9/2/2023

A atuação de advogados como representantes, postulantes dos interesses alheios é algo consagrado pela história e pelas boas tradições democráticas. Quando pleiteia perante a administração pública (INPI) a constituição de direitos de propriedade industrial, o advogado exerce uma das suas faculdades profissionais mais caras: o direito de petição (art. 5º, XXXIV, “a” da CRFB).

 Curiosamente, se os escritórios de advocacia especializada em propriedade intelectual podem ter parcela relevante de sua receita advinda da postulação de pedidos de registro de marcas alheias, reivindicações em nome próprio podem encontrar barreiras jurídicas. Por exemplo, é conhecida a posição do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP quanto à vedação1 às sociedades de advocacia pedirem ao INPI para registrar marca que coincida com sua designação societária.

Como sabido, a forma societária adotada pela associação de advogados para o exercício da mesma atividade fim, com o escopo em comum é a de sociedade simples (art. 997 e seguintes do CC/02). Em outras palavras, é a (i) não empresarialidade do exercício do múnus, bem como (ii) o personalismo2 da atuação dos sócios que distingue tal reunião societária daquilo que, corriqueiramente, se concebe na indústria ou no comércio.

É bom lembrar que, conforme o art. 2º, inciso I, do provimento 112/06 do CFOAB, a razão social da sociedade de advocacia deve conter, necessariamente, os nomes ou sobrenomes dos advogados integrantes do escritório. Não precisam ser os nomes ou sobrenomes de todos os sócios, mas apenas de parte deles ou, até mesmo, de um dos sócios. No entanto, de acordo com a mesma normativa, a razão social pode manter o nome ou sobrenome de um advogado após o seu falecimento, desde que haja previsão anterior no contrato social.

De outra monta, com o crescimento expressivo do número de inscritos junto à OAB, superando os 1.300.0003 (um milhão e quatrocentos mil) em 2023, somado ao advento das redes sociais, nota-se como a comunicação junto ao público (clientes ou potenciais clientes) foi modificada. Algumas práticas pouco ortodoxas, aliás, denotam: (a) diversas condutas heterodoxas em redes sociais por parte de causídicos; (b) perfis de ostentação de consumo ou de exibição patrimonial; (c) busca inescrupulosa por atenção, com direito a dancinhas e coreografias esquisitas4; (d) conteúdo audiovisual com produções caras e uso de linguagem divorciada do vernáculo; e (e) até trailer da rotina profissional do advogado, visando a seduzir os potenciais clientes. Diante da banalização de exemplos esdrúxulos, a OAB resolveu alterar os parâmetros regulatórios do que se chama de “marketing jurídico”.

No provimento 205/21, a OAB passou a admitir a publicidade profissional, desde que seja com caráter informativo, discrição e sobriedade, sempre com respeito aos preceitos do Código de Ética e Disciplina da Ordem. Assim, por exemplo, o referido Provimento tolera formas de comunicação ativas e passivas nas redes sociais, sem que a postura serene e altiva5 ínsita à profissão dos advogados seja abdicada. Tal Provimento, todavia, nada prescreve sobre o uso do registro de marcas em favor da sociedade de advogados ou do advogado que exerce, individualmente, o seu mister.

É neste contexto transformativo das interlocuções profissionais na advocacia que um interessante caso foi dirimido pelo Judiciário estadual bandeirante6. Em síntese, uma das companhias aéreas intentou pretensão compensatória e inibitória contra uma sociedade de advogados. A causa de pedir fundava-se no fato de que determinada sociedade de causídicos estava realizando comunicação ativa em busca de clientes, citando expressamente o sinal distintivo da companhia aérea, para demonstrar que tinha expertise em ações contra essa empresa. Ou seja, ao apresentar seus serviços, a sociedade especificava que detinha experiência em litigar contra a empresa de aviação e buscava clientes para fazê-lo.

Seria tal menção à marca da sociedade empresária um ilícito pela lei 9.279/96? Por unanimidade, o órgão fracionário do TJ/SP compreendeu que o princípio da especialidade (art. 131 da LPI) delimitava a eficácia da oponibilidade erga omnes (do direito de propriedade) ao mero núcleo concorrencial. Ou seja, não constituindo relação de concorrência entre a sociedade simples (advocacia) vs. a sociedade empresária (aviação), a coerção da propriedade da marca não incidiria7.

Quando o INPI constitui o direito de exclusividade sobre determinado signo de marca, reforça-se, tal não outorga um monopólio sobre a língua (art. 13 da CRFB) que segue sendo bem público imaterial de uso comum (art. 99, I, do CC/02). Ou seja, é possível que não-titulares façam menção à marca, havendo maior liberdade de expressão fora do contexto concorrencial do que dentro dele.

De outro lado, não passou desapercebido pelo TJ/SP que a forma comunicativa utilizada pela sociedade de advogados (de, ostensivamente mencionar a expertise em litigar contra o futuro réu) era apartada da postura esperada de causídicos8. Em outros termos, se o agir pouco virtuoso do escritório estava fora do campo da violação ao direito de propriedade industrial, o mesmo não poderia ser dito a respeito de eventuais vilipêndios ao Estatuto de Ética da Advocacia e à própria lei 8.906/94 – mesmo com a inovação do provimento 205/21.

