Há anos se discute a necessidade de aprovação de um projeto de reforma profunda no sistema tributário brasileiro em busca de um modelo mais atual, simples e isonômico para os contribuintes. Além do evidente impacto direto na economia do país, a tão discutida reforma tributária tem o potencial de atrair investimentos do exterior e ser um importante passo para a entrada do Brasil na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Entretanto, a insatisfação de alguns setores da economia com os projetos em discussão além dos entraves políticos e da necessidade de repartição de receitas entre os entes federativos em um novo modelo sempre impediram uma mudança significativa. A cada novo governo, o assunto surge como promessa de campanha, mas acaba sendo deixado de lado ao longo do mandato.
Com a posse do novo governo eleito em 2022, é possível que essa história tenha um desfecho diferente. Desde o resultado das eleições até os dias de hoje, o tema da reforma tributária tem sido mencionado com frequência por integrantes da atual gestão. Além disso, o novo Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, indicou como Secretário Especial para Reforma Tributária o economista Bernard Appy, que fez parte do grupo Centro de Cidadania Fiscal (C.CiF), que idealizou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 45, um dos projetos de reforma ampla do sistema tributário em discussão no Congresso Nacional já há alguns anos
Nesse cenário de retomada das discussões sobre as propostas apresentadas, é importante que sejam resgatados os principais pontos dos dois projetos de reforma tributária ampla atualmente em discussão no Congresso Nacional, ou seja, as PECs 45 e 110, para que os assuntos mais relevantes sejam examinados com a profundidade devida e endereçados nas discussões que deverão surgir na votação do assunto pelo Poder Legislativo.
As PECs 45 e 110, apesar de semelhantes em alguns aspectos, trazem diferenças significativas em relação a aspectos importantes do sistema tributário, como, os tributos a serem substituídos, a competência para fixação de alíquotas, a possibilidade de concessão de incentivos fiscais, as regras relativas à repartição de receitas, entre outras.
Desta forma, o presente artigo pretende comparar as propostas dos dois projetos e destacar os pontos de atenção que devem ser analisados detalhadamente em razão da sua importância para a economia do País.
(i) O IBS e os tributos a serem substituídos
O que se observa dos dois principais projetos em discussão no Congresso Nacional é que tanto a PEC 45 quanto a PEC 110 buscam a simplificação e a racionalização da tributação sobre o consumo, entendido como a produção e comercialização de mercadorias e a prestação de serviços, cuja tributação atualmente é compartilhada entre a União, os Estados e os Municípios por meio dos seguintes tributos: Imposto sobre Produtos Importados (IPI), contribuição ao Programa de Integração Social (PIS), Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS), Imposto sobre a Circulação de Bens e Serviços (ICMS) e o Imposto Sobre Serviços (ISS).
Portanto, as PECs 45 e 110 propõem a substituição dos principais tributos incidentes sobre o consumo por um novo imposto que seria chamado, nos dois projetos, de Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), além da criação de um imposto específico sobre determinados bens e serviços, que seria chamado de Imposto Seletivo (IS).
A PEC 45, de autoria do Deputado Federal Baleia Rossi, prevê a criação do IBS, que seria instituído por lei complementar federal, e substituiria cinco tributos: IPI, PIS, COFINS, ICMS e ISS. Neste modelo, a fixação da parcela das alíquotas destinadas à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios seria definida por lei ordinária a ser editada por cada ente federado.
Por outro lado, a PEC 110, proposta por diversos Senadores de forma conjunta, estabelece a criação de um IBS de competência estadual, instituído por intermédio do Congresso Nacional, além de uma Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência federal, que substituiriam nove tributos: IPI, IOF, PIS, Pasep, COFINS, CIDE-Combustíveis, Salário-Educação, ICMS e ISS.
Em ambos os casos, o IBS seria um tributo não cumulativo, em que haveria a desoneração da carga tributária de todos os elos que compõem as cadeias produtivas a partir da tributação do valor agregado em cada etapa. Desta forma, a carga tributária total seria centralizada no consumidor final.
(ii) Delimitação das alíquotas do IBS
A delimitação das alíquotas do IBS é um dos pontos polêmicos dos projetos, na medida em que União, Estados, Distrito Federal e Municípios não têm interesse em perder a autonomia em relação à tributação sobre o consumo.
Assim, segundo o projeto da PEC 45, cada ente federativo teria a prerrogativa de fixar uma parcela da alíquota total do IBS por meio de lei ordinária, federal, estadual, distrital ou municipal, que funcionaria como uma “sub-alíquota”.
