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E agora? Como fica a coisa julgada tributária?

O espaço para criatividade do juiz é menor no direito tributário assim como é indesejável o afastamento da doutrina consolidada, sob pena de se comprometer indevidamente o valor segurança jurídica no sentido de previsibilidade.

6/2/2023

Em 1º de fevereiro de 2023, data da abertura do Ano Judiciário, a primeira sessão plenária do STF foi dedicada à retomada do julgamento de dois recursos extraordinários em que se discute o perfil da coisa julgada em matéria tributária. São eles o RE 9.492.97/CE e o RE 9.552.27/BA, que, respectivamente, estão relacionados aos Temas 881 e 885 da repercussão geral.

Ambos os recursos versam sobre a CSLL; porém, a ratio das decisões do STF deverá, é claro, ser a base de decisões futuras a respeito de todos os casos em que já há coisa julgada e em que se discutiu sobre relações tributárias que se repetem no tempo (=relações continuativas ou de trato sucessivo), o que abrange outros tributos como, por exemplo, o IRPJ, o IPI e o ICMS.

O que de essencial se discute nesses dois recursos extraordinários?

Em 1988 foi editada a lei 7.689, que instituiu a Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido – CSLL. Este tributo, que passou a ser exigido das empresas a partir daquele mesmo ano, deveria ser calculado – como o próprio nome sugere – sobre o lucro das pessoas jurídicas.

No final da década de 80 e início dos anos 90, muitas empresas ingressaram com ações declaratórias  de inexistência de relação jurídico-tributária entre o fisco e algumas empresas, com base na inconstitucionalidade da contribuição social em exame, pois: 1º) sua cobrança caracterizaria bis in idem, pois o lucro já é base de cálculo do Imposto Sobre a Renda da Pessoa Jurídica – IRPJ; e 2º) a exigência, no mesmo exercício financeiro em que fora editada a lei instituidora da CSLL (1988), violaria o princípio da anterioridade tributária.

Também foram impetrados mandados de segurança, dos tradicionais (contra ato já praticado) e preventivos, com o mesmo fundamento.

Muitos contribuintes obtiveram sucesso, com decisões transitadas em julgado, já no início da década de 90, no sentido de que a CSLL seria inconstitucional. Na grande maioria dos casos a Fazenda Nacional não ingressou com ação rescisória.

Em junho de 1992, o STF, no julgamento do RE 1.467.33/SP (no controle difuso, portanto), decidiu pela constitucionalidade da CSLL, orientação esta que passou a ser adotada no julgamento de outros recursos extraordinários – como, por exemplo, no RE 2.514.53/RN (1999), no RE 5.783.83/AC (2006) e no RE 1.469.07/RN (2006).

Em 2007, no exercício do controle concentrado de constitucionalidade, o STF decidiu que a CSLL seria constitucional, mas que o tributo somente poderia ser cobrado a partir de 1989, em razão do princípio da anterioridade.

Essa decisão foi proferida na ADIn 15, que havia sido ajuizada em 1989 pela Confederação das Associações de Microempresas do Brasil.

Mas o fato é que, antes mesmo do julgamento da ADIn 15, a conduta da União era resultante do entendimento de que as decisões do STF, proferidas no controle difuso, teriam o condão de rescindir, automaticamente, todas as decisões judiciais transitadas em julgado que haviam beneficiado contribuintes com o reconhecimento da inexigibilidade da CSLL.

Para a Fazenda Nacional, que adota obviamente o entendimento que a favorece, os efeitos das decisões proferidas em recursos extraordinários “avulsos” têm efeitos rescisórios erga omnes, o que dispensaria o ajuizamento de ação rescisória. O acórdão proferido em 2007, na ADIn 15, fez com que a tese fazendária ganhasse corpo: se decisões proferidas pelo STF, no controle difuso, já seriam suficientes para afastar a coisa julgada derivada de relação tributária de trato continuado (como é o caso da CSLL), mais força ainda para esse fim teria o acórdão proferido no controle concentrado.

Consequentemente, os particulares, que pautaram suas condutas conforme a coisa julgada que os favorecia, passaram a ser autuados. Foram lavradas notificações de lançamento e autos de infração, por meio dos quais se cobraram valores relativos à CSLL, multa de mora (75%) e SELIC.

As empresas ingressaram, naturalmente, com ações judiciais buscando não apenas a anulação dessas cobranças, mas que fosse reconhecido que a coisa julgada permaneceria hígida mesmo após decisões do STF (proferidas no controle difuso e/ou no concentrado).

É nesse contexto que foram interpostos os recursos extraordinários subjacentes aos Temas 881 e 885 da repercussão geral.

