Os partidos políticos são, por definição legal, pessoas jurídicas de direito privado que visam “assegurar, no interesse do regime democrático, a autenticidade do sistema representativo e a defender os direitos fundamentais definidos na Constituição Federal” (art. 1º da lei 9.096/95)1 e ocupam diante do sistema político-eleitoral nacional extrema relevância por duas razões fundamentais: a possibilidade de vinculação ideológica e programática em torno de uma candidatura e a organização de um pleito eleitoral em um universo de mais de 150 milhões de eleitores.
Na esfera da ciência política, os Partidos representam a reprodução de uma premissa fundamental da Democracia, a possibilidade de expressar em conjunto um ideário e poder fazê-lo de forma livre e amplificada visando à institucionalização de um programa limitado aos ditames constitucionais. Kelsen sintetizou que os Partidos “são organizações que congregam homens da mesma opinião para afiançar-lhes verdadeira influência na realização dos negócios públicos”2, estes dentro de um Estado de Direito constitucional surgem como preordenados e possíveis na estrutura legalista que viabiliza o alcance de Direitos pelo indivíduo.
Os Partidos Políticos pelo disposto no sistema legal defendem a autonomia do sistema representativo, devendo o Estado permitir a criação, fusão e alterações das agremiações com o fito de privilegiar as organizações partidárias sob a ótica da Constituição Federal. Não obstante, todos os partidos devem constituir suas instâncias administrativas, de forma regionalizada, podendo defini-las ao bem do interesse dos filiados e notadamente do interesse público, tendo em vista sua prerrogativa de exercício de função pública.
Sendo assim, há dois tipos de instâncias partidárias: as comissões provisórias e os Diretórios. As comissões provisórias constituem-se como órgãos partidários de representação municipal ou estadual que possuem como característica central a precariedade da sua constituição, tendo em vista que sua formação se dá em um espectro de urgência e/ou transitoriedade. Os Diretórios, por sua vez, surgem como órgãos partidários com composição sólida advinda de escolha dos membros do órgão representativo por seus filiados, estabelecendo conforme disposições estatutárias, mandatos e os seus respectivos prazos, possibilitando a autonomia administrativa e voz ativa da agremiação diante do ambiente político diverso e nas próprias instâncias superiores.
Nesse sentido, resta insculpido na organicidade dos Partidos Políticos a necessidade de composição dos seus postos de Poder por meio da participação direta dos interessados, tal como as funções definidas aos partidos políticos no espectro exógeno, internamente precisam estar vinculados a premissa democrática, ao que constitui a legitimidade política republicana, o desvencilhamento de construções administrativas por meio de imposições ou arbítrios.
Em uma análise teleológica da Democracia, a viabilidade da escolha interna da ocupação das posições de Poder nos Partidos Políticos surge como imprescindível e a partir da ótica positiva, considerando que as agremiações exercem o mister públicos e são financiados com recursos públicos, devem estar atrelados aos princípios constitucionais que privilegiam a pluralidade e participação diretas, inclusive, resta consignado na própria Lei dos Partidos Políticos em seu art. 4º que “os filiados de um partido político têm iguais direitos e deveres”, não sendo compatível defender a hierarquização arbitrária e alheia ao debate e escolha.
Nesse ponto, cumpre clarear uma realidade nacional, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral, três em cada quatro partidos no Brasil têm mais da metade da sua estrutura interna composta por comissões provisórias, alguns possuem cerca de 90% de todas as suas instâncias nessas condições, alçando o ambiente político a um espectro de quase intervenção máxima dos órgãos partidários sobre as organizações imediatamente inferiores.
Quando um órgão partidário municipal não possui a estabilidade enquanto instância definitiva, fica exposto a intervenções do órgão diretivo estadual que, pelas disposições estatutárias quase unânimes, podendo definir os rumos da sigla nos municípios sem extensas justificativas, tendo em vista a concentração de Poder oriunda da hierarquia dos diretórios estaduais e comissões provisórias.
No espectro normativo o tema gerou bastante inquietação, o Tribunal Superior Eleitoral havia disposto na Resolução 23.571/18 um prazo de 120 dias para regularização das comissões provisórias e constituição de Diretórios Partidários com a estabilidade definida por meio de escolha dos filiados, porém, o establishment respondeu com a edição da lei 13.831/19 que altera a Lei dos Partidos Políticos para incutir a possibilidade de permanência das comissões provisórias por 08 anos.
Tal discussão já havia trazido à lume a antidemocrática insistência da utilização das comissões provisórias, observando-se que tal conduta no âmbito dos partidos políticos revestia-se de uma intenção de controle sistemático das instâncias municipais, visando concentrar poder nos órgãos diretivos superiores, nomeando verdadeiros “caciques” dos partidos, que tudo podem. Nas eleições de 2016, sob a égide da Resolução 23.465/15 do TSE, a judicialização de tal tema surgiu com bastante frequência, porém, nos idos do pleito o próprio Tribunal suspendeu o art. 39 por um ano, adiando o debate jurisidicional.
Ocorre que para este ano, tal qual uma quebra de braço, temos um instrumento normativo da lavra do TSE e uma lei aprovada pelo Congresso Nacional entrando em choque direto em sua literalidade, considerando o caráter híbrido da Justiça Eleitoral (normativa e jurisdicional) resta bem robusta a possibilidade de análise da constitucionalidade da lei 13.831/19 no que atine às comissões provisórias e a Corte Superior deu um indicativo no âmbito da Consulta de número 74/19 que, mesmo sem caráter vinculativo, definiu no acórdão do entendimento do colegiado que “as greis pàrtidárias também devem observar os sistemas de pronoção da democracia interna (art. 17, caput, da CF/88), quee poderão ser efetivadas, nas diversas esferas partidárias, com a instituição de diretórios”, sinalizando possível posicionamento jurisdicional quanto à exigência de composição partidária definitiva por meio do voto direto dos filiados.
O tema que à primeira vista pode parecer rebuscado ou de interesse específico dos diretamente ligados à política partidária merece atenção pública, visto que, para além do fundo partidário bilionário que as siglas administram, trata-se de como a democracia representativa se organiza nos bastidores e como estimulam (ou não) a composição dos seus quadros, trazendo reflexos às estruturas atuais e futuras dos Poderes Executivo e Legislativo compostos pelo voto direto.
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1 Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9096.htm
2 BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000