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Contratos de consumo na internet e a responsabilidade civil das plataformas digitais: breves notas

O caminho mais adequado parece ser o que vem sendo construído pelos tribunais de segunda instância, que responsabiliza o fornecedor intermediário, protegendo o consumidor, sem deixar de resguardar o direito de regresso daquele contra o fornecedor principal.

20/1/2023

Afirmar que atualmente a Internet faz parte do cotidiano de quase todos os cidadãos, empresas, governos, associações e entidades não governamentais, dentre outros, mundo afora, não é novidade alguma. Mais que isso, a Internet pode ser considerada um bem tão essencial quanto a água ou a energia elétrica e traduz-se no principal meio de comunicação. Basta imaginar-se alguns dias sem acesso à Internet: como interagir com amigos, realizar as tarefas simples do trabalho, acessar documentos, receber e pagar contas, estudar ou pesquisar?

Nesse contexto, era de se esperar que o constante incremento da utilização desse espaço virtual repercutisse em todos os aspectos da sociedade, influenciando desde o modo como as pessoas passaram a se relacionar até, principalmente, a forma como conhecem, localizam e consomem produtos e serviços.

Se nos idos da década de 80 do século passado a viagem de férias era quase toda pensada, organizada e contratada à mesa de uma agência de turismo, mediante assinatura de alguns contratos impressos e a emissão de tickets de passagens e vouchers de hospedagem e locação de veículos, hoje basta olhar e pesquisar a tela do seu laptop e os diversos sites de buscas apresentarão uma infinidade de destinos, hotéis, locadoras de veículos, transfers, passeios locais, companhias aéreas, seguros de viagem — todos quase sempre avaliados por outros usuários ou pela própria plataforma digital que os divulga —, bastando escolher e “clicar”. Pronto, negócio fechado! Férias contratada, provavelmente na tela do seu celular.

Comprar um aparelho de TV, naquela época consistia em perambular por algumas lojas de departamento mais próximas da sua residência, conhecer dois ou três modelos disponíveis no mercado, conversar com o vendedor sobre as principais características de cada produto, definir o que melhor atendia às suas necessidades, discutir preço e, quase sempre, sair do estabelecimento com a televisão em cima do ombro. Essa antiga realidade não é mais usual. Atualmente, digita-se em um “site buscador” as principais funcionalidades e características do aparelho de TV que se deseja adquirir e logo aparecerão outros sites, que se propõem a localizar os fornecedores que possuem os produtos selecionados e, entre esses, comparar os preços e as formas de pagamento ofertados. A partir daí, o consumidor escolhe o fornecedor e, normalmente, este site comparativo o redireciona para o site do fornecedor escolhido, ambiente no qual é realizada a compra. Isso acontece em alguns minutos, sem precisar sair de casa!

O mesmo se diga em relação aos transportes urbanos intra e intermunicipal. Antes limitados às linhas de ônibus, trem e metrô, além dos táxis que apareciam disponíveis no seu campo visual — e desapareciam nos dias chuvosos —, hoje sofrem a forte concorrência dos aplicativos de celular, que não só os localizam rapidamente, inclusive indicando aqueles motoristas que se disponibilizam para percorrer o mesmo trajeto com descontos de 10%, 20%, 30% ou até 40% sobre o valor da tarifa, como também oferecem a alternativa de o passageiro ser transportado por motoristas particulares em carros — agora também em motocicletas (uber moto) e ônibus (buser) —, também particulares ou locados de terceiros.

A experiência de jantar e lanchar no restaurante e lanchonete favoritos foi deslocada, mais das vezes, para dentro de casa, até porque alguns desses estabelecimentos sequer possuem estrutura para receber fisicamente os clientes, pois sua atividade fim é somente delivery. Novamente, na tela do seu celular abre-se uma miríade de logomarcas avaliadas com algumas estrelas, que serão selecionadas pelos “filtros” definidos pelos usuários do aplicativo: 4 estrelas, pizza, aberto agora, sem taxa de entrega, raio de distância de até 5km, pagamento em cartão de crédito ou débito.

