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Dados de pessoas com deficiência são dados pessoais sensíveis?

Os investimentos que estão sendo feitos no meio digital para aprimorar a experiência, a proteção e a garantia de direitos dos titulares de dados devem ter acessibilidade para não gerar mais exclusão e sim a promoção efetiva de direitos humanos das pessoas com deficiência.

27/1/2023

A Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/18), mais conhecida como “LGPD”, traz em seus objetivos a proteção aos direitos fundamentais de liberdade, dos direitos humanos e do desenvolvimento da personalidade da pessoa natural. Em 2022, o direito à proteção dos dados pessoais no Brasil foi elevado formalmente à categoria de direito fundamental, uma garantia inserida na Constituição Federal, por meio da EC 115/22.

Como regra geral, a LGPD visa proteger dados pessoais e os dados pessoais sensíveis. Entendemos a definição de dado pessoal em linha com os que a tratam como expansionista, já que a lei não trouxe uma lista das informações que serão consideradas dados pessoais. Não há um rol definido. Já em relação aos dados pessoais sensíveis, a LGPD trouxe uma indicação sobre os dados que receberão este tipo de classificação. Pela lei, sensível é o “dado pessoal sobre a origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural”1.

Importante ressaltar porque a lei traz distinção entre dados pessoais e pessoais sensíveis. Na LGPD, os dados sensíveis possuem proteção especial. Isso acontece, pois o seu tratamento indevido pode criar um viés discriminatório para o titular do dado, o deixando em situação de maior vulnerabilidade.

Diversas legislações brasileiras têm artigos que possuem  uma listagem aberta de conceitos que podem servir como exemplos (exemplificativa). Outras, apresentam listagem fechada (taxativa), que não permitem inclusões de conceitos. A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) ainda não trouxe os seus apontamentos em relação ao rol de dados sensíveis na LGPD.

Em nosso entendimento, a lista que identifica na LGPD os dados como sensíveis é exemplificativa e não taxativa. Até porque, no próprio § 1º do art. 11 da LGPD há disposição expressa de que “aplica-se o disposto neste artigo a qualquer tratamento de dados pessoais que revele dados pessoais sensíveis e que possa causar dano ao titular, ressalvado o disposto em legislação específica”.

Consideramos esta a abordagem mais adequada e segura para garantir a proteção do titular com deficiência. No entanto, não se deve simplesmente escolher a hipótese de tutela da saúde pois não se trata dados de pessoa com deficiência como simplesmente uma questão biológica e queremos explicar qual a razão que entendemos dessa forma.

Pessoas com Deficiência

“Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”, diz a Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), ratificada no Brasil com status de equivalência constitucional2. Este foi o primeiro tratado internacional de direitos humanos a ser incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro nos termos da Emenda Constitucional 45/2004, sendo indubitavelmente parte do corpo da nossa carta maior. Este mesmo conceito está aposto no artigo 2º. da Lei Brasileira de Inclusão – Lei 13.146, de 6 de julho de 2015.

Esta definição legal explica que a caracterização de uma pessoa com deficiência é fruto de uma equação que leva em consideração não apenas as características pessoais do indivíduo, mas a relação contextual entre o indivíduo e o meio em que está inserido. A pessoa com deficiência neste sentido é aquela que possui uma limitação e se depara com as mais diferentes barreiras que a impedem de exercer de maneira plena e efetiva a sua vida.

Se o cadeirante não consegue acessar um edifício, a questão são as barreiras arquitetônicas (como escadas) que impedem o exercício do seu direito. A sociedade excludente é a real culpada pelas dificuldades de jovens com deficiência física enfrentadas no dia a dia, por exemplo, na situação acima descrita. O mesmo raciocínio vale para todos os tipos de limitação funcional.

