É cediço que o dirigismo surge na história como expressão máxima da intervenção estatal no campo econômico a fim de bem realizar o fim social para o qual foi criado e para o qual deve convergir a vontade dos entes e agentes sociais. Visto por esta perspectiva o dirigismo aplicado ao direito, mais especificamente às relações contratuais, é uma força que se materializa em ato concreto do estado, o estado-juiz, para equilibrar estas relações sem-pre que, de algum modo, estejam em situação tal que uma das partes coloque-se em vantagem desproporcional à outra a ponto de subtrair ou minimizar de forma considerável o seu direito.
A forma como as sociedades do ocidente se organizam economica-mente, associada a fenômenos ditos “globalizantes”, acaba gerando um campo fértil para a intervenção estatal e, por conseguinte, um meio mais propício ao dirigismo. Porém, a maneira como este será exercido em cada tipo relacional de contrato dependerá, substancialmente, do conjunto de especificidades de cada área do direito em que o mesmo estiver jungido.
Ao analisar a questão do dirigismo contratual e sua inserção no mundo dos contratos empresariais deve-se ter presente, inicialmente, as peculiaridades intrínsecas a cada tipo contratual e a área em que estiver inserido. Conquanto estejam eventualmente abran-gidos pela mesma matriz legislativa os efeitos da aplicação desta sobre os contratos em geral sofrerão modificações conforme as disposições axiológicas e principiológicas da área em que estiverem inseridos.
Assim, por exemplo, a verificação de eventual violação ao princípio da boa-fé objetiva previsto no artigo 422 do Código Civil deverá ser realizada de modo diferente conforme tratar-se de violação suscitada em um contrato de compra e venda entre pessoas naturais, um contrato consumerista ou um contrato tipicamente empresarial, de modo a respei-tar-se a relação de forças e interesses presentes em cada espécie e subespécie de tais contratos.
Não obstante, é particularmente importante esclarecer que o dirigismo contratual, tal como aqui delineado, surge naturalmente como elemento equalizador das rela-ções assimétricas, isto é, aquelas em que as partes não estão em igualdade de condições ou posições mercadológicas no momento da realização do contrato, buscando equipará-las. Daí dizer-se que a intervenção estatal por meio do dirigismo constitui elemento limitador da auto-nomia privada. Nas relações assimétricas – como soe acontecer, por exemplo, nos contratos consumeristas –, as partes têm sua autonomia limitada pelo dirigismo, isto é, por normas que preveem a possibilidade de intervenção estatal. Nesta perspectiva, infere-se que o dirigismo contratual, implícito na intervenção do estado-juiz nas relações negociais assimétricas – isto é, em que as partes contratantes não se encontram em situação paritária – a fim de restabelecer o equilíbrio e coibir eventuais iniquidades, encontra arrimo em diversos dispositivos do orde-namento jurídico pátrio, a começar pela norma maior, a Constituição Federal, artigos 5º, XXIII e 170, III (função social da propriedade) e 174 (dirigismo econômico), pelo Código Civil, ar-tigos 421 (impõe limite à liberdade de contratar em razão da função social do contrato), 422 (protetivo dos princípios da probidade e boa-fé), 423 e 424 (relativamente aos contratos de adesão) 478 (teoria da imprevisão) e pelo Código de Defesa do Consumidor, artigos 39, 51, 52, § 2º, 53 e 54, caput, para citar apenas os mais difundidos.
Todos estes dispositivos normativos são representativos do dirigismo contratual e, portanto, potencialmente limitadores da autonomia privada na medida em que representam balizas mais ou menos claras, mais ou menos abrangentes, da liberdade de contratar.
No âmbito das relações interempresariais há algumas peculiaridades que precisam ser consideradas a fim de bem avaliar a dimensão e o alcance da prática do diri-gismo contratual.
Ao revogar a primeira parte do Código Comercial de 1850 e trazer a empresa para o âmbito do direito civil – a pretexto de unificar o direito privado e conciliar os regimes jurídicos deste com aqueles que regem o direito empresarial – o legislador de 2002 sujeitou indevidamente os contratos empresariais à incidência das normas que caracterizam o dirigismo contratual, olvidando-se que os contratos interempresariais orientam-se por uma ló-gica própria e completamente diversa dos contratos civis ou consumeristas.
Daí a orientação do Enunciado 21 da I Jornada de Direito Comercial no sentido de que a limitação da autonomia da vontade e da liberdade de contratar – provocada pela aplicação dos citados dispositivos (dirigismo) – seja mitigada nos contratos empresa-riais na medida em que, nestes, diferentemente do que ocorre nos contratos civis ou consume-ristas, a relação entre as partes, isto é, entre as empresas, ocorre em regra de forma simétrica.
E é justamente a característica da simetria das relações interempresari-ais que justifica a mitigação do dirigismo contratual sem, contudo, afastar-se toda e qualquer forma de dirigismo de toda e qualquer relação interempresarial.
Deveras, há também nas relações interempresarias espaço para a inter-venção estatal por meio do dirigismo contratual. O que se pretende afirmar é que este espaço é consideravelmente menor – e diferente – daquele existente nos contratos interpessoais das re-lações civis e consumeristas. Menor em razão da simetria e diferente devido às especificidades dos contratos empresariais, aptas a ensejar a materialização de uma categoria contratual autô-noma.
Deste modo, estarão também as empresas submetidas aos chamados deveres laterais (ou subjacentes) de conduta nos contratos interempresariais, assim como ao cumprimento de sua respectiva função social e econômica, mas deverá ocorrer, nestes casos, uma valoração diferenciada destes deveres em razão da existência da simetria na relação con-tratual.