É, os tempos mudaram, as experiências mudaram e, obviamente, as relações jurídicas e os negócios jurídicos mudaram. O paradoxo está em que se por um lado o ambiente virtual trouxe mais oportunidades, rapidez, facilidade e comodidade, por outro lado também acrescentou complexidade a essas conexões, se bem-vistas de perto.

Parte desses exemplos se insere na economia do compartilhamento1, que chegou para ficar.

O Direito, embora em uma velocidade muito aquém do desejável, não está indiferente a essas mudanças e seus paradigmas precisam ser repensados para adaptar-se às demandas jurídicas da era digital. Os meios e as formas de contratar são outros, os atores dessas conexões têm posições fluidas e receberam a companhia de novos personagens. O sistema do Direito precisa ser repensado, reavaliado e modernizado à luz da nova realidade.

Em meio aos exemplos acima citados, todos têm em comum a figura de um novo ator na pluralidade das relações jurídicas estabelecidas por meio virtual, sem o qual elas provavelmente não aconteceriam, é o denominado gatekeeper — intermediário ou guardião do acesso. Em linhas bem gerais e superficiais, trata-se da plataforma digital, que potencializa e viabiliza o encontro das partes e a celebração do contrato.

Nestas breves notas pretende-se identificar as principais características desse novo ator; verificar quando ele se submete às normas do Código de Defesa do Consumidor; e, por fim, traçar os limites de sua responsabilidade civil pelos danos decorrentes de eventual descumprimento do contrato “principal” celebrado — em relação ao qual contribuiu (de alguma forma) para sua formação.

Os produtos e serviços veiculados por essas plataformas digitais são os mais variados possíveis, assim como também são variadas as formas como elas se apresentam e contribuem para a aproximação — e a efetiva conclusão do negócio jurídico — entre o proponente e o aderente.

Considerando o cenário brasileiro e as plataformas digitais mais populares, a fim de facilitar a compreensão da exposição, podemos agrupá-las por principais segmentos e características do serviço prestado.

Na área de transportes, as mais conhecidas, sem dúvida, são a Uber e a 99. Ambas as plataformas operam de forma muito similar. Possuem um “banco de dados” de motoristas e veículos particulares cadastrados, distribuídos por regiões, que podem ser acionados por qualquer usuário inscrito no aplicativo. Solicitada pelo usuário e aceita a “corrida” pelo motorista, a plataforma receberá uma comissão do valor pago ao motorista e, a depender da forma de pagamento, ainda cobrará uma taxa. As operações de localização, contratação e pagamento se realizam quase que integralmente no ambiente virtual dessas plataformas digitais, conforme suas próprias regras, previamente estabelecidas.

No ramo de alimentação delivery, os aplicativos mais populares no Brasil são IFood, Uber Eats e Rappi. Os usuários cadastrados no aplicativo têm acesso a um leque de estabelecimentos selecionados na base de dados da plataforma digital. Feita a escolha, selecionado e aceito o pedido, o pagamento pode ocorrer diretamente ao fornecedor ou à própria plataforma, que sobre a operação recebe uma comissão e taxas sobre a forma de pagamento, a sazonalidade do acerto de contas (semanal ou mensal) e se o entregador (motoboy) for indicado pelo próprio aplicativo. Quase toda a operação ocorre no ambiente virtual, segundo as regras pré-estabelecidas pela plataforma digital.

Voltando ao setor de transportes, especificamente no de passagens aéreas, os sites mais populares são Decolar, Maxmilhas e 123 milhas. Esses sites têm em comum a localização entre os milhares de voos disponíveis pelas companhias aéreas que melhor atendem as necessidades indicadas pelos usuários, no que se refere à classe do assento, tempo de duração, trajeto, inclusão de bagagens, preço e forma de pagamento do trecho escolhido para determinada data. As operações aqui também acontecem quase que integralmente no ambiente virtual da plataforma e segundo as regras por ela pré-estabelecidas. Diante da efetiva aquisição da passagem aérea, o intermediário recebe uma comissão sobre o valor final, além de taxas, a depender da forma de pagamento.