O reconhecimento de que o problema não está na pessoa e sim no ambiente foi fruto de muita luta do movimento social internacional de pessoas com deficiência após a 2ª. Guerra Mundial. “Com a volta dos combatentes de guerra, acidentes civis por causas advindas do sistema de produção, das violências sociais, ou simplesmente por força da natureza humana, a sociedade começa a se estruturar para “dar conta” da diversidade funcional existente entre seres humanos”, conforme já sintetizamos antes.3

Essa noção de deficiência, positivada no que costumamos chamar de modelo social de direitos humanos, vem em contraposição ao modelo anterior denominado de médico e assistencial, que entendia que os problemas relacionados a deficiência eram de origem individual e subjetiva, personificando no indivíduo as suas questões como elementos definidores de sua existência com o objetivo principal de vida superar suas dificuldades.

A grande revolução que o modelo social agrega é o fato de que as pessoas com deficiência não se resumem a sua limitação funcional e não são elas que devem se adequar à sociedade e sim o contrário. A sociedade inclusiva é que deve atender a todos.

Neste sentido, cabe uma reflexão já feita anteriormente4:

“No modelo social, a deficiência é resultante de uma função em que o valor final depende de duas outras variáveis independentes, quais sejam, as limitações funcionais do corpo humano e as barreiras físicas, econômicas e sociais impostas pelo ambiente ao indivíduo. Dessa forma, a deficiência em si não “incapacita” o indivíduo e sim a associação de uma característica do corpo humano com o ambiente inserido. É a própria sociedade que tira a capacidade do ser humano com suas barreiras e obstáculos. O modelo social determina que barreiras arquitetônicas, de comunicação e atitudinais existentes devem ser removidas para possibilitar a inclusão das pessoas com deficiência, e novas devem ser evitadas ou impedidas, com o intuito de deixar de gerar exclusão”

Com a entrada em vigor da CDPD em 2008, o modelo social passou a ser o novo paradigma de validade das normas, devendo ser observado no Brasil como mandamento constitucional. Políticas públicas e legislação inclusivas devem ser editadas para garantir o pleno exercício de direitos por pessoas com deficiência.  

Dessa forma, dentro da nova perspectiva de direitos humanos, é necessário desvincular a noção de deficiência de doença. Nem toda doença causa deficiência e nem toda deficiência é fruto de uma doença. Dentro dos diferentes tipos de deficiências, há diversos desafios de distintas naturezas e, sem dúvida, elas não podem ser automaticamente enquadradas como questões de saúde.

Dados Pessoais Sensíveis, Pessoas com Deficiência e Acessibilidade

Se buscarmos a lista de dados sensíveis, a LGPD não contempla expressamente a deficiência. Assim, quando analisamos dados sobre deficiência para entender se podem ser qualificados como dado pessoal ou pessoal sensível, verificamos que existe uma lacuna na LGPD em relação a dados de pessoas com deficiência.

Há quem entenda que os dados sobre deficiência deveriam ser tratados como dados sensíveis por serem dados de saúde. Na nossa visão isso é um erro, dado que nem toda deficiência está relacionada com um problema de saúde. No entanto, nos parece correto entender que os dados sobre deficiência devem ser tratados como dados sensíveis, em razão do alto potencial de causar discriminação contra a pessoa titular -, que já se encontra em situação de vulnerabilidade dentro da sociedade, e  por isso devem ser protegidos de maneira adicional.

Considerando os riscos que envolvem o tratamento desse tipo de dado, além da identificação do tipo de dado como sensível, é importante respeitar toda a principiologia da LGPD. Soma-se a isso, ainda que não esteja descrito na lei, a necessidade de garantia da acessibilidade em todas as situações.

A acessibilidade é  princípio e direito constitucional no ordenamento jurídico brasileiro que deve ser respeitado. Trata-se de um princípio que orienta a necessidade de que produtos e serviços sejam acessíveis a todos as pessoas com deficiência. É também um direito a ter direitos, um direito ponte para garantia do direito a autoinformação, por exemplo. Nesse sentido, requer-se atenção dos interlocutores para que as formas em que a LGPD é operacionalizada não gere obstáculos e sim pontes.