No RE 9.492.97/CE (Tema 881), cujo relator é o Ministro Edson Fachin, o que se discute é se as decisões tomadas pelo STF no controle concentrado (ADIn e ADC, por exemplo) afastam, ou não, automaticamente, os efeitos de decisões judiciais transitadas em julgado que sejam contrárias à tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal.

Na sessão de 2 de fevereiro de 2023, o relator proferiu voto no sentido de dar provimento ao recurso da União, para reconhecer que as decisões tomadas em, por exemplo, ADIn ou ADC, tornam automaticamente sem efeito a coisa julgada derivada de relação tributária de trato continuado, devendo, nestes casos, ser observados os princípios da irretroatividade e da anterioridade.

Em razão da necessidade de se proteger a confiança dos particulares acobertados pela coisa julgada (segurança jurídica), o relator propôs a modulação dos efeitos do acórdão, para que atinjam fatos geradores ocorridos a partir da data da publicação da ata de julgamento.

Já em relação ao RE 9.552.27/BA, de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, a discussão é sobre a possibilidade, ou não, de decisões do STF, tomadas no controle difuso (em recursos extraordinários, julgados ou não sob o rito da repercussão geral), terem efeito rescisório de decisão judicial transitada em julgado que, ao versar sobre relação tributária de trato continuado, contrariar a orientação dada pela Corte Constitucional.

Em seu voto, o relator propôs a fixação da seguinte tese: “1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo. 2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo”.

Os Ministros Nunes Marques e Luiz Fux acompanharam integralmente os relatores.

O Ministro Gilmar Mendes divergiu apenas em relação à proposta de modulação apresentada pelo Ministro Edson Fachin, por entender que não haveria razões de segurança jurídica que justificassem tal medida. Nesse mesmo sentido votaram os Ministros André Mendonça, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli, Luís Roberto Barroso e Cármen Lúcia.

A nosso ver, uma decisão em que se aborda genericamente o que deve ocorrer quando da superveniência do controle concentrado em sentido inverso àquele adotado em sentenças anteriores, transitadas em julgado, não poderia jamais ser genérica. Isso porque a exigibilidade do crédito tributário pode ser questionada por diversas espécies de ações e a coisa julgada não tem o mesmo “desenho’ em todas elas.

Nem mesmo o fato de se tratar de decisões a respeito de relações tributárias continuativas pode ter o condão de disfarçar o desacerto desta decisão, principalmente por ser genérica.

Esta afirmação não pode ser feita genericamente porque existem várias formas de se questionar a legitimidade da exigibilidade de um crédito tributário.

Talvez as quatro principais sejam o mandado de segurança, o mandando de segurança preventivo, a ação anulatória e a ação declaratória.

A tendência da doutrina sempre foi a de se considerar que a coisa julgada que se formava sobre decisão a respeito da inexigibilidade do crédito tributário proferida em ação declaratória tinha o condão de projetar os efeitos dessa sentença para sempre, no futuro.

E ainda havia aqueles que sustentavam que esse mesmo raciocínio deveria ser aplicado para resolver a situação daquele contribuinte que entrava com um mandado de segurança, apesar de o mandado de segurança não ser uma ação declaratória. Segundo essa parcela da doutrina, quando alguém pleiteava não ter que pagar determinado tributo com fundamento na sua inconstitucionalidade, pedindo, por exemplo, em mandado de segurança, a anulação de um auto de infração específico, não teria sentido fazer com que esse contribuinte tivesse que impetrar um mandado de segurança por ano.

Portanto, doutrina autorizada chegou a entender que a coisa julgada gerada no mandado de segurança tradicional, também tinha o condão de estender os seus efeitos no tempo, para o futuro, para sempre, podendo ser afastada apenas se mudasse a lei ou se mudassem as circunstâncias fáticas. Mas deixemos isso de lado...

Na doutrina, parece não prevalecer a posição segundo a qual uma decisão superveniente, ainda que em controle concentrado de constitucionalidade, pudesse ter o condão de afastar por si só, automaticamente, independentemente do ajuizamento de ação rescisória, em qualquer caso, a autoridade da coisa julgada.

Isso porque a coisa julgada tem alcances (âmbitos de abrangência objetivos ou limites objetivos) diferentes, e isso depende do pedido que tenha sido feito e da sentença que tenha sido proferida, acolhendo-o.

Vamos abordar alguns exemplos: como dissemos há pouco, nas ações declaratórias a coisa julgada é a mais ampla possível. A sua amplitude acontece em grau máximo e o resultado do que se julga só pode ser afastado se mudam os fatos ou se muda a lei. O que transita em julgado numa ação declaratória em que se pleiteia que o Judiciário diga que o tributo não é exigível é uma declaração quanto à sua inexigibilidade.