Esses últimos sites, em sua maioria, passaram a abranger outros produtos e serviços relacionados às necessidades do consumidor de passagens aéreas, tais como reserva de hotéis, locação de veículos, passeios turísticos e os seguros inerentes a essas atividades.

Aliás, nesse segmento, que pode se chamar de turístico, é possível encontrar plataformas digitais ainda mais específicas para cada um daqueles serviços e produtos, que localizam, comparam preços e realizam a reserva ou remetem o usuário para o site do fornecedor, como sãos os casos da Booking, Airbnb, Aluguetemporada, Trivago e Hoteis (reservas de hospedagem); e, Rentcars e Rentalcars (locação de veículos). A remuneração dessas plataformas também ocorre por meio de comissão sobre o valor da aquisição do produto ou da contratação do serviço, ou pelo pagamento de taxas ou, ainda, de forma indireta, por meio de anunciantes e compartilhamento dos dados dos usuários.

No que se refere à aquisição de produtos em geral, desde uma lâmpada até uma academia completa de ginástica, passando pelo pneu de um veículo ou um livro, há um universo de sites que funcionam apenas buscando os fornecedores dos produtos designados e comparando seus preços para depois remeter o usuário para o site específico; fornecendo produtos próprios e de fornecedores previamente cadastrados; ou apenas produtos de fornecedores selecionados, cujas operações podem acontecer — e quase sempre ocorrem — integralmente no espaço virtual disponibilizado e organizado pelo aplicativo, conforme as regras que estabelece.

Nessa categoria, embora com algumas características distintas entre si, podem ser citadas grandes marcas de lojas de departamentos que, inobstante tenham lojas físicas, também dispõem de plataformas digitais onde ofertam produtos próprios e de terceiros (marketplaces), tais como Amazon, Americanas,  Magazineluiza, Casasbahia, Pontofrio e Netshoes; aqueles que apenas disponibilizam produtos de terceiros, sendo seu maior representante o Mercadolivre; e, por último, os que apenas comparam os preços dos produtos selecionados e remetem o usuário ao site do fornecedor, como o Buscape e o Bondfaro.

Finalmente, não podem ser esquecidas as versões digitais dos antigos “classificados” dos jornais impressos, tais como OLX, ZAP, Webmotors, moto.com e icarro.

O que todas essas plataformas têm em comum, sem dúvida alguma, é a aproximação mais rápida, eficaz e abrangente entre quem oferece o produto ou o serviço e aqueles que estão interessados na sua aquisição. Todos ganham nesse modelo de negócio. Ocorre, entretanto, que a intermediação realizada por esses aplicativos entre as partes interessadas na realização de um negócio jurídico se dá de maneiras diferentes, ora com participação mais efetiva na conclusão do contrato, ora na qualidade de mero aproximador; por vezes com remuneração direta e/ou indireta, outras gratuitamente; geralmente as etapas pré e pós contratuais ocorrem em ambiente controlado pelo intermediador, sob as regras que estabeleceu, excepcionalmente diretamente entre os interessados e fora do ambiente virtual.

Os modus operandi de cada plataforma digital, as características subjetivas de quem faz a oferta e as de quem a aceita, assim como a destinação do produto ou do serviço contratado atrairão ou não as regras do Código de Defesa do Consumidor e definirão os limites das responsabilidades civis dos partícipes dessa relação jurídica plural.

O cenário mais usual desses negócios jurídicos ocorre quando determinada pessoa ou empresa inicia por meio de um site de buscas na Internet (p.ex. Google) a sua pesquisa por determinado produto ou serviço. Este site encontra outros sites especializados nesse tipo de demanda, que remete o usuário para o site do fornecedor do produto/serviço.

Nesse exemplo, que representa a mais ordinária das operações de consumo em ambiente virtual, e não esgota as possibilidades e os atores do mercado de consumo na Internet, pode-se identificar as seguintes relações jurídicas: (i) consumidor-site de buscas (Google), (ii) consumidor-sites de buscas/comparador de preços (Buscape ou Bondfaro), (iii) consumidor-marketplace, (iv) consumidor-fornecedor do produto, (v) consumidor-plataforma digital de pagamentos (Pagseguro); de outro lado, (vi) fornecedor-marketplace, (vii) fornecedor-plataforma digital de pagamentos e (viii) fornecedor-transportador.

