Migalhas de Peso

O processo (pré) recuperacional das Lojas Americanas: mais uma vez a questão dos custos de transação

Os últimos dias foram marcados por agitação no mercado e no Poder Judiciário com as notícias e pedidos deduzidos pela constatação de situação de crise nas Lojas Americanas.

18/1/2023

1. Introdução: fatos de conhecimento público

No dia 11 de janeiro de 2023, a Americanas S.A. publicou fato relevante por meio do qual comunicou seus acionistas e o mercado que “foram detectadas inconsistências em lançamentos contábeis redutores da conta fornecedores realizados em exercícios anteriores, incluindo o exercício de 2022”, cuja estimativa inicial fora de R$ 20 bilhões na data-base de 30/09/2022. Essas inconsistências levaram a que o Diretor-Presidente Sérgio Rial renunciasse ao cargo que assumira 9 (nove) dias antes.

A publicação desse fato relevante foi entendida pela própria empresa como um potencial “gatilho” de covenants financeiros, previstos em diversos contratos por ela celebrados, que poderiam permitir o vencimento antecipado de, aproximadamente, R$ 40 bilhões em dívida.

No dia 12 de janeiro de 2023, exatamente um dia após a publicação de fato relevante, a Americanas S.A., em conjunto com B2W Digital S.À.R.L. e JSM Global S.À.R.L. (referidas aqui, genericamente e em conjunto, como “Lojas Americanas”), ingressaram com tutela de urgência cautelar em caráter antecedente preparatória de processo recuperacional para pedir que (1) fossem sobrestados os efeitos de toda e qualquer cláusula que imponha o vencimento antecipado das dívidas das Lojas Americanas, (2) fosse determinada a suspensão da exigibilidade de todas as obrigações relativas aos instrumentos financeiros celebrados entre as Lojas Americanas e um rol de instituições apresentado em conjunto com a petição inicial, (3) fosse determinada a suspensão (a) dos efeitos do inadimplemento, inclusive, para reconhecimento de mora; (b) de qualquer direito de compensação contratual; e (c) de eventual pretensão de liquidação de operação com derivativos; (4) fosse, em relação aos créditos extraconcursais, determinada a suspensão de qualquer arresto, penhora, sequestro, busca e apreensão e constrição sobre os bens, oriundas de demandas judiciais ou extrajudiciais, o que deverá ser previamente submetido a esse MM. Juízo, sobretudo se puderem prejudicar ou inviabilizar futuro processo de recuperação das Lojas Americanas; e (5) fossem preservados todos os contratos necessários à operação das Lojas Americanas, inclusive linhas de crédito e fornecimento.

Após o pedido, foi apresentada por parte do Banco BTG Pactual notificação por meio da qual comunicou que promoveu a “Compensação dos Investimentos com o Saldo Devedor Convênios e Saldo Devedor Derivativos”, o que inclui “o resgate de quaisquer investimentos mantidos pela Americanas”.

Esse fato foi levado como elemento adicional para o juízo da 4ª Vara Empresarial da Comarca do Rio de Janeiro/RJ que concedeu a antecipação de tutela e, após sua assinatura os autos foram liberados a acesso público – o que permitiu que fossem elencados os fatos expostos nesse item introdutório.

2. O que de fato aconteceu?

A Americanas S.A. é uma companhia de capital aberto, identificada na B3 como “AMER3”. No dia 11 de janeiro de 2023, suas ações estavam unitariamente cotadas em R$ 12,00 (doze reais). O efeito do pedido do comunicado e do pedido de tutela pré-recuperacional foi visto nos dias subsequentes (em 12/1/23, a cotação fechou em R$ 2,72, e, em 13/1/23, em R$ 3,15). Isto é, pode-se dizer que uma das consequências das descobertas divulgadas no fato foi uma queda no valor das ações na ordem de 400%.

O pronunciamento oficial  de Sérgio Rial esclareceu que os lançamentos contábeis a que se atribui a nomenclatura de inconsistentes estão “de alguma forma, colocados dentro da estrutura do balanço ou da conta de resultado da empresa”, mas precisariam ser “recatalogados”.

