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Direito Eleitoral e a essência da formação jurídica

Pluralismo e diversidade não são valores etéreos em uma sociedade complexa, mas valores estruturantes com uma série de ramificações práticas que vão desde o alistamento plural até o respeito ao resultado das eleições, na compreensão do que se pode chamar de integridade eleitoral.

2/2/2023

As diretrizes da educação pública, ou a falta delas, condicionam não apenas o florescimento individual, mas a estrutura social. Ideias propulsionam o pensamento e as ações na relação do indivíduo consigo e com o mundo. A Constituição Federal Brasileira (art. 205) foi lapidar ao prever que a educação visa ao pleno desenvolvimento humano e deve preparar o indivíduo para o trabalho e para o exercício da cidadania.

A cultura da paz e a proteção dos direitos humanos requerem o compromisso de todos. Cultura é cultivo. Quanto mais se avança na conquista do conhecimento, maior deve ser o comprometimento com as questões sociais, sobretudo diante de desafios como a manipulação das novas tecnologias e da produção científica, para que o saber seja, ao mesmo tempo, poder individual e elemento de transformação social.

Nesse sentido, a Declaração Mundial sobre Educação Superior no Século XXI, da Unesco, reconhece ser uma missão desse nível educacional: 1b) prover um espaço aberto de oportunidades para o ensino superior e para a aprendizagem permanente, oferecendo uma ampla gama de opções e a possibilidade de alguns pontos flexíveis de ingresso e conclusão dentro do sistema, assim como oportunidades de realização individual e mobilidade social, de modo a educar para a cidadania e a participação plena na sociedade, com abertura para o mundo, visando construir capacidades endógenas e consolidar os direitos humanos, o desenvolvimento sustentável, a democracia e a paz; e 1d)  contribuir para a compreensão, interpretação, preservação, reforço, fomento e difusão das culturas nacionais e regionais, internacionais e históricas, em um contexto de pluralismo e diversidade cultural1.  Algumas palavras foram destacadas, para ressaltar o compromisso do ensino superior geral com a cidadania, a democracia e o pluralismo.

Apesar da diretriz internacional e da previsão constitucional quanto à preparação para o exercício da cidadania, a missão cívica vem sendo relegada ante o pragmatismo profissional. Essa propensão preocupa diante da percepção de que, sem formação cidadã, o mais competente técnico pode ignorar o seu compromisso com a sociedade, desbotando as questões éticas relacionadas à solidariedade e ao engajamento social. Os indivíduos passam a agir como se fossem ilhas, repercutindo na compreensão da importância das políticas públicas e das instituições.

A questão se agrava quando se constata que, em relação à formação jurídica brasileira, o Direito Eleitoral, conteúdo diretamente relacionado à compreensão da cidadania e das regras do processo eleitoral, não é obrigatório nos Cursos de Direito.

Nesse contexto, a Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP) agiu sabiamente quando enviou ao Conselho Nacional de Educação (CNE), em janeiro de 2023, ofício a respeito da inclusão dos estudos de Direito Eleitoral dentre os componentes curriculares mínimos obrigatórios estabelecidos, pela Resolução CNE 5 de 20182, para os Cursos de Direito do Brasil.

A relação entre educação jurídica e democracia também já tem sido discutida em programas de pós-graduação3, gerando debates e pesquisas sobre a possibilidade de o ensino jurídico ser, em algum nível, antidemocrático.

Em fala recente, o novo Ministro da Educação, Camilo Santana, destacou a importância de os(as) alunos(as) aprenderem sobre Democracia, Liberdade de Expressão e Política já nas escolas4.

Respeitar a democracia, as instituições, a dinâmica dos poderes, conhecer os limites e exercício legítimo da liberdade de expressão, assim como a importância da política para a vida em sociedade, mostrou-se essencial nos últimos 04 (quatro) anos, em que se deu o fortalecimento dos espaços de discussão nas redes sociais, o aumento dos discursos de ódio e da desinformação. Pensar e repensar a educação no século XXI é urgente, pois há grandes desafios políticos e tecnológicos a serem enfrentados, como bem nos alerta o historiador Yuval Harari, em seu livro 21 lições para o século XXI5.

