O Supremo Tribunal Federal concluiu em novembro de 2022 o julgamento da ADIn 6.327/DF, onde deu interpretação conforme à Constituição aos arts. 392, §1º, da CLT, e 71 da lei 8.213/91 e, por arrastamento, ao art. 93 do seu Regulamento (decreto 3.048/99), de modo a se considerar como termo inicial da licença-maternidade e do respectivo salário-maternidade a alta hospitalar do recém-nascido e/ou de sua mãe, o que ocorrer por último, prorrogando-se em todo o período os benefícios, quando o período de internação exceder as duas semanas previstas no art. 392, §2º, da CLT, e no art. 93, §3º, do decreto 3.048/99.
Interpretação conforme à Constituição é uma técnica de interpretação da norma constitucional, através da qual, conforme KONRAD HESSE:
“...uma lei não deve ser declarada nula quando ela pode ser interpretada em consonância com a Constituição. Essa “consonância” existe não só então, quando a lei, sem a consideração de pontos de vista jurídico-constitucionais, admite uma interpretação que é compatível com a Constituição; ela pode também ser produzida por um conteúdo ambíguo ou indeterminado de a lei ser determinado por conteúdo da Constituição. No quadro da interpretação conforme a Constituição, normas constitucionais são, portanto, não só ‘normas de exame’, mas também ‘normas materiais’ para a determinação do conteúdo de leis ordinárias.”
(HESSE, Konrad, Elementos de Direito Constitucional da República Federativa da Alemanha, Porto Alegre: Sergio Fabris, 1998, p. 71)
A jurisprudência do STF tem admitido e utilizado da interpretação conforme à Constituição Federal com frequência e, neste caso, foi obtido um excelente resultado em termos de concretização de direitos sociais.
Fundamentação contida na ADIn 6.327/DF
O objeto de julgamento da ADIn 6.327/DF se insere no quadro mais abrangente do tema da proteção ao mercado de trabalho da mulher, princípio estabelecido no art. 7º, inciso XX, da Constituição Federal de 1988:
XX - proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei;
Também se enquadra em um quadro geral de configuração dos direitos fundamentais sociais:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Eis o teor do art. 392, § 2º, da CLT:
Art. 392. A empregada gestante tem direito à licença-maternidade de 120 (cento e vinte) dias, sem prejuízo do emprego e do salário.
(...)
§ 2º Os períodos de repouso, antes e depois do parto, poderão ser aumentados de 2 (duas) semanas cada um, mediante atestado médico.
Eis o teor do art. 71 da Lei 8.213/1991:
Art. 71. O salário-maternidade é devido à segurada da Previdência Social, durante 120 (cento e vinte) dias, com início no período entre 28 (vinte e oito) dias antes do parto e a data de ocorrência deste, observadas as situações e condições previstas na legislação no que concerne à proteção à maternidade.
Por arrastamento, acabou recebendo interpretação conforme à Constituição Federal também o art. 93, § 3º, do Decreto 3.048/1999:
Art. 93. O salário-maternidade é devido à segurada da previdência social, durante cento e vinte dias, com início vinte e oito dias antes e término noventa e um dia depois do parto, podendo ser prorrogado na forma prevista no § 3º.
(...)
§ 3º Em casos excepcionais, os períodos de repouso anterior e posterior ao parto podem ser aumentados de mais duas semanas, por meio de atestado médico específico submetido à avaliação medico-pericial.
O objeto discutido na ADIn 6.327/DF reside na falta de razoabilidade no efeito prático de diminuição oblíqua dos períodos de licença gestante e do benefício de salário-maternidade em certas situações decorrentes de questões de saúde. Conforme consta da Ementa da ADIn:
4. Não se verifica critério racional e constitucional para que o período de licença à gestante e salário-maternidade sejam encurtados durante a fase em que a mãe ou o bebê estão alijados do convívio da família, em ambiente hospitalar, nas hipóteses de nascimentos com prematuridade e complicações de saúde após o parto.
