O instituto da suspensão de decisão contrária ao Poder Público, comumente chamado de suspensão de segurança, sofre, desde a sua origem, verdadeira crítica por parte da doutrina, justamente por ser, nas palavras de Venturi1, uma “medida processual controvertida” e que só deve ser utilizada em casos excepcionalíssimos.
Suas origens no direito brasileiro, as quais remontam à lei 191/36 – que regulava o mandado de segurança previsto na Constituição Federal de 1934 –, estão estritamente ligadas à existência de decisões judiciais que, além de contrárias ao Poder Público, representavam verdadeira ameaça ou grave violação à ordem, à saúde ou à segurança pública.
Criou-se, portanto, no ordenamento jurídico brasileiro, um instituto jurídico que não representa um recurso processual, mas que tem o poder de suspender a eficácia de uma decisão judicial em face da Administração.
Na tentativa de conceituar o instituto, Cunha2 retrata a dificuldade de alguns autores em definir a sua natureza jurídica, descrevendo que há posicionamentos no sentido de que ele seja: a) um sucedâneo recursal; b) um incidente processual; ou c) uma ação cautelar específica.
Relata, ainda, o autor, que embora os tribunais superiores entendam que o instituto traga uma atividade político-administrativa, o certo é que, como incidente, possui nítida feição judicial, revelando-se como uma espécie de tutela provisória de contracautela.
No estudo presente, para esclarecimento, o instituto é encarado como atividade exclusivamente judicial, sobretudo porque gera efeitos imediatos e diretos à uma decisão judicial.
Não é novidade que a própria constitucionalidade do instituto vem sendo amplamente debatida pelos doutrinadores, a exemplo de Bueno3, que o entende como inconstitucional.
Entretanto, para este trabalho o instituto é considerado constitucional, seguindo a linha adotada pelo jurista capixaba Marcelo Abelha Rodrigues4.
Nesse passo, Zavaski , preocupado com a temática descreve que, embora constitucional, o Supremo Tribunal Federal entende que o incidente, de caráter excepcional, deve ser aplicado com parcimônia e à base de interpretação restrita.
E não é outro o cuidado que se deve ter com o referido pedido. Ora, em verdade, a suspensão de segurança se revela como um curinga processual do Poder Público, podendo, em razão da generalidade dos bens a que tutela – a ordem, a saúde, a segurança e a economias públicas –, ser banalizado no seu uso.
Demais disso, não é raro encontrar decisões nesse âmbito avaliando, mesmo que de forma mínima, a juridicidade dos atos combatidos, o que hoje é denominado juízo mínimo de prelibação.
Em que pese o pedido em estudo esteja previsto nas leis 12.016/09 (mandado de segurança), 7.347/1985 (ação civil pública), 8.437/98 (cautelares contra atos do Poder Público), 9.507/97 (habeas data), 8.038/90 (normas procedimentais perante o STJ e o STF), Cunha6 entende que:
Atualmente, contudo, o pedido de suspensão cabe em todas as hipóteses em que se concede tutela provisória contra a Fazenda Pública ou quando a sentença produz efeitos imediatos, por ser impugnada por recurso desprovido de efeito suspensivo automático. Daí se poder dizer que, hoje em dia, há a suspensão de liminar, a suspensão de segurança, a suspensão de sentença, a suspensão de acórdão, a suspensão de cautelar, a suspensão de tutela antecipada e assim por diante.
Direcionando o tema para um viés constitucional, Cunha7 traz a preocupação acerca do contraditório, reforçando que este princípio não é uma faculdade do juiz, embora Northfleet8 entenda que, por não ter natureza de recurso e nem de ação, o incidente não comporta a realização do contraditório.
Pretzel9 relembra que o Min. Marco Aurélio de Mello, integrante do Supremo Tribunal Federal, no julgamento de um agravo interno em suspensão de tutela antecipada (STA 389), reforçou que a preservação do contraditório é uma necessidade, pois se trata de uma garantia constitucional.
Assis10, seguindo a mesma linha de pensamento, reflete que, com a vigência do Código de Processo Civil de 2015, e o consequente alcance conferido ao contraditório, a oitiva do interessado é obrigatória.
Percebe-se, destarte, que a aplicação do contraditório à suspensão de segurança foi encarado como um problema, pois a legislação específica acima referida é um tanto silente acerca da sua aplicação.
Fala-se isso porque, embora se tenha previsto nela a possibilidade de interposição do agravo interno em face da decisão que deferir o pedido de suspensão, o art. 4º da lei 8.437/92 e o art. 25 da lei 8.038/90 (estendida às sentenças proferidas em ação popular e ação civil pública por disposição expressa do art. 4º, §1º da lei 8.437/92) preveem que o Presidente do Tribunal “poderá” ouvir o autor e o Ministério Público antes de julgar o pedido.