É nesse contexto que entendemos despontar a necessidade, agora inadiável, do estabelecimento do conteúdo de Direito Eleitoral como obrigatório nos Projetos Pedagógicos de Cursos, ao lado de Direito Financeiro, Digital, Constitucional, Penal, dentre outros.

A educação, como direito público-subjetivo (§2º, art. 208, da CF/88) e direito fundamental social (art. 6º da CF/88), é fornecida e regulada pelo Estado em seus diversos níveis federativos6, podendo, ainda, ser prestada por particulares, desde que a iniciativa privada cumpra as normas gerais da educação nacional e submeta-se à regulação administrativa e aos processos de autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público.

Tanto a educação pública, quanto a prestada por estabelecimentos privados, devem se submeter às Diretrizes Nacionais, as quais são frutos de estudos técnicos que buscam sempre garantir um núcleo básico obrigatório de componentes curriculares, os quais têm como finalidade garantir uma adequada formação do egresso de acordo com as necessidades acadêmicas e do próprio mercado de trabalho.

A abertura de Cursos de Graduação, no Brasil, passa por um processo de regulação administrativa e por avaliações periódicas de desempenho. Esse processo engloba alguns atos, como de autorização para funcionamento do projeto do curso, depois pelo reconhecimento e validação do projeto implantado e, após o reconhecimento do Curso, este passará, constantemente, por atos de recredenciamento junto ao Ministério da Educação. Todo esse processo regulatório visa garantir que os Cursos ofertados, sejam eles públicos ou privados, estejam de acordo com todas as diretrizes estabelecidas pelo Poder Público. Como essas diretrizes não são estanques e passam por constantes mudanças e aperfeiçoamento, o processo de regulação acaba sendo bastante intenso, exigindo uma gestão educacional democrática e atenta.

O Núcleo Docente Estruturante (NDE) dos Cursos de Graduação, órgão colegiado composto por professores de carreira, é o responsável por implantar o Projeto Pedagógico do Curso, assim como atualizá-lo. Ademais, o NDE tem liberdade ainda para instituir, nas grades curriculares, conteúdos para além dos mínimos obrigatórios, de acordo com a região onde o Curso está situada e o tipo de egresso que se pretende formar. Em relação aos Cursos de Direito, é a Resolução CNE/CES nº 5/20187 que estabelece as Novas Diretrizes Curriculares Nacionais. Ela expressa o compromisso de todas as graduações em Direito com a prestação da justiça, o desenvolvimento da cidadania (art. 3º) e o pluralismo cultural (art. 4º, X). Em 2021, a citada resolução foi alterada pela CNE/CES 2/218.

Não obstante o compromisso acima elencado nos arts. 3º e 4º, X, o art. 5º da Resolução CNE/CES 5/18 estabeleceu os seguintes conteúdos obrigatórios, excluindo o Direito Eleitoral:

Art. 5º O curso de graduação em Direito, priorizando a interdisciplinaridade e a articulação de saberes, devera' incluir no PPC, conteúdos e atividades que atendam às seguintes perspectivas formativas:

I - Formação geral, [...] Antropologia, Ciência Política, Economia, Ética, Filosofia, História, Psicologia e Sociologia;

II - Formação te'cnico-juri'dica [...] Teoria do Direito, Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Tributário, Direito Penal, Direito Civil, Direito Empresarial, Direito do Trabalho, Direito Internacional, Direito Processual; Direito Previdenciário, Direito Financeiro, Direito Digital e Formas Consensuais de Solução de Conflitos;

III - Formação pra'tico-profissional, que objetiva a integração entre a prática e os conteúdos teóricos desenvolvidos nas demais perspectivas formativas [...]. – sem destaque no original

O parágrafo terceiro do artigo acima referenciado, reconhecendo a importância da diversificação curricular para o desenvolvimento de conhecimentos de importância regional, nacional e internacional, coloca como facultativa a introdução, nas matrizes dos Cursos, de conteúdos como Direito Ambiental, Direito Eleitoral, Direito Esportivo, Direitos Humanos, Direito do Consumidor, Direito da Criança e do Adolescente, Direito Agrário, Direito Cibernético e Direito Portuário.