Diferentemente acontece com o mandado de segurança, que tem como  alvo um ato específico, atacado, sob  fundamento da inconstitucionalidade da cobrança. Nestes casos, pode-se cogitar em um efeito mais reduzido da coisa julgada, situação que poderia comprometer a produção de efeitos da decisão depois de uma decisão no controle concentrado, caso se tratasse de relação jurídica tributária continuativa. O mandado de segurança impetrado no ano seguinte seria improvido.  O mesmo se deve dizer relativamente às ações anulatórias, cujo pedido e a correlata decisão têm um alvo inteiramente determinado.

Mas quanto às ações declaratórias, de fato, a nosso ver, não há como dizer, nem segundo a doutrina mais “liberal”, que elas seriam atingidas automaticamente, sem a necessidade do uso da ação rescisória,  por uma mudança de posição do STF, ainda que materializado em edição de precedente vinculante ou em decisão de controle concentrado. Se a própria lei não pode retroagir se o preço desta retroação é o de atropelar a coisa julgada, com certeza não pode também uma alteração dos rumos da jurisprudência, ainda que por meio de precedente vinculante ou julgamento de ações com Adin, Adecon ou ADPF.

Ademais, uma decisão genérica em que se alude, pura e simplesmente, ao comprometimento da coisa julgada, sem que se façam as necessárias diferenças entre as ações que a essas coisas julgadas deram origem, faz do art. 525, §15º, letra morta... e é de se notar que o legislador já prevê um prazo diferenciado para a propositura da ação rescisória, mas parece que isso não foi suficiente: quer se dispensar o uso da ação rescisória!

Lamenta-se, aqui, o fato de a doutrina estar paulatinamente perdendo a sua importância, talvez por “culpa sua”... porque tenha deixado de exercer o seu papel. Sempre nos pareceu que o estudioso do direito, que escreve livros, manuais, para ensinar o direito aos alunos, não pode, de forma alguma, deixar de conhecer bem a jurisprudência nacional, de citar julgados de vários tribunais mas, inclusive e principalmente, dos tribunais superiores. É claro que a jurisprudência tem que ser estudada, levada em conta. O STF, aliás, vem contribuindo de forma elogiável com a construção do próprio direito!

Mas a doutrina não pode se limitar a fazer críticas ou elogios a acórdãos. Será que a doutrina não se transformou nisso?

Se isso correu, é uma pena. Afinal, a ciência do direito é construída a partir de várias mãos e de várias cabeças: tenho sustentado, repetidamente e insistentemente, que o Judiciário desempenha (e deve desempenhar mesmo!)  um papel muito importante na construção do direito. Temos aplaudido de pé o sistema de precedentes trazidos pelo novo código!

Mas é importante que os tribunais tenham a consciência de que eles não podem construir o direito sozinhos.

Há certas áreas do direito em que o Judiciário é mesmo o protagonista, como, por exemplo, no que diz respeito aos avanços no direito de família, ou no que tange aos direitos fundamentais.

Em contrapartida, há certas outras áreas do direito orientadas por princípios menos flexíveis, em que o respeito à legalidade estrita é mais relevante porque se sobressaem os valores segurança jurídica e previsibilidade. É exatamente o caso do direito tributário, do direito penal, e do processo!

Portanto, exatamente nesses campos, o espaço para a criatividade judicial e a possibilidade do afastamento das regras sobre as quais, tradicionalmente, se manifesta a doutrina, não são desejáveis, sob pena de gerar uma indesejável perturbação social.

Por último e ainda que não tenhamos razão em nada do que dissemos, de uma coisa temos certeza:  justamente nesses campos do direito em que a segurança jurídica parece ser um valor levado a sério, as cortes superiores deveriam se preocupar mais em manter sua jurisprudência estável. Mudar com frequência a interpretação das normas de direito tributário equivale a alterar as regras no meio do jogo!

A modulação poderia resolver..., mas como modular? Levando em conta quais critérios? Como se sabe, a modulação é um instituto novo, e todos nós estamos aprendendo a lidar com ela. O ideal mesmo, a nosso ver, é que a jurisprudência não se altere com frequência nestes ramos do direito em que a previsibilidade é absolutamente imprescindível, para gerar tranquilidade social.

Teresa Arruda Alvim
Sócia do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados. Livre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC/SP.

Smith Barreni
Sócio do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados. Mestre em Direito pela UFPR e doutor em Direito pela PUC/SP.

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