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É lícito que o juízo cível possa determinar a quebra de sigilo telemático (e-mail) para instruir procedimento de produção probatória antecipada?

A quebra de dados telemáticos só deve autorizada prova em investigação criminal e em instrução processual penal, e dependerá de ordem do juiz competente da ação principal. A lei 9.296/96 não permite que o juízo cível possa autorizar a medida extrema.

31/1/2023

A imprensa noticiou que um Juízo Cível de São Paulo determinou a busca antecipada de provas de sigilo telemático, dos últimos 10 anos, de gestores que administraram as Americanas.

Será que essa decisão é válida?

Eis a redação do artigo 1º, da lei 9.296/96:

“Art. 1º A interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para prova em investigação criminal e em instrução processual penal, observará o disposto nesta lei e dependerá de ordem do juiz competente da ação principal, sob segredo de justiça.

Parágrafo único. O disposto nesta lei aplica-se à interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática.”

De acordo com o citado dispositivo infraconstitucional, a quebra de dados telemáticos só deve ser autorizada para prova em investigação criminal e em instrução processual penal, e dependerá de ordem do juiz competente da ação principal.

Portanto, afirma-se, desde já, que o juízo cível não deve determinar a quebra do sigilo telemático de uma pessoa que sequer é investigada em procedimento de natureza criminal.

Isto é, se as informações noticiadas pela imprensa forem confirmadas, é provável que as eventuais provas obtidas através da citada decisão serão declaradas ilícitas, o que poderá prejudicar eventual investigação na seara criminal.

Mesmo que a decisão que deferiu a quebra dos sigilos telemáticos dos gestores das Americanas tivesse sido fundamentada no artigo 22, da lei 12.965, de 23 de abril de 2014 - Marco Civil da Internet -, a prova obtida por esse meio não teria validade, uma vez que o citado artigo não prevê a possibilidade de requisição judicial de conteúdo da comunicação privada para formação de conjunto de provas em ação cível, verbis:

“Da Requisição Judicial de Registros

Art. 22. A parte interessada poderá, com o propósito de formar conjunto probatório em processo judicial cível ou penal, em caráter incidental ou autônomo, requerer ao juiz que ordene ao responsável pela guarda o fornecimento de registros de conexão ou de registros de acesso a aplicações de internet.

Parágrafo único. Sem prejuízo dos demais requisitos legais, o requerimento deverá conter, sob pena de inadmissibilidade:

  1. fundados indícios da ocorrência do ilícito;
  2. justificativa motivada da utilidade dos registros solicitados para fins de investigação ou instrução probatória; e
  3. período ao qual se referem os registros.”

Conforme visto, o que se autoriza no artigo 22, do Marco da Internet, é o fornecimento de registros de conexão ou de registros de acesso a aplicações de internet. Assim, o sigilo telemático goza de garantia constitucional de inviolabilidade, nos termos o artigo 5º, XII, da Constituição Federal:

“XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;”

Portanto, objetivamente, não há qualquer ressalva para que o disposto no artigo 1º, da lei 9.296/96 seja mitigado. Isto é, a competência para o deferimento de decisão sobre quebra de sigilo telemático será do Juízo Criminal competente para julgar eventual ação penal.

Aliás, ainda que a decisão que autorizou a quebra de dados telemáticos tivesse sido prolatada pelo Juízo Criminal, o trinômio: necessidade, razoabilidade e fundamentação, não estariam presentes no bojo da fundamentação, contrariando o disposto no artigo 2º, da lei 9.296/96:

  1. não houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal;
  2. a prova puder ser feita por outros meios disponíveis;
  3.  o fato investigado constituir infração penal punida, no máximo, com pena de detenção.

Parágrafo único. Em qualquer hipótese deve ser descrita com clareza a situação objeto da investigação, inclusive com a indicação e qualificação dos investigados, salvo impossibilidade manifesta, devidamente justificada.”

Isso porque não é razoável que eventual investigação que busque elementos de provas sobre possíveis omissões contábeis na corporação abranja o período de dez anos cujos alvos contemplam pessoas que não fazem parte da atual gestão da companhia.