À mesma maneira como tem ocorrido em outros temas de Direito Previdenciário que se entrecruzam com o Direito de Família, o acórdão da ADIn 6.327/DF se valeu também do Direito Internacional de Direitos Humanos. Aqui, utilizou como fundamento o art. 24 da Convenção sobre os Direitos da Criança, decreto 99.710/90, que prevê:
“1. Os Estados Partes reconhecem o direito da criança de gozar do melhor padrão possível de saúde e dos serviços destinados ao tratamento das doenças e à recuperação da saúde. Os Estados Partes envidarão esforços no sentido de assegurar que nenhuma criança se veja privada de seu direito de usufruir desses serviços sanitários.
2. Os Estados Partes garantirão a plena aplicação desse direito e, em especial, adotarão as medidas apropriadas com vistas a:
a) reduzir a mortalidade infantil;
(...)
d) assegurar às mães adequada assistência pré-natal e pós natal;
e) assegurar que todos os setores da sociedade, e em especial os pais e as crianças, conheçam os princípios básicos de saúde e nutrição das crianças, as vantagens da amamentação, da higiene e do saneamento ambiental e das medidas de prevenção de acidentes, e tenham acesso à educação pertinente e recebam apoio para a aplicação desses conhecimentos;”.
Com fundamento em precedentes do próprio STF, afastou-se o argumento sobre a ausência de previsão de fonte de custeio, para extensão do prazo do salário- maternidade.
Segundo o acórdão da ADIn 6.327/DF, “a prorrogação de benefício existente, em decorrência de interpretação constitucional do seu alcance, não vulnera a norma do art. 195, §5º, da Constituição Federal”.
É muito interessante essa compreensão sobre a interpretação dos direitos fundamentais previdenciários e a superação do posicionamento muitas vezes obtuso sobre a “prévia fonte de custeio”. Esperamos, inclusive, que esse posicionamento mais adequado seja aproveitado em outros julgamentos do Excelso Pretório.
Efeitos jurídicos da ADIn 6.327/DF
No âmbito administrativo do INSS o entendimento trazido pela ADIn 6.327/DF relativamente ao benefício de salário-maternidade já se encontra vigente desde a publicação da Portaria Conjunta DIRBEN/DIRAT/PFE/INSS 28, de 19 de março de 2021, que foi exarada justamente para dar cumprimento à medida cautelar deferida no âmbito da ADI, em decisão monocrática do Ministro Edson Fachin, relator da ação de inconstitucionalidade.
Em relação às empresas e ao instituto da licença-maternidade, observe-se o seguinte.
Nos termos do art. 102, § 2º, da Constituição Federal, as decisões proferidas em ADI possuem eficácia erga omnes:
§ 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.
No mesmo sentido o conteúdo do art. 10, § 3, da lei 9.882/99, que regulamenta a arguição de descumprimento de preceito fundamental e, neste caso, também deve ser observado, visto que a ADI 6.327/DF foi convertida em ADPF:
§ 3º A decisão terá eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público.
É interessante sublinhar que, na fundamentação de seu voto, o Relator mencionou a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, compreensão a partir da qual os direitos fundamentais não se opõem somente em relação ao Estado (como é o caso do salário-maternidade, a cargo do INSS), mas também aos particulares e entidades privadas (no que deve se referir à licença-maternidade), buscando aplicação analógica do Tema 452 da repercussão geral.
Nestes termos, a decisão contida na ADIn 6.327/DF já deve ser obedecida pelas empregadoras: apesar de não alterar a redação dos dispositivos legais mencionados acima, deu-lhes outra interpretação, que é a que deverá ser praticada doravante.
Essa interpretação deverá ser encampada pelas empregadoras, senão pela eficácia normativa apontada acima, ao menos como boa prática trabalhista, na linha do que hoje vem sendo desenvolvido na linha do compliance trabalhista e do ESG.