De início, para falarmos de intervenção federal precisamos assentar alguns conceitos referentes ao federalismo. Afonso Arinos, em seu curso de direito constitucional, explica que o federalismo é uma forma de organização do Estado, que dita o modo pelo qual o poder político é distribuído territorialmente entre os entes da federação. Para Manoel Gonçalves, o Estado federal é um “Estado feito de Estados”1; ou seja, uma forma de organizar um Estado (dito federal) a partir de uma união indissolúvel de outros Estados. Essa descentralização política pressupõe autonomia2 e uma Constituição Federal que preveja o âmbito de atuação de cada ente federado3. Assim, a autonomia de cada ente (garantida por uma descentralização política) para agir dentro de sua esfera de competência, sempre em harmonia com os demais, em uma união indissolúvel de Estados, municípios, Distrito Federal e União, são os fundamentos do federalismo brasileiro.
Dito isso, acerca da intervenção federal, Ana Paula de Barcellos diz que ela é um “mecanismo excepcional (...) destinado a lidar com elementos que rompem com a unidade e a integridade nacionais e/ou com padrões considerados de observância obrigatória e fundamental”4. Para Gilmar Mendes, de modo semelhante, é a atribuição que a União tem de “exercer a competência de preservar a integridade política, jurídica e física da federação”5. Nesse sentido, Ingo Sarlet explica que esse instituo é um mecanismo que assegura, por mais contrário que possa parecer, a integridade e o equilíbrio na federação6.
Em síntese, a intervenção federal é um remédio constitucional pelo qual a União intervém em um ente federado a fim de cumprir com a unidade (política, jurídica e física) da federação, ou com padrões de comportamento vinculantes esperados dos entes.
Cumpre lembrar, aliás, que existe também a possibilidade de Estados intervirem em municípios, tema que foge do escopo do presente trabalho e que, portanto, não será objeto de análise.
Assim, Ingo Sarlet explica que o instituto tem três características fundamentais: a excepcionalidade, limitação da intervenção e taxatividade das hipóteses7. Para Gilmar Mendes, é um aparato drástico que tem como finalidade a manutenção dos princípios fundamentais da Constituição, os quais estão taxativamente elencados no texto.
Por sua excepcionalidade, o texto constitucional elencou poucos casos que justifiquem a União se imiscuir na administração dos entes federados, como o descumprimento de sentença judicial, a garantia da ordem e a invasão estrangeira, casos manifestadamente sensíveis (CRFB/88 art. 34). A justificativa, portanto, para a intervenção na segurança pública do DF está no inciso III do art. 34, ou seja, o comprometimento da ordem pública.
Em continuidade, dado seu caráter limitado, a intervenção deve ser encerrada quando o motivo determinante de sua decretação seja superado. Além disso, a intervenção deve ter uma finalidade clara que limite sua atuação. Por fim, Mendes explica que esse instituto não pode ser usado para punir autoridades que tenham tido comportamentos inadequados com o estabelecido constitucionalmente, o que deve ser feito por outros meios89.
O instituto é previsto entre os artigos 34 e 36 da Constituição Federal, que, em resumo, elencam os casos que justificam a decretação da intervenção pela União, bem como estabelecem parâmetros a serem observados, como a especificação da amplitude dos poderes, o escopo, o prazo de duração e o tempo para que o Congresso Nacional aprove o decreto (CRFB/88 art. 36, §1° e 2°). Veja dispositivos constitucionais relevantes para a análise aqui presente:
Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:
III - pôr termo a grave comprometimento da ordem pública;
Art. 36. A decretação da intervenção dependerá:
§ 1º O decreto de intervenção, que especificará a amplitude, o prazo e as condições de execução e que, se couber, nomeará o interventor, será submetido à apreciação do Congresso Nacional ou da Assembleia Legislativa do Estado, no prazo de vinte e quatro horas.
Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
IV - aprovar o estado de defesa e a intervenção federal, autorizar o estado de sítio, ou suspender qualquer uma dessas medidas.
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
X - decretar e executar a intervenção federal;
Em continuidade, como explica Ana Barcellos, a decretação de uma intervenção federal deve observar alguns ritos, entre os quais a autora elenca a oitiva do Conselho da República e de Defesa Nacional10, de caráter não vinculante. Em seguida, o Decreto deve ser submetido à análise do Congresso Nacional, salvo nos casos dos incisos VI e VII do art. 34 (descumprimento de sentença judicial e violação de princípio constitucional), uma vez que na análise desses casos o poder judiciário já está envolvido11 (CRFB/88 art. 36, §3°).