Além dos sites e formulários para coleta dos dados serem acessíveis para leitura em software de leitura de voz para pessoas com deficiência visual, deve-se ter janela de interpretação de Libras (Língua Brasileira de Sinais) para as pessoas com deficiência auditiva. Legenda e audiodescrição são também importantes recursos de acessibilidade necessários para permitir a compreensão sobre a finalidade do tratamento de dados. Ademais, a linguagem simples para as pessoas com deficiência intelectual também precisa ser considerada. Os espaços físicos onde serão feitas as coletas de dados devem garantir acesso de pessoas com deficiência física. A reflexão deve ser sempre com base na alteridade: a ação que estou desenvolvendo em relação desde a coleta  de dados é inclusiva? Consigo garantir acessibilidade para todos os tipos de públicos?  

Conclusões

É uma realidade que há pontos dentro da LGPD que precisam ser amadurecidos, esclarecidos e bem orientados pela ANPD. Além disso, há também uma necessidade de divulgação maior dos direitos das pessoas com deficiência e da acessibilidade que precisam ser incorporadas pela sociedade como um todo.

Nesse sentido, chamamos a atenção para a urgência de maiores discussões sobre o enquadramento dos dados de deficiência, que, não sendo necessariamente um dado relacionado a saúde, merece especial proteção como dado sensível em razão da situação de vulnerabilidade a que estão expostos muitos de seus titulares.

Para resguardar direitos de pessoas que são comumente alvo de maior discriminação na sociedade como as pessoas com deficiência, ainda que não citadas na LGPD, deve-se aplicar as regras de dados pessoais sensíveis, entendendo que o rol do inciso II, do artigo 5º. da lei 13.709/18 é exemplificativo, inclusive por força do § 1º do art. 11 da LGPD, e o que importa mais é saber se estes dados são ou não mais sensíveis que os dados pessoais comuns.

Ademais, há que se observar a inclusão das pessoas com deficiência para além da análise das hipóteses legais para justificar o tratamento de dados, o que inclui a aplicação dos princípios previstos na lei geral. Todos eles requerem acessibilidade para garantia plena do exercício de direitos das pessoas com deficiência. Os investimentos que estão sendo feitos no meio digital para aprimorar a experiência, a proteção e a garantia de direitos dos titulares de dados devem ter acessibilidade para não gerar mais exclusão e sim a promoção efetiva de direitos humanos das pessoas com deficiência.

_______________

1 Art. 5º, II, da Lei Geral de Proteção de Dados. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018.

2 Art. 5º § 3º da Constituição Federal: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.   

3 Um resgate histórico importante sobre direitos das pessoas com deficiência e a construção da Convenção foi feita na dissertação de uma das autoras do presente artigo. Ver LOPES, Laís de Figueirêdo. Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, seu Protocolo Facultativo e a Acessibilidade. Dissertação (Mestrado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 2009. p. 229.

4 LOPES, Laís de Figueirêdo. Nova concepção sobre pessoas com deficiência com base nos direitos humanos. In: LIMA. Francisco J. e MENDONÇA. Rita (Orgs.). A efetividade da convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência. Ed. Universitária da UFPE.  Ano 2014. Recife: 2013. p. 31.

Laís de Figueirêdo Lopes
Advogada, Doutoranda em Direito Público pela Universidade de Coimbra, Mestre em Direitos Humanos pela PUC/SP e Sócia de Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados. Integra o Conselho Consultivo da Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e a Coordenação da Frente Jurídica da Coalizão Brasileira pela Educação Inclusiva. Foi Conselheira do Conade - Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência representando o Conselho Federal da OAB, de 2006 a 2011, e Ex-Assessora Especial do Ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, de 2011 a 2016. Participou do comitê ad hoc de elaboração da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU de 2005 a 2006, e do processo de ratificação no Brasil de 2007 a 2009.

Carolina Elisa Margonari
Advogada de Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueiredo Lopes Advogados.

Vinicius Fidelis Costa
Advogado do escritório Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados. Coordenador Adjunto do Núcleo São Paulo da ABRAÇA - Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas.

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