1 DEFINIÇÃO DO EMPRESÁRIO À LUZ DO CÓDIGO CIVIL
O conceito moderno de empresário encontra guarida no artigo 966 do Código Civil de 2002, sendo o sujeito que exerce profissionalmente com o animus lucrandi, atividade econômica, organizada, para a produção ou circulação de bens ou serviços na sociedade, podendo ser pessoa física, na condição de empresário individual, ou pessoa jurídica, na condição de sociedade empresária.
O empresário individual é aquele que exerce a atividade empresarial em nome próprio. Nesse sentido, a sapiente professora Elisabete Vido nos ensina que:
O empresário individual, mesmo que regularmente registrado, não tem um patrimônio separado para a atividade empresarial e outro para suas obrigações pessoais, já que não existe a constituição da personalidade jurídica. O empresário individual tem um único patrimônio, que responde ao mesmo tempo pelas dívidas empresariais e pessoais.
Em que pese a importante conceituação do empresário, observa-se que apenas este poderá compor o polo passivo da falência.
2 CRISE EMPRESARIAL
Aquele que se propor a exercer a atividade empresarial, certamente encontrará no caminho uma série de dificuldades que, se não bem diagnosticadas e superadas, poderão conduzir o empresário a perda homeostática do organismo empresarial, a qual, a depender do nível de crise, poderá ocasionar na irrecuperabilidade da empresa, forçando o empresário a realizar a liquidação patrimonial e encerrar as atividades da empresa.
Analisando a crise do empresário, o professor Marlon Tomazzette nos adverte que, “[...] a liquidação patrimonial total ordinária pode ocorrer por iniciativa do próprio empresário ou dos sócios da sociedade empresária”. Contudo, há de se observar que, caso a liquidação patrimonial não ocorra por livre vontade do empresário, os credores poderão requerer a liquidação forçada, imposta pelo Poder Judiciário por meio da falência, cujo objetivo é iniciar um processo de execução coletiva contra o empresário que se mostre em insolvência.
Dessa forma, resume-se que, o empresário em crise terá, basicamente, duas opções, tentar ingressar em recuperação judicial ou requerer a falência, sendo a falência o objeto de estudo do presente artigo.
3 INSOLVÊNCIA
Antes de conceituar e analisar a falência propriamente dita, é necessário entender os motivos os quais o empresário ingressa no estado falimentar. Nesse sentido, é importante notar que a falência não ocorre abrupta e isoladamente assim que a crise é diagnosticada, e sim por meio de um processo evolutivo que se inicia com a crise do empresário, passando para o estado de insolvência que, não sendo possível resolver por meio de recuperação judicial, progredirá à decretação da falência.
Nessa perspectiva, o professor Sérgio Campinho conceitua a insolvência como, “o estado de fato revelador da incapacidade do ativo do empresário de propiciar-lhe recursos suficientes a pontualmente cumprir suas obrigações, quer por carência de meios próprios, quer por falta de crédito”.
De acordo com o aguçado senso crítico de Waldo Fazzio Jr:
A insolvência não nasceu jurídica. É um fenômeno econômico. Por isso, não existe identificação plena entre a insolvência jurídica e a insolvência econômica. No direito concursal, a lei presume a insolvência. No universo econômico, a insolvência é ou não é; não se presume.
No direito falimentar brasileiro, para que seja decretada a falência é necessária a comprovação da insolvência jurídica do empresário em crise, nos termos do art. 94 da LRF e não meramente a comprovação de insolvência econômica.
Nesse sentido, Fabio Ulhoa Coelho nos ensina que:
Para decretar a falência da sociedade empresária, é irrelevante a insolvência econômica, caracterizada pela insuficiência do ativo para solvência do passivo. Exige a lei a “insolvência jurídica”, que se caracteriza, no direito falimentar brasileiro, pela impontualidade injustificada (LF, art. 94, I), pela execução frustrada (LF, art. 94, II) ou pela prática de ato de falência (LF, art. 94, III).
Logo, para que ocorra a inserção do empresário no instituto da falência, será necessário que o empresário incorra em alguma das hipóteses de insolvência jurídica, quais sejam: impontualidade injustificada, execução frustrada e prática de ato de falência.
A impontualidade injustificada encontra fundamentação no art. 94, inc. I, da lei 11.101/05, a qual afirma que será decretada a falência do devedor que, “sem relevante razão de direito, não paga, no vencimento, obrigação líquida materializada em título ou títulos executivos protestados cuja soma ultrapasse o equivalente a 40 (quarenta) salários mínimos na data do pedido de falência”.
Por outro lado, a execução frustrada, também conhecida como impontualidade jurídica, ocorre quando o empresário ou sociedade empresária sofre ação de execução de pagar quantia líquida, contudo, não paga a obrigação dentro do prazo legal, não deposita o valor que supre a execução, tão pouco nomeia à penhora bens suficientes para satisfazer a execução.
Além da impontualidade injustificada e da execução frustrada, presumir-se-á a falência do empresário ou sociedade empresária que praticar os atos de falência que demonstram a entropia empresarial.
Nesse sentido, buscou o legislador relacionar algumas modalidades no inciso III, do art. 94 da lei 11.101/05 que caracterizam a falta de homeostase empresarial, “os quais poderiam ser definidos como sinais exteriores da ruína patrimonial, isto é, sinais exteriores da impossibilidade de pagar suas obrigações”.
4 FALÊNCIA
Posto os requisitos pretéritos à instauração do processo falimentar, cabe-nos explorar o conceito contemporâneo da falência à luz do seu diploma legal, a lei 11.101/05.
