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Tema 1.097 do STF: um passo necessário na proteção de PCDs no funcionalismo público

No julgamento do RE 1.237.867, o STF fixou tese reconhecendo o direito à redução da jornada para servidores públicos que tenham filhos ou dependentes com deficiência (Tema 1.097). O que isso nos diz?

8/2/2023

Em decisão unânime no Supremo Tribunal Federal (STF), o Plenário da Corte entendeu pela ampliação dos efeitos do art. 98, § 2° e § 3°, da lei 8.112/90, a todos os funcionários públicos. Com isso, estende-se o direito previsto em âmbito federal aos servidores estaduais e municipais responsáveis por pessoas com deficiência [filho ou dependente], permitindo que esses também tenham direito à redução da jornada de trabalho — sem redução de remuneração.

Certamente, essa decisão — tomada no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.237.867, com repercussão geral reconhecida (Tema nº 1.097) — visa dar maior concretude, a um só tempo, ao teor do art. 227, da Constituição Federal, o qual dispõe acerca da proteção integral e prioritária à criança e ao adolescente, como também, à garantia dos direitos protetivos à pessoa com deficiência (PCD), de forma a garantir a concretude do preceito fundamental de igualdade.

Com efeito, ante a necessidade de contínua construção dos direitos humanos das pessoas com deficiência, que compreende um longo caminho histórico1, pode-se reparar uma tendência progressiva no âmbito do Poder Judiciário na busca, em grande medida, de alcançar uma maior igualdade de oportunidades — não somente para as pessoas com deficiência, mas também para os seus familiares. Isso porque, a pessoa com deficiência (PCD), não raras vezes, requer auxílio, seja dos pais, avôs, dos filhos, cônjuges, ou de algum outro familiar.

A fim de atenuar, ao menos em parte, a necessidade de conciliação entre o exercício de atividade profissional e o atendimento aos cuidados requeridos pela deficiência, foi aprovada a lei 13.370/16, que beneficia os servidores públicos federais civis com a redução da sua jornada de trabalho, sem a redução do salário ou necessidade de compensação de horas, de forma que possam acompanhar, com maior proximidade, o dependente com deficiência. Por óbvio, a Lei representou um grande avanço na garantia de direitos à pessoa com deficiência, no entanto, pela ordem federativa brasileira, não seria possível garantir o referido direito a todos os servidores — pelo menos, não diretamente e de forma imediata.

Nesse ensejo, antes mesmo da fixação de tese pela Suprema Corte no Tema nº 1.097 — a saber, “aos servidores públicos estaduais e municipais é aplicado, para todos os efeitos, o art. 98, § 2° e § 3°, da lei 8.112/90” —, nossos Tribunais já estavam proferindo decisões judiciais reconhecendo, favoravelmente, a possibilidade de redução de jornadas de trabalho, sem redução proporcional do salário, também para servidores públicos municipais e estaduais. Isso porque, mesmo não sendo diretamente beneficiados pela Lei federal que garante a redução da jornada, tem-se entendido pela garantia desse direito aos demais servidores em razão do princípio da isonomia (art. 5º, CRFB).

Tendo em vista que, conforme bem pontua Boaventura de Sousa Santos, “as pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza”2, se entende razoável aceitar que, por qualquer motivo que seja, alguns tenham maior acesso a cuidados especiais, tratamentos, terapia e, ainda, profissionais que forneçam suporte e acompanhamento? Certamente não. Por isso, entende-se bastante pertinente que, na esfera jurídica, se discuta a possibilidade de redução de jornada para todos os servidores públicos que sejam responsáveis por uma pessoa com deficiência.

Com a tese fixada pelo STF, a discussão alcança, felizmente, outro patamar. Com efeito, o Ministro Ricardo Lewandowski (relator do leading case) entendeu que eventual omissão do Poder Público, em âmbito estadual ou municipal, não permite, por si só, que as diretrizes e as garantias constitucionais sejam violadas. Desse modo, a mera inexistência de lei específica que preveja a possibilidade de redução da jornada de trabalho de servidores públicos que tenham filhos ou dependentes com deficiência, sem redução de vencimentos, “não serve de escusa para impedir que seja reconhecido a elas e aos seus genitores o direito à dignidade da pessoa humana e o direito à saúde”3.