No caso do decreto 11.377/23, a aprovação foi por unanimidade na Câmara dos Deputados12 e pelo placar de 73 a 8 no Senado Federal13, o que demonstrou, ao que nos parece, um grande apoio político do legislativo à presidência.
Nem sempre a iniciativa para a decretação da intervenção é feita por discricionariedade do presidente da República. É possível que, por ordem do Supremo Tribunal Federal, o chefe do executivo (seguindo o pensamento majoritário da doutrina)14 deva decretar a intervenção. Isso acontece nos casos em que é provida a demanda de uma ação direta interventiva. Cumpre ressaltar, porém, que o presidente é o único legitimado para decretar a intervenção; as hipóteses distintas dizem respeito apenas à atuação do executivo ser de ofício ou por provocação do judiciário15.
A intervenção federal tem como parte de sua natureza jurídica o caráter limitado da atuação, uma vez que deve se interferir de modo restrito e dentro dos limites para assegurar o cumprimento de um preceito constitucional. Nesse sentido, quanto ao conteúdo do texto, Barcellos explica que “o decreto de intervenção deve especificar os termos e a abrangência de sua execução e deve adotar apenas as medidas necessárias para reestabelecer a normalidade institucional”16.
No caso em tela, à luz do decreto 11.377/23, vemos que a justificativa constitucional foi a perturbação da ordem pública, conforme o inciso III do art. 34 da CRFB/88. O art. 1° do decreto, como vemos estabelece o âmbito e tempo da intervenção, o que parece estar alinhado com os requisitos procedimentais de validade17:
Art. 1º Fica decretada intervenção federal no Distrito Federal até 31 de janeiro de 2023.
§ 1º A intervenção de que trata o caput se limita à área de segurança pública.
Gilmar Mendes, acerca do inciso utilizado para justificar o decreto 11.377/23, defende que a perturbação já deve estar instaurada (ao contrário do que previa a Constituição do regime ditatorial de 196718). A causa da perturbação é irrelevante, bastando que o ente não consiga ou não queira lidar com ele de forma satisfatória para a volta à normalidade19. Esse parece, igualmente, ser o entendimento de Ingo Sarlet20.
Tendo isso em vista, é possível afirmar que o decreto 11.377/23 está plenamente de acordo com as disposições constitucionais que regem a intervenção federal. Primeiramente, é inegável o estado de perturbação da ordem legal que foi instaurando a partir dos atos golpistas do dia oito de janeiro de 2023, o que justifica, com base no art. 34, III, a decretação de intervenção.
Por conseguinte, o ato foi assinado pelo presidente da República, pessoa que tem a legitimidade exclusiva de fazê-lo. O documento delimita o âmbito da intervenção (segurança pública do DF), o tempo de duração, seu objetivo e o interventor, bem como as atribuições a ele conferidas.
Dito isso, conclui-se que o Decreto assinado pelo presidente Lula está conforme a legalidade e, além disso, de acordo com a necessidade do cenário político atual. E, além disso, demonstra estar em consonância com o que a doutrina requer para que a intervenção seja feita.
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1 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional [livro digital]. 42 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.
2 Dentro do conceito de autonomia podemos deduzir, como o faz Ana Paula de Barcellos, as noções de autogoverno, autoadministração e auto-organização.
3 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Curso de Direito Constitucional Brasileiro - Coleção Constitucionalismo Brasileiro [livro digital]. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
4 BARCELLOS, Ana Paula. Curso de Direito Constitucional [livro digital]. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.
5 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional [livro digital]. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2022.
6 “O instituto político e jurídico-constitucional da Intervenção opera, a despeito de o quanto isso possa soar paradoxal, como garante da integridade e do equilíbrio da Federação e, portanto, da respectiva autonomia que demarca a condição própria dos seus integrantes” (SARLET, Ingo Wolfgang et al. Curso de direito constitucional [livro digital]. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2022).
7 SARLET, Ingo Wolfgang et al. Curso de direito constitucional [livro digital]. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2022.
