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Anotações de desempenho na lei 14.133/21: hipóteses, características e forma de aplicação

Os licitantes têm um novo requisito para considerar na disputa de licitações públicas: a avaliação de desempenho em contratos anteriores.

27/1/2023

As anotações de desempenho e a sua aplicação na lei 14.133/21

A lei 14.133/21 trouxe inovação relevante ao prever a inclusão, no sistema de registro cadastral, de avaliações de desempenho do licitante em contratos administrativos anteriores. A Lei disciplina três hipóteses de uso das avaliações de desempenho: (i) para valoração da proposta técnica (art. 37, inc. III), (ii) como critério de desempate da licitação (art. 60, inc. II) e (iii) para fins de habilitação técnica (art. 67, inc. II).

A caracterização da sistemática e as suas finalidades

A sistemática representa tentativa de superar limitações dos requisitos tradicionais de habilitação ou pontuação de proposta, os quais não são necessariamente suficientes para demonstrar o modo de operar do licitante. Como exemplo, os atestados não refletem problemas operacionais que o licitante tenha enfrentado em contratos anteriores. A atestação pode ser obtida por empresas com histórico crônico de atrasos ou outros inadimplementos parciais, marcado por advertências e multas frequentes.

Em outras palavras, os requisitos clássicos de habilitação são uma simplificação da realidade do licitante e de seu histórico como bom ou mau cumpridor de contratos. A avaliação de desempenho surge como mecanismo para permitir a identificação de atributos complementares e abre caminho para desenvolvimento de um sistema de rating dos fornecedores.

A anotação de desempenho se aproxima da hipótese de certificação de qualidade do processo de fabricação (art. 42, inc. III, da lei 14.133/21), mas com ela não se confunde, por mais de uma razão.

Em primeiro lugar, porque em geral a certificação do processo de fabricação é um dado centrado na figura do licitante, não em seu relacionamento concreto com terceiros.

Em segundo lugar, porque as anotações de desempenho são dados a serem produzidos pelos entes públicos, especificamente no ambiente de contratação administrativa e a partir de parâmetros próprios.

A dupla finalidade da sistemática consiste em propiciar ao ente público entendimento mais abrangente e estabelecer incentivo àqueles que se relacionam com a Administração Pública para construir e manter uma verdadeira reputação de qualidade. O incentivo deve ser relacionado com benefícios tangíveis e concretos para o ente público, o que permite extrair um primeiro vetor para o tratamento do tema: a avaliação não pode ser baseada em critérios arbitrários, injustificados ou de utilidade marginal. Os critérios devem ser orientados pela tríade “eficiência, eficácia e efetividade” que o Estado deve buscar obter em suas contratações, conforme o art. 169, § 1º, da lei 14.133/21.

Disso decorre que a avaliação deve ser pautada pelos resultados obtidos.1 Há de se atentar mais para o adimplemento substancial e para os benefícios colhidos pelo ente público a partir do contrato, inclusive no que tange à observância dos prazos acordados, e menos para obrigações de meio e aspectos formais ou de relevância secundária.

A operacionalização via regulamento e o princípio da isonomia

O art. 88, § 4º, da lei 14.133/21 indica que a operacionalização das anotações sobre desempenho se dará a partir de regulamentação. Ou seja: a avaliação deverá ocorrer previamente, pelo ente público que tenha contratado as obrigações, com base em regras específicas.

Nas licitações em que a avaliação venha a ser utilizada, em princípio serão consideradas as provas pré-constituídas inseridas no registro cadastral. Essa disciplina elimina espaço para soluções casuísticas no curso das licitações, o que significa que a consideração do desempenho pretérito não deverá ampliar a complexidade dos processos licitatórios, nem afetará os custos e a celeridade do procedimento.

A observância do princípio da isonomia suscita questões específicas. Nos dois primeiros casos referidos pela lei 14.133/21, o histórico de performance contratual operará como (des)vantagem competitiva (arts. 37, inc. III, e 60, inc. II). Poderá ainda operar como barreira de entrada, enquanto critério de habilitação (art. 67, inc. II).

A dificuldade do modelo remissivo à disciplina infralegal tem a ver com a abertura de espaço para regulamentos com concepções diversas, mais ou menos gravosas, que afetarão de formas variáveis as chances dos diversos licitantes para disputa de contratações futuras. Avaliações com perspectivas radicalmente diversas podem gerar distorções, visto que a avaliação de desempenho produz impactos sistêmicos, com repercussões sobre outros certames.

Um fato a observar é que até o momento parece persistir um vácuo normativo sobre o tema nos regulamentos já editados. O decreto 10.086/22, do Estado do Paraná, ilustra o que se expõe. Essa normativa regulamentou a lei 14.133/21 como um todo, sem o fazê-lo em relação ao registro cadastral. Remeteu o tema a regulamento ulterior.