De maneira perceptível, tem-se a construção de um novo cenário de conquistas para as pessoas com deficiência e para os seus responsáveis — as quais somam-se, sob a orientação do paradigma dos direitos humanos, às garantias que têm sido reiteradamente positivadas em nossa legislação. Ora, pelo atual nível de desenvolvimento dos direitos humanos e fundamentais, não mais se permite que pessoas com deficiência tenham seus direitos violados ou restringidos por qualquer que seja o motivo, assim como, visto que todos indivíduos devem estar protegidos sob o manto da proteção da dignidade humana, somado ao entendimento do dever do Estado de garantia do preceito aristotélico de igualdade4, a proteção aqui tratada deve ser entendida como um direito básico à pessoa com deficiência, eis que necessita de um regime de trabalho diferenciado, adequado à compatibilização para com a deficiência apresentada.

Assim, a discussão proporcionada pelo tema faz-se de extrema relevância porque, ainda que a pessoa com deficiência tenha alcançado maior proteção na atualidade, não se vislumbra desconsiderar que a realidade dessas pessoas possui especificidades e necessidades, as quais não são vivenciadas por muitos. O caso que ascendeu à Suprema Corte, por exemplo, trata-se de recurso interposto por uma servidora pública estadual contra decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP) que negou a ela o direito de ter a sua jornada de trabalho reduzida a fim de que pudesse cuidar da filha com Transtorno do Espectro Autista5 — que, em razão do § 2° do art. 1° da lei 12.764/12, é considerada pessoa com deficiência, para todos os efeitos legais.

Convém mencionar que o tema foi, inclusive, discutido no âmbito do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que, acatando proposta apresentada pela AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) com apoio da AMAERJ (Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro), editou a Resolução CNJ 343/20, a qual institui condições especiais de trabalho tanto para magistrados(as) quanto servidores(as) com deficiência, necessidades especiais ou doença grave, que sejam pais ou responsáveis por dependentes nessa mesma condição ou, ainda, gestantes e lactantes, consideradas pessoas com mobilidade reduzida (incluído pela Resolução CNJ 481/22) e dá outras providências.

Com advento da referida norma de inclusão e humanização, a AMB produziu um Censo, publicado em 2022, por meio do seu Centro de Pesquisas Judiciais (CPJ/AMB)6, no qual se apresenta que vários magistrados e magistradas encontram-se na condição de responsáveis por pessoa com deficiência. De acordo com o referido censo, de 813 magistrados e magistradas que responderam à pesquisa, pelo menos 218 deles possuem dependentes com deficiência (um ou mais).

Decerto, não se pode ignorar a realidade sobre as peculiaridades do cotidiano de uma pessoa com deficiência, de forma que não há razão para se concluir que a redução de jornada não deva ser estendida a todos os servidores públicos, ainda que sem previsão expressa na legislação estadual ou municipal. Isso porque, dentre eventuais outras razões:

(i) as pessoas com deficiência, em razão da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto 6.949/09)7, do qual o Brasil é signatário, são titulares de direitos que devem ser exercidos de forma plena, sem qualquer forma de discriminação;

(ii) a Constituição Federal, em seu art. 196 e seguintes, prevê o direito à saúde, sendo dever do Estado garanti-lo a todas as pessoas, sem discriminação;

(iii) a igualdade e a não discriminação estão igualmente assegurados em pactos internacionais dos quais o Brasil é signatário, como, por exemplo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), entre outros;

(iv) existe, na legislação nacional, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nacional 13.146/15), que assegura, em seus arts. 10 e 18, respectivamente, “a dignidade da pessoa com deficiência ao longo de toda a vida” e “atenção integral à saúde da pessoa com deficiência em todos os níveis de complexidade”; e

(v) a Constituição Federal, em seu art. 227, caput, como dito antes, também prevê o princípio da prioridade absoluta para a criança e o adolescente.