Conforme se disse, essa análise é de uma operação usual e não esgota os partícipes da rede de consumo, que poderia avançar, por exemplo, pelo lado do fornecedor, para a empresa de logística e armazenamento dos produtos. Visa-se, apenas, a percepção mais detalhada do passo a passo de uma compra e venda bem comum em ambiente virtual.

O objetivo dessa visualização é facilitar a compreensão de que as normas do Código de Defesa do Consumidor podem incidir em todas ou em apenas parte dessas relações jurídicas contratuais.

Do ponto de vista subjetivo, a norma consumerista é muito clara. Consumidor é todo aquele, pessoa natural ou jurídica, que adquire ou utiliza produto ou serviço. Também é considerado consumidor — por equiparação (bystander) —, nos termos do art. 17 do CDC, o terceiro estranho à relação consumerista que experimenta prejuízos decorrentes do produto ou serviço vinculado à mencionada relação, bem como, a teor do art. 29, as pessoas determináveis ou não expostas às práticas previstas nos arts. 30 a 54 do referido código2.

Do ponto de vista objetivo, a discussão existente girava em torno da destinação final do produto ou serviço adquirido, que poderia ser física ou econômica, tendo prevalecido o entendimento que a destinação final haveria de ser a econômica, de modo que se o bem ou serviço ingressasse na rede de produção do adquirente seria considerado insumo e, portanto, a relação não seria de consumo (Teoria Finalista).

O Superior Tribunal de Justiça passou a admitir a mitigação da Teoria Finalista (o que se denominou “Finalismo Aprofundado”) para autorizar a incidência do CDC nas hipóteses em que a parte (pessoa natural ou jurídica), apesar de não ser destinatária econômica final do produto ou serviço, apresenta-se em situação de vulnerabilidade.3

A Ministra Nancy Andrighi resumiu bem a evolução doutrinária sobre os tipos de vulnerabilidade até a década passada, apontando a existência de quatro modalidades: técnica (ausência de conhecimento específico acerca do produto ou serviço objeto de consumo), jurídica (falta de conhecimento jurídico, contábil ou econômico e de seus reflexos na relação de consumo), fática (situações em que a insuficiência econômica, física ou até mesmo psicológica do consumidor o coloca em pé de desigualdade frente ao fornecedor) e informacional (dados insuficientes sobre o produto ou serviço capazes de influenciar no processo decisório de compra). Além disso, destacou a Ministra, a casuística poderá apresentar novas formas de vulnerabilidade aptas a atrair a incidência do CDC à relação de consumo4.

Atualmente, há quem defenda a vulnerabilidade eletrônica do consumidor como um novo tipo de vulnerabilidade5, embora também possa ser considerado um subtipo da vulnerabilidade técnica ou da vulnerabilidade informacional6.

Independentemente da classificação doutrinária, fato é que a vulnerabilidade eletrônica tem características no mínimo realçadas ou até mesmo próprias do e-commerce. Nesse sentido basta observar, por exemplo: (i) a desterritorialização do contrato (falta de territorialidade definida), (ii) a despersonalização da relação jurídica (falta de contato entre as partes contratantes, concretização do negócio por dispositivos automáticos), (iii) a desmaterialização do meio de contratação (inexistência de meio físico, material), (iv) a linguagem do contrato (devido à globalização e à Internet, é possível contratar em outros países, em língua estrangeira, dificultando a compreensão do consumidor), (v) a contratação por adesão (“li e aceito”) e (vi) o aumento do risco7.

De outro lado, o art. 3º define quem é fornecedor, e seus parágrafos os objetos de consumo.

Do ponto de vista subjetivo, o conceito de fornecedor é o mais amplo possível, abarcando todas as pessoas capazes naturais ou jurídicas, além dos entes desprovidos de personalidade, sem exceções.