8 “A intervenção cessa tão logo superada a sua causa, retornando ao poder a autoridade local afastada provisoriamente (art. 36, § 4º, da CF). A intervenção, enfatize-se, é medida excepcional; interrompe a autonomia da entidade federada, com vistas justamente a restaurar a sua higidez. Não se destina a punir autoridade que se haja comportado de modo destoante do esperado constitucionalmente, o que há de ser feito por outros meios – orienta-se, antes, pelo intuito de preservar a ordem federal como concebida pelo constituinte. Por isso, se até o instante do julgamento da representação para fins interventivos, a situação de anormalidade, por mais grave que tenha sido, se vê debelada, não se decreta a intervenção” (MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional [livro digital]. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2022).
9 “Uma vez transcorrido o prazo estabelecido ou superada a situação que deu azo ao decreto interventivo (art. 36, § 4.º, da CF), cessa a intervenção, ensejando o retorno das autoridades afastadas provisoriamente ao poder” (SARLET, Ingo Wolfgang et al. Curso de direito constitucional [livro digital]. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2022).
10 Para Gilmar Mendes, não é necessário que aconteça antes de a decretação da intervenção.
11 Pensamos que essa dispensa da apreciação do poder legislativo justificada pela presença do poder judiciário é uma demonstração do caráter revisional da submissão do decreto a outro poder. Ou seja, é um dos mecanismos de freios e contrapesos que tanto o judiciário, nos casos dos incisos VI e VII, anto o legislativo exercem a fim de conter eventuais arbítrios do poder executivo.
12 AZEVEDO, Alessandra. Câmara aprova decreto de intervenção na segurança pública do DF. In: Exame. Disponível em .
13 CUNHA, Marcella. Senado aprova decreto de intervenção federal na segurança do DF. In: Rádio senado. Disponível em < https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2023/01/10/senado-aprova-decreto-de-intervencao-federal-na-seguranca-do-df>.
14 Nesse sentido: (i) MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional [livro digital]. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2022; (ii) BARCELLOS, Ana Paula. Curso de Direito Constitucional [livro digital]. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022
15 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional [livro digital]. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2022.
16 BARCELLOS, Ana Paula. Curso de Direito Constitucional [livro digital]. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022. No mesmo sentido: “O decreto de intervenção deve especificar a amplitude da medida, o prazo de sua duração, as condições de execução e, se for o caso, o nome do interventor” (MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional [livro digital]. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2022).
17 “O decreto do Presidente da República deverá (seja de quem for a iniciativa do processo interventivo) ser sempre motivado (...) o Decreto Presidencial deverá definir a amplitude da intervenção, ou seja, determinar o Estado ou Município que atinge e o Poder ou Poderes nos quais se dará a intervenção. Também o prazo deverá estar de algum modo definido (...) de tal sorte que não se tolera uma intervenção por prazo indeterminado, fixada em termos genéricos, inclusive pelo fato de que com isso estaria afetada a autonomia da unidade federada” (SARLET, Ingo Wolfgang et al. Curso de direito constitucional [livro digital]. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2022).
18 “à EC 1/1969, em pleno apogeu da Ditadura Militar, mitigou tal requisito e já permitia a intervenção em casos de simples perturbação da ordem ou ameaça de sua irrupção e até mesmo no caso de corrupção do poder público estadual” (SARLET, Ingo Wolfgang et al. Curso de direito constitucional [livro digital]. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2022).
19 “Ao contrário do que dispunha a Constituição de 1967, não se legitima a intervenção em caso de mera ameaça de irrupção da ordem. O problema tem de estar instaurado para a intervenção ocorrer. Não é todo tumulto que justifica a medida extrema, mas apenas as situações em que a desordem assuma feitio inusual e intenso. Não há necessidade de aguardar um quadro de guerra civil para que ocorra a intervenção223. É bastante que um quadro de transtorno da vida social, violento e de proporções dilatadas, se instale duradouramente, e que o Estado-membro não queira ou não consiga enfrentá-lo de forma eficaz, para que se tenha o pressuposto da intervenção. É irrelevante a causa da grave perturbação da ordem; basta a sua realidade” (MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional [livro digital]. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2022).
20 “A expressão “grave comprometimento da ordem pública” há de ser, portanto, interpretada, de modo a contemplar todo e qualquer distúrbio social violento, continuado, e em face do qual o Estado-membro (ou Estados) não tenha logrado (ou sequer o tenha tentado) resolver o impasse de modo autônomo e eficaz.” (SARLET, Ingo Wolfgang et al. Curso de direito constitucional [livro digital]. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2022).