Com a perigosa diminuição das distinções regulatórias entre a empresarialidade e a não-empresarialidade no exercício das profissões liberais, casos como o narrado tendem a se tornar mais corriqueiros, majorando-se a litigância sobre contrafação de marcas e a atuação de sociedades de advogados. Como lição útil a evitar a incômoda percepção de um mandado de citação em demanda compensatória desta sorte, úteis são as palavras do maior advogado brasileiro9 (ao menos da virada do século XIX para o século XX): “Não fazer da banca balcão, ou da ciência mercatura. Não ser baixo com os grandes, nem arrogante com os miseráveis. Servir aos opulentos com altivez e aos indigentes com caridade”.

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1 SOCIEDADE DE ADVOGADOS - DENOMINAÇÃO SOCIAL - REGISTRO DE "MARCA NOMINATIVA" NO INSTITUTO NACIONAL DE PROPRIEDADE INDUSTRIAL - IMPOSSIBILIDADE - COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DA OAB - INTELIGÊNCIA DO § 1º DO ART. 15 E DO § 3º DO ART. 16, AMBOS DO EOAB - MARCA NÃO REGISTRÁVEL - ART. 124, XV, DA LEI Nº 9.279/96 - GARANTIA DE ORIGINALIDADE JÁ PREVISTA NO ART. 7º DO PROVIMENTO Nº 112 DO CONSELHO FEDERAL DA OAB. (...) Ademais, uma vez que a razão social das sociedades de advogados deve ser composto, obrigatoriamente, pelo nome do advogado responsável, no mínimo, impossível seu registro no INPI, uma vez que a Lei nº 9.279/96 impede o registro, como marca, do nome civil, nome de família ou patronímico. Por fim, a garantia de originalidade do nome das sociedades de advogados já encontra guarida no art. 7º do Provimento nº 112 do CFOAB, sendo desnecessário que se recorra ao seu registro em outro órgão, que não a OAB. Proc. E - 4.147/2012 - v.u., em 19/07/2012, do parecer e ementa do Rel. Dr. JOSÉ EDUARDO HADDAD - Rev. Dr. GUILHERME FLORINDO FIGUEIREDO - Presidente Dr. CARLOS JOSÉ SANTOS DA SILVA.

2 “Se os próprios sócios, ou principalmente os sócios, operam diretamente o objeto social, exercendo eles mesmos a produção de bens, ou a sua circulação, ou a prestação de serviços, o que se tem é uma sociedade simples. A empresa existe quando as pessoas coordenadas ou os bens materiais utilizados, no concernente à produção ou à prestação de serviços operados pela sociedade, suplantam a atuação pessoal dos sócios” BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito societário. 13ª Edição revista e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 17.

3 Dados disponíveis em https://www.oab.org.br/institucionalconselhofederal/quadroadvogados, acessado em 15/1/23.

4 OAB-MG, Resolução 007/2020 – Tribunal de Ética e Disciplina. Cartilha: “10- O aplicativo ‘tik tok’ e/ou similares de entretenimento, por não guardarem a sobriedade necessária para o exercício da advocacia, não são ferramentas adequadas para a publicidade profissional”.

5 Provimento 205/2021 da OAB Nacional: “Art. 3º A publicidade profissional deve ter caráter meramente informativo e primar pela discrição e sobriedade, não podendo configurar captação de clientela ou mercantilização da profissão, sendo vedadas as seguintes condutas: § 1º Entende-se por publicidade profissional sóbria, discreta e informativa a divulgação que, sem ostentação, torna público o perfil profissional e as informações atinentes ao exercício profissional, conforme estabelecido pelo § 1º, do art. 44, do Código de Ética e Disciplina, sem incitar diretamente ao litígio judicial, administrativo ou à contratação de serviços, sendo vedada a promoção pessoal”.

6 TJSP, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Des. Natan Zelinschi de Arruda, AC1125922-30.2020.8.26.0100, DJ 22/11/22.

7 “Assim, o que fora utilizado pela corré (...) fazendo referência exclusiva à empresa (...) , não configura irregularidade, mesmo porque, não se trata de concorrente da empresa aérea, mas, ao contrário, é prestadora de serviços, ou seja, exerce a capacidade postulatória, consequentemente, a referência sobre o nome da empresa não é em decorrência da empresa em si, mas de seus funcionários ou ex-funcionários” TJSP, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Des. Natan Zelinschi de Arruda, AC1125922-30.2020.8.26.0100, DJ 22.11.2022. Tal entendimento é corroborado pela doutrina clássica: ROUBIER, Paul. Droits Intellectuels ou Droits de Clientèle. Paris: Editora Siney, 1935, p. 54.

8 “A utilização por parte da apelada (...) em busca de clientes, ou seja, funcionários ou ex-funcionários da empresa autora (...) efetivamente demonstra deselegância no exercício da advocacia, porém, apresenta-se insuficiente para dar respaldo à pretensão da recorrente” TJSP, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Des. Natan Zelinschi de Arruda, AC1125922-30.2020.8.26.0100, DJ 22/11/22.

9 BARBOSA DE OLIVEIRA, Rui Caetano. Oração aos Moços. São Paulo: Hedra, 2009, p. 74.

Pedro Marcos Nunes Barbosa
Sócio de Denis Borges Barbosa Advogados. Cursou seu Estágio Pós-Doutoral junto ao Departamento de Direito Civil da USP. Doutor em Direito Comercial pela USP, Mestre em Direito Civil pela UERJ e Especialista em Propriedade Intelectual pela PUC-Rio.

Ronaldo Cramer
Sócio de Nunes Ferreira, Vianna Araújo, Cramer, Duarte Advogados e Professor do Departamento de Direito da PUC-Rio.

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