Do ponto de vista objetivo, essas pessoas, para que sejam consideradas fornecedoras, precisam exercer atividades de fornecimento de bens ou serviços ao mercado de consumo com habitualidade e mediante remuneração, direta ou indireta.

Valha-se aqui do vocábulo bens invés de produtos, tal como faz José Geraldo Brito Filomeno, porque apresenta uma conceituação mais abrangente: “(...) é qualquer objeto de interesse em dada relação de consumo, e destinado a satisfazer uma necessidade do adquirente, como destinatário final.”8

A par dos conceitos de fornecedor, consumidor e objeto de consumo, indaga-se: o gatekeeper, intermediário ou guardião do acesso pode ser considerado fornecedor? A resposta é invariavelmente positiva.

Esse entendimento é reforçado pela interpretação conjunta das normas insertas no Marco Civil da Internet (lei 12.965 de 23/4/14) e no Código de Defesa do Consumidor.

Os gatekeepers, intermediários ou guardiões de acesso são, portanto, plataformas digitais que fornecem produtos e serviços atraindo, quase sempre, as normas do Código de Defesa do Consumidor, exceção apenas aos casos em que o contrato principal for celebrado entre duas empresas não vulneráveis, hipótese que será regida por normas do Código Civil e/ou empresariais.

Registre-se que a expressão responsabilidade civil aqui utilizada se faz em oposição à responsabilidade criminal e, mais especificamente, se refere à responsabilidade civil objetiva do fornecedor pelo fato ou vício do produto ou do serviço, por se tratar da regra geral do Código de Defesa do Consumidor e ser este o objeto final de análise neste texto.

Os pressupostos, portanto, da responsabilidade civil aqui tratada é a existência de uma rede de consumo composta, no mínimo, por um fornecedor, um consumidor, um produto ou serviço e um dano decorrente (nexo de causalidade) do fato (ou vício) desse (nesse) produto ou serviço.

Nesse contexto, as discussões mais acaloradas se concentram na definição dos limites da responsabilidade dos guardiões do acesso no modelo P2B2P (quando se insere a plataforma como parte da relação no modelo de e-commerce: fornecedor – plataforma digital – consumidor). Em outras palavras, diante dos danos decorrentes do fato ou de vício do produto ou serviço subjacente, qual seja, o fornecido ou prestado pelo fornecedor, não o da plataforma, mas o direto, será a plataforma solidariamente responsável pela reparação dos danos causados ao consumidor?

A resposta não é fácil e também não é única para todos os exemplos mencionados.

Em princípio, poder-se-ia dizer que sim. Afinal, a pluralidade de relações jurídicas e contratuais estabelecidas por meio da Internet formam uma rede de consumo até o produto ou o serviço chegar até o seu destinatário final e, por regra, todos aqueles que participam dessa rede, na qualidade de fornecedor, respondem solidariamente perante o consumidor lesado. É o que se extrai do art. 7º, parágrafo único, do CDC, grosso modo.

A maioria da doutrina, entretanto, embora reconheça relação de consumo mesmo naquelas transações entre pessoas leigas (P2P), relativamente comuns em plataformas como a do Mercadolivre, tendo em vista que a presença do gatekeeper contamina todas as relações jurídicas estabelecidas na rede de consumo, atraindo as normas do CDC, defende que a responsabilidade solidária do guardião do acesso perante o consumidor pelo cumprimento a tempo e a modo da obrigação subjacente deverá ser definida caso a caso, fornecendo alguns parâmetros a serem observados, notadamente a intervenção e controle significativos do que é contratado9.

Outro ponto a ser considerado, conforme destacado por Claudia Lima Marques, e que contribui para a construção do entendimento de uma responsabilidade solidária interna na rede de fornecedores perante o consumidor, é que a conexidade e pluralidade de vínculos e contratos formariam um só contrato de consumo.

A jurisprudência, ao menos dos tribunais intermediários (segunda instância), tem caminhado na direção da responsabilidade solidária dos gatekeepers pelo cumprimento da obrigação subjacente, conforme se pode extrair da excelente pesquisa disponibilizada por Guilherme Mucelin10.