Segundo este modelo, a alíquota do IBS corresponderia à soma das “sub-alíquotas” aplicáveis aos bens e serviços consumidos em cada um dos Estados e dos Municípios, que poderiam ser ajustadas para mais ou para menos a depender do interesse do ente federado, garantindo certa liberalidade na determinação da carga tributária local.
No modelo proposto pela PEC 110, por e turno, as alíquotas do IBS seriam padronizadas. Seria possível a fixação de alíquotas diferenciadas para determinados bens ou serviços, mas as alíquotas seriam uniformes em todo o território nacional.
(iii) Concessão de benefícios fiscais
Sobre a concessão de benefícios fiscais, a PEC 45 não prevê a possibilidade de concessão de incentivo fiscal, ainda que a liberalidade dos entes federativos na fixação das alíquotas dê, na prática, algum espaço para flexibilidade de alíquotas, a depender do Estado/Município.
Neste aspecto, a PEC 110 permite a concessão de benefícios fiscais mediante lei complementar para setores específicos da economia, como é o caso das operações com alimentos, medicamentos, transporte público coletivo, bens do ativo imobilizado, saneamento básico e educação infantil, ensino fundamental, médio e superior e educação profissional.
Se por um lado o projeto da PEC 110 tenta colocar fim às guerras fiscais que existem atualmente entre Estados e Municípios, visto que a tributação seria uniforme para o mesmo bem ou serviço em todo o território nacional, por outro, permite a concessão de benefícios fiscais para setores específicos da economia.
(iv) Partilha da arrecadação do IBS
Outro ponto bastante discutido é a partilha da arrecadação do IBS entre os entes da federação. No modelo proposto pela PEC 45, cada ente federativo teria a sua parcela na arrecadação do tributo determinada pela aplicação da “sub-alíquota” sobre a base de cálculo do imposto, o que parece ser mais fácil de ser aceito por Estados e Municípios.
A PEC 110, no entanto, estabelece que o produto da arrecadação do IBS será dividido entre Estados, Distrito Federal e Municípios mediante a entrega de recursos a cada ente federativo, conforme a aplicação dos percentuais previstos na Constituição Federal sobre a receita bruta do imposto.
A PEC 45 ainda vincula as parcelas do IBS a despesas com educação, saúde, fundos constitucionais, seguro-desemprego, BNDES, entre outros. O cálculo da receita a ser vinculada seria feito a partir de pontos percentuais definidos em lei por cada um dos entes, denominadas “alíquotas singulares”. A soma das “alíquotas singulares” representaria o valor da “sub-alíquota” do imposto aplicável a cada ente federativo.
Sobre este aspecto, a PEC 110 prevê que a arrecadação do IBS será vinculada a despesas e fundos de acordo com o método fixado nas regras constitucionais propostas pela PEC. Segundo essas regras, será aplicado percentual sobre a arrecadação para definir a entrega dos recursos ou, ainda, um piso mínimo de gastos.
(v) Regras de transição
A respeito da transição do atual modelo para as novas regras sobre a tributação do consumo, a PEC 45 estabelece o prazo de dez anos para a alteração das regras. Durante os dois primeiros anos, seria cobrada uma contribuição com a mesma base do IBS, calculada à alíquota de 1%. Ao longo dos oito anos subsequentes, os atuais tributos incidentes sobre o consumo seriam substituídos pelos novos tributos à razão de um oitavo ao ano.
A PEC 110, por sua vez, prevê uma transição de seis anos. Durante o primeiro ano, também haveria a cobrança de contribuição com a mesma base de cálculo do IBS, devida à alíquota de 1%, sendo que, ao longo dos cinco anos seguintes, os tributos atuais seriam substituídos gradativamente à razão de um quinto ao ano.
Por fim, sobre a transição da partilha de recursos do atual regime de tributação para um novo modelo a ser aprovado pelo Congresso Nacional, a PEC 45 estabelece prazo de transição de cinquenta anos. Durante os vinte primeiros anos, Estados, Distrito Federal e Municípios receberiam o valor relativo à redução de receitas do ICMS e do ISS em razão da extinção destes tributos; o valor do aumento/diminuição da arrecadação em razão das alterações das alíquotas de competência de cada ente federado e a diferença de arrecadação após o recebimento das duas parcelas anteriores, dividido segundo as regras de partilha do IBS.
