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Empregados golpistas e a quebra de fidúcia: mantê-los ou não?

As recentes manifestações golpistas trazem a necessidade de novas reflexões sobre a aplicação da dispensa por justa causa no Direito do Trabalho, especialmente sob a ótica da quebra de fidúcia (confiança) entre as partes e a superação da literalidade do art. 482, da CLT.

23/1/2023

As recentes manifestações golpistas e antidemocráticas ocorridas no fatídico dia 8/1/23, e que resultaram na inédita invasão e destruição dos prédios do Congresso Nacional, supremo Tribunal Federal e Palácio do Planalto por apoiadores do ex-presidente, não apenas representaram um evento sem precedentes na jovem democracia brasileira, mas geraram uma oportunidade valiosa para reflexões da comunidade jurídica e das organizações.

Um dos aspectos prementes é a possibilidade de aplicação da dispensa por justa causa àqueles empregados que, comprovadamente, tomaram parte nesse lamentável episódio, evidentemente antidemocrático e criminoso.

De início, já há uma dificuldade, pois prevalece o entendimento de que as hipóteses de configuração da dispensa por justa causa estão no rol taxativo do art. 482, da CLT e, portanto, somente pelo enquadramento específico naquelas situações seria possível a aplicação dessa modalidade (a mais extrema) de encerramento contratual.

É claro que a construção é coerente com os próprios princípios laborais (tais como a proteção ao empregado como decorrência da subordinação jurídica e da continuidade da relação de emprego). E, sem dúvida, é um entendimento salutar até para evitar a criação de hipóteses extravagantes que poderiam resultar em abusos, perseguições e mais insegurança jurídica.

No entanto, os episódios golpistas nos lembram – já não é de hoje – que a realidade está “atropelando” o Direito e sua capacidade de conferir respostas efetivas e rápidas à complexidade das multifacetadas relações sociais somente a partir da leitura estrita do instrumental existente.

E essa moldura nem mesmo é necessariamente nova, pois, com o advento da vacinação contra o covid-19, também surgiram questionamentos sobre a possibilidade de dispensa por justa causa de empregados que se recusavam a tomar vacina, sendo que tal hipótese não estaria expressamente prevista.

Vale lembrar que, atualmente, passados mais de 3 anos de pandemia, a questão acabou perdendo força, haja vista a maciça adesão da população brasileira às campanhas de vacinação e a sedimentação (com poucas exceções) de que a vacinação não seria obrigatória.

Por outro lado, já se tratava de evidente alerta de que a realidade impactava o poder de fogo que as normativas até então existentes poderiam (ou não) conferir.

É o retorno cíclico daquilo que o filósofo francês Georges Ripert já alertava: “Quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o Direito”.

Mas, voltando ao rol do art. 482, da CLT, não se pode ignorar que seu elenco buscou contemplar um aspecto que poderia objetar o enquadramento dos golpistas: os comportamentos nele previstos seriam puníveis desde que exercido no local de trabalho ou, ainda, deveriam estar relacionados ao contrato de trabalho.

Assim, a rigor, a participação em movimentos golpistas como aqueles ocorridos em 8/1/23, não se enquadrariam na estrita previsão do rol, eis que, a rigor, não teriam sido realizados no local de trabalho e não se relacionariam à execução dos respectivos contratos.

Por outro lado, não se pode negar que a própria ideia de “local de trabalho” vem sendo relativizada pela legislação.

Tanto que a lei 12.551/11 já havia eliminado a distinção entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância. Isso ficou ainda mais acentuado com a regulamentação do teletrabalho conferida inicialmente pela lei 13.467/17 e, posteriormente, pela lei 14.442/22.

Portanto, a própria noção de local de trabalho deve ser compreendida menos por seu aspecto físico, mas pela possibilidade de execução dos serviços subjacentes ao contrato de trabalho.

Da mesma forma, a punição aos comportamentos ilegais deve ser compreendida também sob essa ótica, pois, ao menos na maioria dos casos (com exceção daqueles que estivessem em horário de trabalho) os atos golpistas teriam sido cometidos fora do local de trabalho (uma grande parcela veio até de outros estados da Federação).

E, ainda, tais atos não teriam ligação com o trabalho executado, mas, a rigor, com manifestações e atos exercidos sem qualquer relação com os contratos de trabalho, fosse em dia de folga, férias etc.

Mas nem por isso os atos foram menos graves ou reprováveis e, assim, cabe indagar se não seria necessário ir além do que o rol do art. 482, da CLT estabelece. Aliás, a natureza dos atos em comento é inegavelmente mais grave, eis que, em último grau, pretendiam um golpe de Estado, ignorando o resultado das eleições democráticas.

Mais ainda: deve-se indagar se frente a fatos tão graves, o critério a ser utilizado não deveria ser necessariamente as hipóteses restritas do artigo, mas a pura quebra de fidúcia (confiança). E se isso já seria suficiente para tornar insuportável a continuidade do vínculo laboral. Entendemos que sim.

Vale notar que a quebra de confiança, na prática, sempre se revelou como um princípio subjacente à possibilidade de aplicação da justa causa. Tanto que algumas figuras consagradas naquela relação, tais como na ocorrência de mau procedimento ou improbidade que, no fundo, representam a quebra de fidúcia/confiança entre as partes.

Ademais, o modus operandi adotado pelos golpistas assemelha-se às práticas coibidas e previstas na alínea “j” do art. 482 da CLT e, diga-se sempre, emolduradas por aspirações golpistas e criminosas.

E não se pode esquecer que, de modo geral, a fidúcia (confiança) é o elemento central que condiciona qualquer relação jurídica, especialmente no âmbito do direito privado, com destaque para a condicionante da boa-fé, especialmente art. 113 e 422 (entre tantos outros) do Código Civil. Aliás, no art. 422 curiosamente fala-se, no mesmo dispositivo, em “probidade e boa-fé”, irmanados como contornos contratuais. E seu antônimo, claro, é a improbidade.

E é inegável que a execução notória e evidente de atos golpistas, antidemocráticos que visem à destruição do Estado de Direito são especialmente danosos aos ditames da confiança e boa-fé que estão espraiados nas relações jurídicas, no mais das vezes, de forma irremediável.

A presente reflexão, no entanto, não pretende esgotar a questão (ainda sendo inflexionada diariamente por novos fatos e circunstâncias) – e que também admite diversos outros escopos –, mas, apenas, propor que a análise da aplicação da justa causa seja cada vez mais influenciada pela ponderação sobre a quebra de confiança no caso concreto – em que pese não existir uma figura estrita e específica.

E a hipótese das manifestações de cunho golpista é um exemplo claro e bem-acabado disso (talvez devesse ser mesmo acrescida ao rol do art. 482, da CLT); daí porque entendemos que a comprovada participação seria motivo suficiente para justificar a dispensa por justa causa, decorrente de falta grave do empregado, ante a inegável quebra de fidúcia. A defesa de nossa democracia não pode esperar e atos que a ameacem não podem ser tolerados!

João Armando Moretto Amarante
Advogado-sócio do escritório MENDONÇA, MERIGHI, AMARANTE e TRAPANOTTO Advogados. Possui MBA em Gestão de Pessoas pela USP/ESALQ. É especialista em Direto e Processo do Trabalho pela PUC/RS e IICS/CEU e em Direitos Humanos e Filosofia pela PUC/PR.

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