Ocorre que tal faculdade representa verdadeira violação ao princípio do contraditório, devendo ela ser afastada na prática.
Rodrigues, em passagem de sua grandiosa obra sobre o tema, se posiciona no mesmo sentido:
Assim, bem por isso, pensamos que nenhuma lei poderá usurpar o direito do contraditório, muito menos essas que cuidam do incidente de suspensão de execução requerido ao presidente do tribunal. Assim, não existe a faculdade de se dar ou não o contraditório, uma vez que tal princípio é cláusula pétrea (art. 60, §4.º, IV, da CF/88), ínsita e indissociável dos direitos e garantias individuais e coletivas.11
Por óbvio que, nos casos de extrema gravidade e urgência e sendo plausível o direito invocado, é permitido ao julgador deferir o pedido inaldita altera parte, diferindo o contraditório para momento posterior.
Mas isso não quer dizer que ao autor só será possível interpor o agravo interno. Nesse caso, a decisão deve ser encarada como provisória, permitindo-se que ele possa se manifestar e, exercendo o contraditório, contribuir com a formação do convencimento do tribunal.12
Da mesma forma deve ser entendido em relação ao Ministério Público.
Essa é a essência do contraditório dinâmico, vale dizer, o poder influenciar na decisão judicial.
Malgrado se tenha conhecimento que alguns doutrinadores – Carvalho13 e Bezerra14 – e a jurisprudência de muitos tribunais entendam que a interposição do agravo supre a necessidade de obediência ao contraditório, o fato é que, com a releitura do princípio no modelo cooperativo de processo, a manifestação prévia do(s) interessado(s), aí incluído o Ministério Público, à decisão final do presidente parece ser a medida mais adequada.
Destarte, recebido o pedido de suspensão de segurança, poderá o presidente adotar uma das seguintes condutas: a) determinar a emenda ou complementação da petição; b) indeferir ou deferir, de forma provisória e sem ouvir a parte contrária e o MP (postergado), o pedido de suspensão; c) determinar a intimação do autor e a oitiva do Ministério Público antes de decidir de forma definitiva.
Em igual sentido, o respeito à vedação da decisão surpresa, no que for possível aplica-la, parece ser imposto também ao procedimento da suspensão de segurança, afinal, conforme o art. 1º do CPC15: “O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil , observando-se as disposições deste Código.”
O julgador, dessa forma, não pode decidir sobre matéria que não tenha sido dado às partes o direito de se manifestar previamente, sob pena de nulidade dessa decisão.
Nessa perspectiva, o polêmico procedimento do pedido de suspensão de segurança deve ser reinterpretado com as concepções ou tendências do modelo colaborativo do processo.
Não é mais concebível que, no atual estágio do processo civil, se possa permitir o aviltamento dessa garantia constitucional, em especial num procedimento que representa um curinga processual do Poder Público em face do particular.
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1 VENTURI, Elton. Suspensão de liminares e sentenças contrárias ao Poder Público. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 28.
2 CUNHA, Leonardo Carneiro. A Fazenda Pública em juízo. 15. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2018 , p. 583.
3 BUENO, Cassio Scarpinella. A nova lei do mandado de segurança. 2. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p. 550.
4 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Suspensão de segurança: sustação da eficácia de decisão judicial proferida contra o poder público. 4 ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2016, p. 205.
5 ZAVASKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 7. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 79.
6 CUNHA, Leonardo Carneiro. A Fazenda Pública em juízo. 15. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2018 , p. 583.
7 CUNHA, Leonardo Carneiro. A Fazenda Pública em juízo. 15. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2018 , p. 583.
8 NORTHFLEET, Ellen Gracie. Suspensão de sentença e de liminar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, n. 97, pg. 184).
9 PRETZEL, Bruna Romano. O interesse público no Supremo Tribunal Federal: legitimidade e governabilidade na suspensão de decisões judiciais. Tese (Mestrado em Filosofia e Teoria Geral do Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. São Paulo, p. 84.
10 ASSIS, Araken de. Manual dos recursos [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 805.
11 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Suspensão de segurança: sustação da eficácia de decisão judicial proferida contra o poder público. 4 ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2016, p. 208.
12 CUNHA, Leonardo Carneiro. A Fazenda Pública em juízo. 15. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2018 , p. 596.
13 CARVALHO, Cesar Arthur Cavalcanti de. O instituto da suspensão da decisão judicial contrária ao Poder Público: um instrumento de proteção do interesse público. Recife: Fundação Antônio dos Santos Abranches, 2008. p. 113-119.
14 BEZERRA, Isabel Cecília de Oliveira. Suspensão de tutelas jurisdicionais contra o Poder Público. Belo Horizonte: Fórum, 2009. n. 7.4.2.2, p. 209.