Esses lançamentos se enquadram no que se chama de “risco-sacado”, “confirming”, “forfait”, “desconto de títulos”, entre outros. Não há um nome “oficial” para a operação. Nas palavras de Rial, “nada mais é do que a presença do banco na estrutura de financiamento da conta fornecedor da empresa”.

Para explicar melhor: o empresário, notadamente no varejo, precisa de capital de giro. Os fornecedores de insumos para o empresário desejam receber os seus recebíveis de modo rápido. Então, para conciliar esses interesses, monta-se a seguinte estrutura: (1) o fornecedor vende o produto, com prazo de pagamento “TX ”; (2) o empresário-varejista agenda esse pagamento com o seu banco; (3) é feita (quer pelo banco, quer pelo empresário-varejista) a localização das notas fiscais que podem ser antecipadas (isto é, pagas em “TX-1 ”) e, portanto, disponibilizado para os fornecedores a referida quantia; (4) o fornecedor solicita a antecipação do recebível, pagando-se ao banco uma taxa sobre o valor.

Em síntese, no que concerne às Lojas Americanas: a dívida existia, mas a forma de alocação no balanço não traduzia de modo preciso a situação contábil.

Esses apontamentos aqui trazidos, é importante registrar, não implicam juízo de valor de qualquer espécie (isto é, positivos ou negativos) sobre o processo pré-recuperacional que se instaurou, mas, ao contrário, traduzem apenas fatos públicos e conceitos contábeis elementares. Pela mesma razão, não se abordará nessas breves linhas argumentos desta ou daquela parte, a fim de que a discussão permaneça no âmbito conceitual para o qual se quer chamar a atenção: a importância do tratamento dos custos de transação no Direito Empresarial.

3. Custos de transação

O art. 157 da lei 6.404/76 regula o dever de informar dos administradores das companhias abertas. O dispositivo subsequente, isto é, o art. 158, trata da responsabilidade civil desses administradores. O fato relevante divulgado em 11 de janeiro de 2023 teve por objetivo atender a esses dispositivos.

Empreender é lidar com incertezas (ou, ainda, a existência da empresa no mundo é um resultado direto da existência de incertezas ). E, certamente, o fato relevante de 11 de janeiro de 2023 tinha (ou deveria ter) como um efeito de sua divulgação (da qual não se podia escapar) a reação do mercado. Isso é o que explica tanto a flutuação dos preços das ações AMER3 como os subsequentes atos processuais praticados (sem qualquer juízo axiológico sobre seu acerto ou erro e as proporções disso) para proteger a empresa em crise.

As incertezas derivadas de uma operação de varejo repleta de risco-sacado podem ser encontradas na obra de COASE , para quem “em função da dificuldade de previsão, porém, quanto mais longo o prazo do contrato para o fornecimento da mercadoria ou do serviço, menos possível e, de fato, menos desejável será para a pessoa que compra especificar o que espera que a outra parte no contrato faça”.

No caso de uma empresa anunciar, como constou no fato relevante, um passivo mal alocado que se estimava em R$ 20 bilhões, era possível (embora não desejado para a empresa em crise) imaginar o que esperaria que a outra parte no contrato fizesse, como de fato houve credor que tentou fazer (isto é, notificar acerca do vencimento antecipado de determinadas obrigações).

Novamente, convém lembrar que COASE já apontava que a empresa será “maior” (isto é, mais bem-sucedida): (1) quanto menores forem seus custos de organização e mais lentamente eles se elevarem com um aumento nas suas transações; (2) quanto menos provável for o cometimento de erros pelo empresário e menor o aumento desses erros com um aumento nas transações; e (3) quanto maior a diminuição (ou menor o aumento) do preço de oferta dos fatores para empresas de maiores proporções.

O que ocorreu no caso concreto foi, no que toca ao elemento de número (1), a celebração de muitas operações com covenants financeiros  que poderiam ocasionar o vencimento antecipado de obrigações, e, quanto ao número (2), a percepção do próprio (já) ex-Diretor Presidente de que havia erros na alocação de riscos contábeis.