Inobstante os entendimentos doutrinários e jurisprudencial acima expostos, é possível observar que a Corte de Vértice, no caso o Superior Tribunal de Justiça, ainda não tem uma posição firme sobre a questão. O que se extrai de dois acórdãos contraditórios entre si — o primeiro bem recente e o outro um pouco mais antigo —, porque chegam a conclusões diametralmente opostas11. O ponto fulcral das decisões passa, necessariamente, pela interpretação do fortuito interno e externo. Para quem entendeu que a fraude, por exemplo, está inserida no fortuito interno, não há o rompimento do nexo de causalidade e, portanto, a plataforma digital tem responsabilidade solidária. Por outro lado, quem considera a fraude um fortuito externo, há o rompimento do nexo de causalidade e, portanto, atrai a excludente de responsabilidade da plataforma por fato de terceiro.

Enfim, a matéria é complexa, notadamente em razão da diversidade de formas como atuam os gatekeepers, havendo uma tendência significativa a favor de responsabilizá-los pelo cumprimento da obrigação subjacente perante o consumidor lesado em prestígio da confiança e segurança que inspiram e da quebra da legítima expectativa de seus usuários.

Essa tendência da Corte Superior, se confirmada, parece contrariar os princípios norteadores que protegem e visam facilitar a defesa dos interesses dos consumidores, notadamente diante da sua presumida vulnerabilidade eletrônica. O caminho mais adequado parece ser o que vem sendo construído pelos tribunais de segunda instância, que responsabiliza o fornecedor intermediário, protegendo o consumidor, sem deixar de resguardar o direito de regresso daquele contra o fornecedor principal. Fórmula, aliás, há décadas empregada nas relações de consumo clássicas, fora do ambiente virtual.

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1 MARQUES, Claudia Lima. A nova noção de fornecedor no consumo compartilhado: um estudo sobre as correlações do pluralismo contratual e o acesso ao consumo. Revista de Direito do Consumidor n. 111, 2017, p. 249.

2 REsp 1324125/DF, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 21/05/2015, DJe 12/06/2015; AgRg no AREsp 479632/MS, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, julgado em 25/11/2014, DJe 03/12/2014; REsp 1354348/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 26/08/2014, DJe 16/09/2014.

3 AgRg no AREsp 601234/DF, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 12/05/2015, DJe 21/05/2015; AgRg no AREsp 415244/SC, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 07/05/2015, DJe 19/05/2015; AgRg no REsp 1321083/PR, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 09/09/2014, DJe 25/09/2014

4 REsp 1.195.642-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 13/11/2012.

5 LORENZETTI, Ricardo Luis. Comercio electronico. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2010

6 MARQUES, Claudia Lima. Confiança no mercado eletrônico e a proteção do consumidor. 4. ed. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2004.

7 LIMA, Maria Renata Barros de. A vulnerabilidade do consumidor no e-commerce. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24601/a-vulnerabilidade-do-consumidor-no-e-commerce. Acessado em 09.01.2022, as 12h

8 GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e; FINK, Daniel Roberto; FILOMENO, José Geraldo Brito; WATANABE, Kazuo; NERY JÚNIOR, Nelson; DENARI, Zelmo. Código de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 4ª ed. Rio de Janeiro. Forense Universitária. 1995, p. 39.

9 MARQUES, Claudia Lima. Ibidem, p. 256; e MUCELIN, Guilherme. Um app ou um fornecedor? Responsabilidade civil de consumo na economia do compartilhamento. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/337492/um-app-ou-um-fornecedor--responsabilidade-civil-de-consumo-na-economia-do-compartilhamento Acessado em 09.01.2022, as 15h:30min

10 Ibidem

11 REsp 1880344 / SP, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrigui, j. 09.03.2021; e REsp 1107024 / DF, 4ª Turma, Rel. Min. Isabel Galotti, j. 14.12.2011

Fabio Farias Campista
Mestre em Processo, Pós-graduado em Direito Digital e sócio na CMartins Advogados.

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