É possível que isso se justifique pelo desafio de tratar a novidade. É plausível também que haja compreensão de que será mais adequado haver regras uniformes sobre o tema. É cabível, e talvez desejável, que as diversas esferas federativas venham a incorporar a regulamentação que virá do plano federal, conforme o art. 187 da lei 14.133/21. Nesse sentido, há projeto de lei em trâmite na Câmara dos Deputados (de 249/22) que propõe que a disciplina do tema seja estruturada a partir de um regramento federal único aplicável à Federação.2

Notas sobre os possíveis parâmetros e condições para avaliação do desempenho

Podem-se extrair da lei 14.133/21 alguns parâmetros que deverão nortear a regulamentação e a avaliação concreta de desempenho.

Em primeiro lugar, a avaliação de desempenho é uma dimensão da fiscalização desempenhada no contrato administrativo e decorre de normas de aferição previamente dispostas. A manutenção da tradicional terminologia legislativa que descreve a fiscalização como “prerrogativa” da Administração (art. 104, inc. III, da lei 14.133/21) não pode ser compreendida como fonte de discricionariedade ou instabilidade do vínculo contratual. A fiscalização é estritamente vinculada à verificação das obrigações contratuais, tal como originalmente previstas. Submete-se ao princípio da vinculação ao ato convocatório, como sinalizado nos arts. 6º, inc. XXIII, “f”, e 25 da lei 14.133/21.3

Em segundo lugar, as regras de aferição do desempenho e o procedimento de avaliação devem ser os mais objetivos possíveis. Aqui, em especial, entram em jogo os “princípios da impessoalidade, da igualdade, da isonomia, da publicidade e da transparência”, listados no § 4º do art. 88.4

Em terceiro lugar, a avaliação de desempenho deve ser considerada pela perspectiva funcional. A sua vocação não é sancionar os contratados, mas sim estimular a obtenção de níveis de excelência no cumprimento das obrigações contratadas.

É a lei que conduz à diferenciação, pois atribui à anotação de desempenho finalidade não propriamente repressiva, típica das sanções negativas. Longe de servir como via para estabelecer máculas no currículo do contratado, a avaliação é tratada como sanção premial, com a função de “possibilitar a implementação de medidas de incentivo aos licitantes que possuírem ótimo desempenho anotado em seu registro cadastral” (art. 88, § 4º).5 Não se trata de negar que a avaliação possa produzir resultados desfavoráveis à esfera do avaliado. Trata-se de reconhecer que a lei faz referência a lógica peculiar, ainda que a diferença possa ser sutil e não estanque.

Logo, o exercício da atividade regulamentar deverá considerar o direcionamento legal e não pode perder de vista que a avaliação de desempenho é consequência jurídica autônoma e distinta das sanções tipificadas em lei, ainda que decorrente dos mesmos fatos jurídicos (incumprimento ou cumprimento contratual) aptos ou não ensejar a penalização. Não pode, de igual modo, ignorar as consequências advindas do grau de rigor que venha a se adotar.6

Este último ponto é relevante porque a diferença entre remédio e veneno está na dose: a avaliação de desempenho tem potencial de incentivar o adequado cumprimento de contratos administrativos e proporcionar bons resultados. Contudo, a adoção de parâmetros draconianos ou de menor relevância por um dado ente público pode vir a afetar de forma indevida e desproporcional interesses privados e, por extensão, a competição em certames subsequentes. Uma regulamentação inadequada deixará de colher o benefício potencial da sistemática e passará a ser fator de ineficiência e fonte de litigiosidade.

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1 A esse respeito: ZOCKUN, Carolina Zancaner. In SARAI, Leandro (org.). Tratado da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei 14133/21 Comentada por Advogados Públicos. São Paulo: JusPodivm, 2021, p. 1027.

2 Projeto e documentos relacionados podem ser acessados em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node01nzza1jjbx848rxmahtgbx6153866935.node0?codteor=2188964&filename=Avulso+-PL+249/2022 - acesso em 25.01.2023.

3 Conforme a síntese de Egon Bockmann MOREIRA, “a fiscalização destina-se a promover a fiel e imparcial execução do contrato” (Direito das concessões de serviço público: concessões, parcerias, permissões e autorizações. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 176)

4 Sobre os princípios e a necessidade de mecanismos para evitar práticas de corrupção, Marçal JUSTEN FILHO propõe como solução de isenção remeter a avaliação a agentes terceiros, como as certificadoras referidas no art. 17, § 6º, da lei 14.133/21 (Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 1191-1192).

5 Remete-se à construção de Norberto BOBBIO em torno da distinção entre sanções negativas e positivas ou premiais – estas relacionadas com a função promocional do Direito (Dalla struttura ala funzione: nuovi studi di teoria del diritto. Milano: Edizione di Comunità, 1977, p. 34).

6 O que guarda relação com considerações mais gerais sobre a atividade de controle: “O controle não é um fim em si mesmo. Ele é um instrumento para o aperfeiçoamento da Administração e para a busca de eficiência e efetividade. (...) Nesse sentido é que se diz que o controle deve ser responsivo ou que deve ter um viés pragmático ou consequencialista” (MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Os grandes desafios do controle da Administração Pública. In MODESTO, Paulo (Coord.). Nova organização administrativa brasileira. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 207).

Guilherme F. Dias Reisdorfer
Sócio júnior de Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados. Doutorando e Mestre em Direito Administrativo (USP).

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