A PEC 110, por sua vez, propõe uma transição da partilha de recursos de até quinze anos, em que cada ente federativo receberia a respectiva parcela das receitas do IBS de acordo com a participação na arrecadação dos tributos que estão sendo substituídos. Após a implementação do novo sistema, a regra de transição seria progressivamente substituída pela arrecadação do Estado/Município de destino, à razão de um décimo ao ano.
Como se vê, apesar de possuírem o mesmo nome, os projetos de IBSs propostos pelas PECs 45 e 110 possuem diferenças bastante significativas, como, a competência para instituição e cobrança, critérios para definição de alíquotas, concessão de benefícios fiscais, regras de repartição de receitas e transição para o novo modelo de tributação sobre o consumo.
(vi) Imposto Seletivo
Em relação ao Imposto Seletivo, tributo de caráter extrafiscal, a PEC 45 propõe a sua cobrança apenas em relação a determinados bens, serviços ou direitos, com a finalidade de desestimular o consumo desses. Ainda que não haja previsão expressa sobre quais produtos o tributo incidiria, o que deverá ser definido por meio de lei ordinária, caso aprovada a proposta, é possível que o IS incida sobre a venda de produtos, como, tabaco, bebidas alcoólicas, bebidas açucaradas, entre outros alimentos não saudáveis, dado o seu caráter extrafiscal.
De forma semelhante, a PEC 110 prevê a cobrança do IS em operações com bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, mas também estabelece a cobrança do tributo sobre serviços essenciais. Diferentemente do projeto de autoria do C.CiF, a PEC 110 exemplifica bens e serviços que estariam sujeitos ao IS, como é o caso das operações com petróleo e seus derivativos, combustíveis e lubrificantes de qualquer origem, gás natural, cigarros e outros produtos do fumo, energia elétrica, serviços de telecomunicações, bebidas alcoólicas e não alcoólicas e veículos automotores terrestres, aquáticos e aéreos.
É possível observar que o projeto de criação do IS é bastante semelhante nas duas propostas de emenda à Constituição Federal que estão sendo analisadas pelo Congresso Nacional, na medida em que buscam taxar bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente por meio de um tributo estritamente extrafiscal.
(vii) “Simplifica Já”
Por fim, é importante lembrar que também foi proposto um terceiro projeto de reforma tributária chamado “Simplifica Já”, em trâmite no Senado Federal sob a PEC 46 de 2022.
Menos audaciosa do que as PECs 45 e 110, o “Simplifica Já” busca alterar o sistema tributário mantendo a autonomia financeira dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, sem aumento de carga tributária ou deslocamentos de encargos entre setores da economia.
Ao invés de substituir os tributos que incidem sobre o consumo por um só tributo, o “Simplifica Já” propõe a simplificação dos tributos já existentes. Buscando o compartilhamento da tributação do consumo com o local de destino do bem ou do serviço, o projeto prevê a unificação dos cadastros de todos os entes federados, além da uniformização das obrigações acessórias a partir da criação de uma nota fiscal eletrônica nacional para a venda de bens e outra para a prestação de serviços.
A proposta “Simplifica Já” estabelece, ainda, a unificação das leis municipais aplicáveis ao ISS em uma única lei complementar federal que permitiria aos Municípios somente instituir as alíquotas e padronizar as normas aplicáveis ao imposto a partir de um comitê gestor do ISS nacional.
(viii) Conclusão
Como visto acima, apesar de parecerem semelhantes, os projetos de reforma tributária ampla do consumo possuem diferenças significativas que devem ser estudadas e discutidas com profundidade, especialmente diante da expectativa de a pauta da reforma tributária retornar à agenda do Governo Federal em 2023.
Aspectos como, a manutenção de regimes tributários diferenciados, a possibilidade de concessão de incentivos fiscais, a tributação de setores específicos e as regras de transição entre os regimes de tributação merecem atenção especial dos Deputados e Senadores que irão votar os projetos de reforma em discussão, inclusive podendo ser discutidas com a sociedade em audiências públicas a serem convocadas pelo Congresso Nacional.
Aos técnicos no assunto, cabe fiscalizar e contribuir para que as discussões sejam profundas e maduras, colaborando para um novo sistema tributário sobre o consumo mais justo, simples e eficiente para que o país possa atrair investimentos e se tornar mais competitivo no mercado internacional.
Notícias da última semana indicam que o Governo Federal pretende apresentar os principais pontos da PEC 110 para discussão na Câmara dos Deputados, buscando uma aprovação mais célere da reforma tributária ainda em 2023.
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