Por isso, em alguns Cursos de Direito o conteúdo de Direito Eleitoral já é obrigatório e em outros não. Como, até o momento, esse conteúdo não integra o núcleo mínimo estabelecido pelas Diretrizes Nacionais, será o Núcleo Docente Estruturante (NDE) que decidirá pela sua obrigatoriedade - ou não - na matriz curricular.

Sabemos, contudo, que muitas matrizes curriculares são construídas com base apenas nos conteúdos mínimos, distribuídas na carga horária igualmente mínima (3.700h para o Curso de Direito), para tornar o curso mais competitivo e atraente do ponto de vista das disputas de mercado.

Não podemos negar que, conforme indicadores, o aumento do número da oferta de Cursos de Direito tem sido acompanhado por uma menor preocupação com a qualidade na formação de seus egressos. Daí por que, diante desse contexto, torna-se ainda mais importante e relevante a definição dos conteúdos mínimos obrigatórios e como ele serão articulados no ensino, pesquisa, extensão e formação prática. O lucro não pode se sobrepor à defesa da nossa democracia e da defesa completa do nosso processo eleitoral.

O que se tem buscado é justamente demonstrar a importância do Direito Eleitoral para a formação básica dos bacharéis em Direito. Apesar de o Direito Constitucional, conteúdo obrigatório, conter normas eleitorais, estas só representam uma pequena parte da realidade integrante da ciência e estudos técnicos que o ramo do Direito Eleitoral contempla. Há todo um microssistema eleitoral, composto de diversas normas, assim como uma grande quantidade de estudos que são essenciais para a formação base de um bacharel em Direito.

Nos últimos anos, o ajuizamento de ações eleitorais se tornou elemento crucial à dinâmica do poder político (e, portanto, à Constituição viva). Ao mesmo tempo, o conhecimento das fases e da metodologia do processo eleitoral, assim como do funcionamento dos Partidos Políticos e da Justiça Eleitoral se revelam medulares para a vivência democrática e para a compreensão da arquitetura institucional e normativa, não apenas em um nível sofisticado do saber, mas em suas nuances básicas. Pluralismo e diversidade não são valores etéreos em uma sociedade complexa, mas valores estruturantes com uma série de ramificações práticas que vão desde o alistamento plural até o respeito ao resultado das eleições, na compreensão do que se pode chamar de integridade eleitoral.

O lado reverso desse conhecimento, a ignorância sobre o tema, além de impedir o florescimento individual no campo específico – como uma carreira relacionada a temas eleitorais -, conduz a perplexidades cívicas e jurídicas, como o ataque indiscriminado ao sistema de votação eletrônica e às instituições que garantem a realização das eleições.   

As carreiras jurídicas assumem um compromisso com o Estado Democrático de Direito e com o pluralismo político. Como compreender a não obrigatoriedade de um conteúdo que discute e viabiliza os saberes para operacionalização da manutenção desse Estado?

Como dito, apenas a ciência do Direito Constitucional não é suficiente para garantir essa operacionalização. Ademais, o design institucional da Justiça Eleitoral é outro fator a ser levado em consideração quando da reflexão sobre a obrigatoriedade desse conteúdo já na graduação, pois a sua composição é plural e também de caráter temporário. Precisa-se garantir que todos(as) aqueles(as) que ocupem essa vaga conheçam pelo menos o básico do Direito Eleitoral. Na verdade, se fizermos uma análise das carreiras jurídicas que o diploma de bacharel em Direito habilita ao exercício, são poucas as que não precisam do domínio, pelo menos básico, do Direito Eleitoral.

Outro dado relevante para essa análise: os últimos acontecimentos atentatórios às nossas instituições democráticas, que representam um prolongamento de insatisfações com o processo eleitoral. Contudo, de modo geral, sequer há uma compressão mínima sobre esse processo, seus trâmites, sua segurança, dentre outras regras igualmente importantes acerca da Administração da Justiça Eleitoral. Por isso, ações educativas e informativas voltadas à cidadania são importantíssimas e decorrem da aplicação do art. 205 da CF/889.