É verdade que foi concedida liminar para determinar, entre outros efeitos, (1) o “sobrestamento dos efeitos de toda e qualquer cláusula que imponha vencimento antecipado das dívidas das Requerentes, em razão do “fato de relevante” divulgado em 11.01.2023 e seus desdobramentos”, (2) “a sustação da exigibilidade de todas as obrigações relativas aos instrumentos financeiros celebrados” entre as Lojas Americanas e determinadas entidades a que ela aludiu em sua petição inicial, (3) “a sustação dos efeitos do inadimplemento, inclusive, para reconhecimento de mora; de qualquer direito de compensação contratual; e de eventual pretensão de liquidação de operação com derivativos”, (4) “a preservação de todos os contratos necessários à operação do Grupo Americanas, inclusive linhas de crédito e fornecimento” e (5) “a imediata restituição de todo e qualquer valor que os credores eventualmente tiverem compensado, retido e/ou se apropriado, em virtude do fato relevante veiculado ao mercado em 11/1/23 e seus desdobramentos”.

Todavia, e, novamente, sem qualquer juízo axiológico, vale o questionamento (não exauriente) acerca do art. 193-A da lei 11.101/05, segundo o qual “o pedido de recuperação judicial, o deferimento de seu processamento ou a homologação do plano de recuperação judicial não afetarão ou suspenderão, nos termos da legislação aplicável, o exercício dos direitos de vencimento antecipado e de compensação no âmbito de operações compromissadas e de derivativos, de modo que essas operações poderão ser vencidas antecipadamente, desde que assim previsto nos contratos celebrados entre as partes ou em regulamento, proibidas, no entanto, medidas que impliquem a redução, sob qualquer forma, das garantias ou de sua condição de excussão, a restrição do exercício de direitos, inclusive de vencimento antecipado por inexecução, e a compensação previstas contratualmente ou em regulamento”.

Há aqui, ao menos, duas hipóteses: (1) ou a decisão não abrangeu as operações compromissadas e de derivativos – porque a lei assim o determina, ou (2) houve interpretação contra legem – o que não seria o primeiro episódio no Direito brasileiro, dado que na redação original da lei 11.101/05, dispunha-se que o stay period “em hipótese nenhuma excederá o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias contado do deferimento do processamento da recuperação” e o entendimento jurisprudencial se firmou no sentido contrário, sob o argumento da preservação da empresa (que, frise-se, é uma regra, não um princípio, e, portanto, não comporta dosimetria; aplica-se ou não se aplica – embora não se desconheça o que tem sido feito em termos jurisprudenciais).

4. Considerações finais

Os acertos e os erros na ação ajuizada pelas Lojas Americanas serão conhecidos no futuro. Todavia, o número de incidentes processuais levados a efeito e a seriedade do conteúdo das decisões judiciais existentes faz questionar se, de fato, trata-se de um processo apenas “pré” recuperacional. O questionamento não implica que a petição inicial tenha atendido aos requisitos do art. 51 da lei 11.101/05 (até porque nem a isso se obrigaram as requerentes, já que se tratava de um pedido de tutela em caráter antecedente), mas, sim, diz respeito a quais eram os fins buscados. Da mesma forma que o discurso do ex-Diretor Presidente Sérgio Rial falava em necessidade de recatalogar ou realocar elementos contábeis, é de se recomendar ao Poder Judiciário prudência na realocação ou “recatalogação” de riscos que a lei buscou disciplinar.

Vale dizer, navegar em mares recuperacionais é navegar em terreno de se tentar conferir previsibilidade normativa a situações empresariais de incerteza.  Não é dado ao julgador, à guisa de conferir sobrevida à empresa em crise, ignorar o risco de crédito que pode decorrer de decisões que não sopesem todos os interesses envolvidos. Preservar-se a empresa meramente por preservar-se não é o conteúdo do art. 47 da lei 11.101/05. Ao contrário, há ali um trinômio a ser observado (manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores) e, diz o legislador, é a observância desse trinômio que promove a preservação de quem deve ser preservado.

Bruno Marques Bensal
Mestre (2016) e Doutor (2022) em Direito Comercial pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Advogado em São Paulo.

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