No julgamento HC 315.220/RS, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 15/9/2015, DJe de 9/10/2015, ficou decidido que houve flagrante ilegalidade na decisão que autorizou a quebra dos sigilos telemáticos por mais de dez anos. Eis a ementa do julgado:

“PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. OPERAÇÃO REVELAÇÃO. CORRUPÇÃO ATIVA. MEDIDAS CAUTELARES DETERMINADAS. AFASTAMENTO DE SIGILO DE CORREIO ELETRÔNICO. DURAÇÃO DA CONSTRIÇÃO. PRAZO: DE 2004 A 2014. FUNDAMENTAÇÃO PARA A QUEBRA DO SIGILO DO E-MAIL NO PERÍODO. AUSÊNCIA. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. NÃO OBSERVÂNCIA. OFENSA ÀS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS. FLAGRANTE ILEGALIDADE. EXISTÊNCIA. ORDEM CONCEDIDA.

1. A quebra do sigilo do correio eletrônico somente pode ser decretada, elidindo a proteção ao direito, diante dos requisitos próprios de cautelaridade que a justifiquem idoneamente, desaguando em um quadro de imprescindibilidade da providência.

2. In casu, a constrição da comunicação eletrônica abrangeu um ancho período, superior a dez anos, de 2004 a 2014, sem que se declinasse adequadamente a necessidade da medida extrema ou mesmo os motivos para o lapso temporal abrangido, a refugar o brocardo da proporcionalidade, devendo-se, assim, prevalecer a garantia do direito à intimidade frente ao primado da segurança pública.

3. Lastreadas as decisões de origem em argumentos vagos, sem amparo em dados fáticos que pudessem dar azo ao procedimento tão drástico executado nos endereços eletrônicos do acusado, de se notar certo açodamento por parte dos responsáveis pela persecução penal.

4. Ordem concedida, com a extensão aos co-investigados em situação análoga, a fim de declarar nula apenas a evidência resultante do afastamento dos sigilos de seus respectivos correios eletrônicos, determinando-se que seja desentranhado, envelopado, lacrado e entregue aos respectivos indivíduos o material decorrente da medida.”

Confiram-se trechos do voto proferido pela eminente Ministra relatora no habeas corpus anteriormente citado:

“Não se descura que uma denúncia pode reportar-se a fatos longevos, cujo arcabouço probatório somente se aperfeiçoou em data atual. Entretanto, no tocante à providência cautelar prévia, ao necessitar o Estado de dispor do método constritivo dos direitos individuais, deve-se ter em voga a razoabilidade do período de constrição, atribuindo-se racionalidade ao próprio Estado Democrático de Direito, ao albergar valores subjacentes da justiça, obstando-se, desse modo, o arbítrio descomedido.

E não se pode conceber que a determinação de interceptação telefônica já pressuponha a quebra do sigilo também do correio eletrônico, pois há a necessidade de se demonstrar a imprescindibilidade da extensão da constrição inclusive para a modalidade de comunicação dada pelo e-mail, sempre delimitando período temporal sob o manto do brocardo da proporcionalidade, evocando a primazia do moderado, justo e racionalmente compreensivo, a expurgar excessos.

Nessa toada, na hipótese dos autos cuido que se decretou a quebra do sigilo das comunicações eletrônicas sem se delinear a pertinência com a pretensa conduta delitiva ou a exata motivação do prazo inaugural, de forma a legitimar a medida extrema.”

Portanto, respondendo objetivamente ao questionamento proposto no início desse artigo, se as informações propaladas pela imprensa se confirmarem, de acordo com a fundamentação supra, não é lícito ao Juízo Cível deferir quebra de sigilo telemático para fins de produção probatória antecipada.

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https://www.metropoles.com/negocios/determinada-busca-e-apreensao-de-e-mails-da-direcao-da-americanas

Lei nº. 9.296/96: 

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9296.htm

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

Lei nº. 12.965/2014

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm

HC n. 315.220/RS, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 15/9/2015, DJe de 9/10/2015

https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201500197570&dt_publicacao=09/10/2015

Ricardo Henrique Araujo Pinheiro
Advogado especialista em Direito Penal. Sócio no Araújo Pinheiro Advocacia.

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