A importância do Direito Eleitoral já foi reconhecida pela Ordem dos Advogados Brasil. Em 5 de abril de 2022, através do seu Conselho Pleno, a OAB Nacional aprovou alterações para o Exame de Ordem, incluindo a disciplina Direito Eleitoral como obrigatória para a realização da prova objetiva. Será inevitável, portanto, que o estudo da área seja realizado já durante a graduação.

O compromisso da Ordem dos Advogados do Brasil encontra-se encartado no art. 44, I da lei 8.906/9410. Afinal, a advocacia não é uma função essencial apenas à Justiça, mas à própria democracia, como já tivemos a oportunidade de refletir e demonstrar11.

Tanto quanto, nos cidadãos em geral, deve ser semeado os saberes para o exercício da cidadania, nos profissionais egressos dos Cursos de Direito, em um Estado Democrático, espera-se um compromisso com a técnica e com o manuseio dos instrumentos jurídicos corretos para garantir a defesa da ordem democrática e qualificar o debate científico, profissional e o desempenho das instituições. 

Por isso, o art. 5º, II, da Resolução CNE 5 de 2018, precisa ser alterado para contemplar o conteúdo de Direito Eleitoral na perspectiva formativa técnico-jurídica, passando a ser obrigatória sua previsão nos Projetos Pedagógicos de todos os Cursos de Direito do Brasil.

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Raquel Cavalcanti Ramos Machado, Mestre pela UFC, doutora pela Universidade de São Paulo. Professora de Direito Eleitoral e Teoria da Democracia. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP, do ICEDE, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE, da Transparência Eleitoral Brasil, do Observatório de Violência Política contra a Mulher e do Instituto Parla.

Jéssica Teles de Almeida, Mestra e Doutoranda pela UFC. Professora de Direito Eleitoral e Direitos Humanos da UESPI. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE e do Grupo Ágora (UFC).

Desirée Cavalcante Ferreira, Mestra e Doutoranda pela UFC. Integrante do Grupo Ágora (UFC).

 

 



[3]Conferir ementa da disciplina Metodologia do Ensino Jurídico ofertada no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC, tendo como docente a Profa. Dra. Raquel Cavalcanti Ramos Machado. https://ppgdireito.ufc.br/pt/disciplinas/grade-curricular/dbp7200-metodologia-do-ensino-juridico-32h-optativa/

[5] HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século 21. São Paulo. Editora Companhia das Letras, 2018.

[6] À União compete privativamente sobre as diretrizes e bases da educação nacional (art. 22, XXIV, da CF/88), podendo, ainda, concorrentemente, cada ente federativo legislar sobre educação (art. 24, IV, da CF/88), assim como devem proporcionar meios de acesso à educação (art. 23, V, da CF/88). Instituições, sem fins lucrativos, voltadas à promoção da educação, possuem imunidade tributária. A educação é um serviço público essencial e pode, mediante delegação, ser prestado por particulares, desde que a iniciativa privada cumpra as normas gerais da educação nacional e submeta-se à regulação administrativa e aos processos de autorização e avaliação  de qualidade pelo Poder Público (art. 209, da CF/88).

[8] A Resolução CNE/CES nº 2/2021 alterou a Resolução CNE/CES nº 5/2018 para inserir Direito Financeiro e Digital como conteúdos obrigatórios. Conferir http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=181301-rces002-21&category_slug=abril-2021-pdf&itemid=30192 .

[9] Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

[10] Art. 44. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), serviço público, dotada de personalidade jurídica e forma federativa, tem por finalidade:

I - defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas.

Raquel Cavalcanti Ramos Machado
Mestre pela UFC, doutora pela Universidade de São Paulo. Professora de Direito Eleitoral e Teoria da Democracia. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP, do ICEDE, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE e da Transparência Eleitoral Brasil.

Jéssica Teles de Almeida
Mestre e Doutoranda pela UFC. Professora de Direito Eleitoral e Direitos Humanos da UESPI. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE e do Grupo Ágora (UFC).

Desirée Cavalcante Ferreira
Mestra e doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Professora de Direito Constitucional. Advogada. Membro da Comissão Especial do Pacto Global do Conselho Federal da OAB, da Comissão Especial Brasil/Onu de Integração Jurídica e Diplomacia Cidadã para Implementação dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas da OAB/CE e do Observatório de Violência Política Contra a Mulher.

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