Olá, colegas Migalheiros!
Ainda estamos nos recuperando dos tempos turbulentos – que até imaginávamos que aconteceriam, mas não tão rápido, e não da forma violenta como esta, dos eventos deploráveis do vandalismo em Brasília ocorrido em 08 de janeiro de 2023 (que, na realidade atinge a todos nós)! – e, na busca de explicação (por incrível que pareça, existe!), recorro a um texto de FREUD, um autor que, para mim, continua atualíssimo (apesar dos seus textos serem datados da transição dos séculos XIX para o XX). Aqui eu trago especialmente o texto: “Psicologia das Massas e Análise do Eu”, de 1920.
Isso mesmo. Há 103 anos, Freud já abordava o assunto do comportamento de ‘rebanho’ (ou ‘manada’), quando uma horda começa agir de maneira uniforme, ordenada ou não, violenta ou não, mas com a característica da imitação. Assim, em tópicos para facilitar a leitura, vamos lá:
1. Somos indiscutivelmente uma espécie gregária, que precisa de grupos para sobreviver. Mas sempre precisamos de um líder. E como se consolida a figura desse líder? Pela busca de quem exerça a função paterna, de proteção e amparo diante das ameaças externas. Assim, começamos elegendo líderes[1] que teriam melhor comunicação com os deuses (e o consideramos ele próprio uma divindade, a exemplo dos faraós, monarquias europeias do século XVIII); posteriormente, diante da necessidade que os povos têm de se proteger de ataques e conquistar novos territórios, podemos eleger um líder com melhor poderio militar (estrategistas militares), como por exemplo em Napoleão Bonaparte, Gengis Khan, etc.; e, modernamente, líderes políticos que articulem recursos públicos que melhor atendam às necessidades da população (ou, que se acredita que o façam, embora muitas vezes descubramos, da pior maneira, que tudo não passou de discurso sofismático, falacioso e/ou retórico...), e aí não faltam exemplos...;
2. A adesão da massa ao líder se dá pelo processo que a Psicanálise chama de identificação: Para LAPLANCHE e PONTALIS (2016, p.226), consiste no "processo psicológico pelo qual um sujeito assimila um aspecto, uma propriedade, um atributo do outro e se transforma, total ou parcialmente, segundo o modelo desse outro”. Na realidade, nossa personalidade se estrutura a partir de adesões e diferenciações nesse processo de identificação: nos identificamos com as figuras significativas (ex.: pais, professora), mas depois podemos perceber que não precisamos imitá-las e podemos agir de forma oposta. O fato é que essa consciência para não sermos reprodução acrítica dos nossos modelos de identificação exige de nós uma maturidade reflexiva, constante, intensa, o que nem sempre acontece.
3. “Massa” agrupamentos de indivíduos, sejam semelhantes ou dessemelhantes o seu tipo de vida, suas ocupações, seu caráter ou sua inteligência, que os torna possuidores de uma “alma coletiva” inconsciente, como as células de um organismo formam, com a sua reunião, um ser novo que manifesta características bem diferentes daquelas possuídas por cada uma das células”. Daí que, determinados comportamentos do indivíduo só se manifestam quando em ação coletiva da “massa”, a pessoa (talvez) não agiria dessa forma se estivesse sozinha. Ocorre uma personalização do indivíduo, para se tornar integrante da “massa”. Conforme FREUD (2011, p.14): “(...) Diríamos que a superestrutura psíquica, que se desenvolveu de modo tão diverso nos indivíduos, é desmontada, debilitada, e o fundamento inconsciente comum a todos é posto a nu (torna-se operante).”.
4. E como se processa essa despersonalização? A partir da necessidade que a massa tem de se identificar com o “líder” (que, na realidade, age mais como “chefe”, porque não se preocupa com o desenvolvimento do grupo e sim com as necessidades pessoais), que se aproveita disso para impor suas determinações. Na horda, os membros foram vínculos entre si, mas o líder não depende desses vínculos. O “chefe” da massa continua a ser o temido “pai”, a massa ainda quer ser dominada com força ilimitada, com anseio extremo da autoridade – sede de submissão. Portanto, o pai primordial é o ideal da massa, que domina o Eu no lugar do ideal do Eu. Os atos do “chefe” são vistos como fortes e independentes, e as suas necessidades não precisam de aprovação alheia. Ele não ama ninguém, a não ser si próprio, ou a outras pessoas. O “chefe” só considera as pessoas que atenderem às suas necessidades pessoais.
5. Ah, e o mais importante: o “chefe” produz e a massa reproduz a sua própria “verdade”. Conforme FREUD menciona LE BON, “(...) a massa está sujeita ao poder verdadeiramente mágico das palavras, que podem provocar as mais terríveis tormentas na sua alma e também apaziguá-las”. Ela acredita na “força” da ideologia, mostra-se extremamente intolerante com qualquer oposição, inclusive recorrendo à violência. Conforme p.20:
E por fim: as massas nunca tiveram a sede da verdade. Requerem ilusões, às quais não podem renunciar. Nelas o irreal tem primazia sobre o real, o que não é verdadeiro as influencia quase tão fortemente quanto o verdadeiro. Elas têm a visível tendência de não fazer distinção entre os dois (FREUD, p.20).
Notando semelhanças até aqui, colegas Migalheiros? Como acontecem nas cenas deploráveis de brigas de torcidas em eventos esportivos, os “valentões” só agem assim quando estão em “bando”. Do mesmo modo que ocorreu em Brasília, a “manada” se despersonaliza, e se agrupa para um objetivo comum, que nem é o seu próprio interesse individual e sim do seu “chefe”. O “chefe” nem sequer está presente, vai alegar que “não sabia de nada”, “não ordenou diretamente”, “não há provas”, entre outros sofismas, mas contribuiu intelectualmente para a depredação. Cada um dos vândalos acredita que está agindo por interesse próprio, tamanha a despersonalização e falta de consciência e maturidade para compreender a manipulação, resultado típico da doutrinação de ideologias totalitárias (e aqui me remeto a outras obras clássicas que considero atemporais, “Admirável Mundo Novo”, “1984” e “Fahrenheit 451”).
Pois é, como afirma o próprio FREUD, em seu texto “Recordar, repetir e elaborar” (1914/1980), "o paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu ou reprimiu, mas expressa-o pela atuação ou atua-o. Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação; repete-o, sem, naturalmente saber o que está repetindo" (p.196). A história está aí, para nos mostrar exemplos do que devemos e do que “não” devemos fazer. Cabe a nós, profissionais conscientes e responsáveis das diferentes áreas, compreendermos o significado das nossas atitudes e ponderarmos a conveniência, as implicações (não apenas legais, mas também as sociais e emocionais). As gerações dos nossos filhos e netos depende disso!
Agradeço a atenção dos colegas Migalheiros pela leitura do texto de hoje, e fico à disposição para o debate saudável. Até o próximo artigo!
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1 O termo “líder” será diferenciado ao longo deste texto do termo “chefe”, porque modernamente existem diferenças significativas entre ser “chefe/patrão” e “líder”. Então, aqui, o termo “líder”, embora não seja apropriado, será mantido de propósito.
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FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar (Novas recomendações sobre a técnica da Psicanálise II). In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud Rio de Janeiro: Imago, v. 12, p. 191-203, 1914/1980.
FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu, e outros textos (1920-1923). São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
IDENTIFICAÇÃO. In: LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J-B-. Vocabulário da Psicanálise. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, p.226-230, 2011.