Nesse ensejo, ante o que está consignado no art. 1º, III, da Constituição Federal, a saber, a dignidade da pessoa humana enquanto princípio fundamental da República, tem-se que além da igualdade formal (perante a lei), também é preciso assegurar a igualdade substancial/material (pela lei) de todos. Ora, levando a sério o princípio da igualdade material, é possível alcançar o entendimento de que as pessoas com deficiência e os seus responsáveis, a um só tempo, têm direito a um tratamento jurídico protetivo, o qual busque minimizar desigualdades sociais estruturais. Por isso, “se os servidores públicos federais, pais ou cuidadores legais de pessoas com deficiência têm o direito a horário especial, [...] os servidores públicos estaduais e municipais em situações análogas também devem ter a mesma prerrogativa”8.

Com isso, ainda que não exista lei específica regulamentando a redução de jornada para servidores estaduais e municipais responsáveis por pessoas com deficiência, agora, entende-se possível a aplicação subsidiária e por analogia da lei 8.112/90, que trata do regime jurídico dos servidores públicos federais civis. À luz, sobretudo, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, não se permite o afastamento da possibilidade, ainda que inexistente previsão legal. A decisão do STF, por certo, auxiliará na uniformização da visão dos Tribunais e não permitirá que situações semelhantes sejam tratadas de formas distintas.

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1 A esse respeito, cf. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 20. ed. rev. e atual. São Paulo: SaraivaJur, 2022.

2 SANTOS, Boaventura de Sousa; NUNES, João Arriscado. Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.) Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 56.

3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Recurso Extraordinário 1.237.867/SP. Relator: Min. Ricardo Lewandowski, 17 de dezembro de 2022. Brasília: STF, 2022, p. 3.

4 A esse respeito, cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991.

5 SERVIDOR estadual e municipal responsável por pessoa com deficiência tem direito a jornada reduzida. Portal STF, Brasília, 22 dez. 2022. Notícias.

6 ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS (AMB). 2º Censo da AMB de magistrados com deficiência, necessidades especiais ou doença grave, e magistrados responsáveis por pessoas na mesma condição [livro eletrônico]. Brasília: AMB, 2022.

7 A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada pelo Brasil em 2008, possui status de emenda constitucional. Trata-se do primeiro tratado internacional de direitos humanos aprovado nos termos do art. 5º, § 3º, da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 45/2004, segundo o qual “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, [...] serão equivalentes às emendas constitucionais” (art. 5º, § 3º, CF).

8 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Recurso Extraordinário 1.237.867/SP. Relator: Min. Ricardo Lewandowski, 17 de dezembro de 2022. Brasília: STF, 2022, p. 3.

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ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS (AMB). 2º Censo da AMB de magistrados com deficiência, necessidades especiais ou doença grave, e magistrados responsáveis por pessoas na mesma condição [livro eletrônico]. Brasília: AMB, 2022. Disponível em: https://cpj.amb.com.br/wp-content/uploads/2023/02/2o-Censo-da-AMB-de-Magistrados-5.pdf. Acesso em: 23 jan. 2023.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2022]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 18 jan. 2023.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Recurso Extraordinário 1.237.867/SP. Relator: Min. Ricardo Lewandowski, 17 de dezembro de 2022. Brasília: STF, 2022. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=
765106754. Acesso em: 20 jan. 2023.

SANTOS, Boaventura de Sousa (org.) Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

SERVIDOR estadual e municipal responsável por pessoa com deficiência tem direito a jornada reduzida. Portal STF, Brasília, 22 dez. 2022. Notícias. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=499524&ori=1. Acesso em: 20 jan. 2023.

Walter Maia
Sócio do escritório Malta Advogados; Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Pós-Graduado em Direito Público pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB); Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) e em Administração pela Universidade de Brasília (UnB).

Thiago Lima
Membro da equipe de Relações Governamentais do escritório Malta Advogados. Graduando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Pesquisador no Programa de Educação Tutorial em Direito da Universidade de Brasília (PET Direito/UnB).

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