Neste contexto, é oportuno trazer à colação um precedente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, exarado em 2/1/14 pela 12ª Câmara Cível na Apelação 0260343-53.2012.8.19.0001, do qual destacam-se os seguintes excertos extraídos do voto-condutor do referido julgado, ad litteram:
“Se a obrigação é líquida e positiva, de acordo com o caput, do art. 397, CC, o devedor constitui-se em mora de pleno direito. Vale dizer, não é necessário que o credor interpele judicial ou extrajudicialmente o deve-dor.
“Desse modo, com base no art. 395 do CC, deveria a apelante pagar sua contraprestação e, assim, não merece reforma a sentença nesse ponto.
De igual forma, não assiste razão à apelante em relação à abusividade da prestação cobrada. A rigor, pondera o enunciado nº 21 da I jornada de Direito Comercial do Conselho Federal de Justiça: ‘Nos contratos empresariais, o dirigismo contratual deve ser mitigado, tendo em vista a simetria natural das relações interempresariais’. Ademais, vale destacar, das alegações da apelante, o fundamento trazido para considerar a co-brança abusividade.
“Vejamos:
“Em contestação narra que os valores cobrados a título de demurrage se-riam abusivos, uma vez que equivaleriam ao valor de 10 (dez) contêine-res RH40 novos. Mas, ao interpor a apelação, narra que, com o mesmo valor, se considerado o valor médio de mercado, seria possível comprar 32 (trinta e dois) contêineres novos. Ocorre que as contas apresentadas por ela consideraram apenas o valor de 01 (um) contêiner – o qual, em contestação, valeria R$ 17.500,00 (dezessete mil e quinhentos reais), mas, em apelação, R$ 6.000,00 (seis mil reais). Entretanto, a ação foi proposta para cobrar a tarifa de 8 (oito) contêineres. Desse modo, ainda que considerada a maior diferença apresentada pela apelante, não seria o valor cobrado desproporcional a ponto de ensejar a atuação do Judiciário para reduzi-la, especialmente porque se trata de relação jurídica paritária – na qual, segundo orientação do enunciado nº 21 da I Jornada de Direito Empresarial, o dirigismo contratual deve ser mitiga-do, como já sublinhado acima.”(Grifou-se)
A alegação de “abusividade” no caso retratado pelo acórdão supra ci-tado foi mitigada e sofreu interpretação diversa do que ocorreria se a relação entre as partes fosse “de consumo”, caso em que, certamente, seria aplicado o artigo 39 ou 51 do CDC.
Embora a decisão não explicite os motivos pelos quais afastou a alega-ção de abusividade feita por um dos contratantes, e, portanto, não considerou desproporcional o valor cobrado pela outra, é possível dizer que, para além do fato de tratar-se de uma relação contratual interempresarial, não restou justificada neste caso a intervenção estatal por não se verificar a existência de assimetria entre as partes contratantes.
Inexistindo assimetria, presume-se que a parte prejudicada tinha co-nhecimento dos riscos que correu ao aceitar contratar com a outra parte, ambas empresas, não lhe sendo lícito alegar a ocorrência de abusividade pelo fato de considerar que a prestação fora cobrada de maneira desproporcional. Nesta senda, é oportuno mencionar o Enunciado nº 25 da I Jornada de Direito Comercial:
A revisão do contrato por onerosidade excessiva fundada no Código Civil deve levar em conta a natureza do objeto do contrato. Nas relações empresariais, deve-se presumir a sofisticação dos contratantes e observar a alocação de riscos por eles acordada.
Curial destacar, todavia, que a alegação de abusividade rejeitada pelo TJRJ no julgamento acima retratado, provavelmente seria apreciada se as partes tivessem por exemplo firmado um contrato de franquia, visto que, neste caso, embora tratando-se de con-trato empresarial típico a simetria não se mostra tão evidente quanto em outras espécies de contratos empresariais devido a existência de uma relação de dependência do franqueado em relação ao franqueador.
A propósito, importante observar que no caso das relações interempre-sariais a “vulnerabilidade” e a “hipossuficiência” – que nos contratos civis e consumeristas ca-racterizam-se por fatores geradores de assimetria entre as partes contratantes não conduzem à mesma ilação sendo considerada, primordialmente, a questão da “dependência empresarial” como fator de desajuste da simetria entre as partes contratantes sendo mais suscetível de atrair a incidência de normas de conteúdo dirigista.
A ideia é que, inexistindo relação de dependência entre empresários contratantes não se haveria de permitir a incidência de qualquer norma dirigista, pelo fato de não ter sido quebrada a relação de simetria entre as partes.
Certamente, não se trata de um critério absoluto, pois há modalidades de contratos empresariais que, mesmo inexistindo relação de dependência, estão mais suscetí-veis à intervenção estatal como é caso dos contratos firmados no âmbito do direito concorren-cial, por exemplo, ainda que, neste caso, por regime jurídico próprio diverso do âmbito civil – caso da regulação estabelecida pelo CADE.
Em conclusão, não se ignora que os deveres laterais, ou subjacentes, de conduta, a função social da propriedade – do qual deriva a função social e econômica da em-presa –, a ocorrência de onerosidade excessiva – a atrair a aplicação da cláusula rebus sic stan-tibus – e até mesmo de abusividade, se aplicam às relações interempresariais. Entretanto, e aí reside a premissa da mitigação do dirigismo contratual, deve-se vislumbrar a aplicação de tais limitadores da autonomia e da liberdade de contratar sob a perspectiva da simetria das rela-ções empresariais e do ambiente próprio em que estas ocorrem, que é um ambiente de competi-ção, de busca permanente pelo lucro e de concorrência.
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