Dissertando sobre o assunto, Fábio Ulhoa Coelho nos orienta que:
O processo de falência compreende três etapas distintas: a) o pedido de falência, também conhecido por etapa pré-falencial, que tem início com a petição inicial de falência e se conclui com a sentença declaratória da falência; b) a etapa falencial, propriamente dita, que se inicia com a sentença declaratória da falência e se conclui com a de encerramento da falência; esta etapa objetiva o conhecimento judicial do ativo e passivo do devedor, a realização do ativo apurado e o pagamento do passivo admitido; c) a reabilitação, que compreende a declaração da extinção das responsabilidades de ordem civil do devedor falido.
Na segunda etapa descrita por Fábio Ulhoa, encontra-se a fase falimentar de fato, que, inicia-se com a sentença declaratória da falência, objeto de estudo dessa iniciação científica.
5 DECRETAÇÃO JUDICIAL DA FALÊNCIA
A decretação da falência é o pressuposto imprescindível para que se inicie, de fato, a fase falimentar, ou seja, a partir da decretação judicial da falência será instaurado o processo de execução coletiva contra o devedor empresário.
Destarte, a decisão que decreta falência encontra sustentáculo no art. 99 da lei 11.101/05, o qual descreve uma série de atos que o juiz deve praticar ao decretar à falência, se destacando a primeira apresentação nominal do rol de credores por parte do falido, suspensão de todas as ações ou execuções contra o falido – sendo este um dos pontos mais requeridos pelo empresário falido – e a nomeação do administrador judicial.
Além de observar os elementos do art. 99 da lei 11.101/05 que comporão o escopo da decisão que decreta falência, cabe ao juízo observar os elementos essenciais à sentença, descritos no art. 489 do Código de Processo Civil.
6 NATUREZA JURÍDICA DA DECISÃO QUE DECRETA FALÊNCIA
Muito se discute a respeito da natureza jurídica da decisão que decreta falência, uma vez que, no art. 99 da lei 11.101/05 o legislador atribuiu à decisão que decreta falência a natureza de sentença, entretanto, no art. 100 da mesma lei, o legislador descreveu que o recurso cabível é o agravo de instrumento que, nos termos do art. 1.015 do Código de Processo Civil, só é cabível contra decisões interlocutórias.
Em paralelo, o art. 203, § 1º do Código de Processo Civil define sentença como, “o pronunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487, põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução”. À vista disso, fica difícil de compreender a decisão que decreta falência como uma sentença, vez que a decisão não põe fim a fase de conhecimento, tão pouco extingue a execução.
Tecendo sobre essa aparente incongruência legislativa, Waldo Fazzio Jr. nos elucida os dissensos doutrinários acerca da natureza da decisão que decreta falência:
Sentença “anormal”, para Matirollo; sentença sui generis, para Bonelli; título executivo falencial, para Liebman; provimento de cognição, para Brunetti; ato jurisdicional cognitivo-executivo, para Carnelutti; provimento cautelar, para Calamandrei; declaratória de constituición, para Satta; procedimento administrativo, para outros; ou, ainda, procedimento voluntário; a verdade é que não existe unanimidade a respeito.
No direito brasileiro, os comercialistas, em geral, reconheciam o duplo aspecto da sentença decretatória de insolvência: a face declaratória (Carvalho de Mendonça), a face constitutiva (Waldemar Ferreira) ou ambas (Miranda Valverde).
Em face do exposto, nota-se a falta de unanimidade doutrinária no que tange a classificação da natureza jurídica da decisão que decreta falência.
Respeitando os nobres doutrinadores que pensam de maneira diferente, por meio de uma interpretação lógico-sistemática de todo o dispositivo legal referente à falência, bem como analisando em ipsis litteris o art. 99 da Lei n. 11. 101/ 2005, chega-se à conclusão de que a decisão que decreta falência possui natureza de sentença constitutiva, não podendo ser entendida como decisão interlocutória, independentemente da previsão de interposição de agravo de instrumento.
Consentâneo esse entendimento, torna-se mais precisa a caracterização da natureza jurídica da decisão que decreta falência quando analisamos a sua estrutura, vez que a decisão que decreta falência não só deve observar os requisitos do art. 99 da lei 11.101/05, como também deve possuir em sua composição o conteúdo genérico previsto para qualquer sentença, conforme insculpido no art. 489 do Código de Processo Civil, sendo: relatório, os fundamentos da decisão e o dispositivo legal.
Em que pese à natureza constitutiva da sentença que decreta falência, André Santa Cruz nos ensina que:
[...] as sentenças declaratórias são aquelas que apenas declaram a existência de determinada relação jurídica ou apenas atestam a falsidade ou autenticidade de determinado documento. Seus efeitos, portanto, são retroativos. Já as sentenças constitutivas são aquelas que criam, modificam ou extinguem certa relação jurídica.
Nessa senda, fica evidente a natureza constitutiva da sentença que decreta a falência, vez que antes da sentença de falência não há de se falar em estado de falência e sim estado de crise ou insolvência do empresário. É por meio da sentença que será constituído o estado de falência do empresário ou sociedade empresária, iniciando-se a execução coletiva dos credores em face do patrimônio do devedor.
Por último, porém não menos importante, cabe a análise do recurso cabível contra a sentença constitutiva do estado de falência, o agravo de instrumento. Nesse sentido, ressalta-se que a interposição do agravo de instrumento não obsta a natureza de sentença constitutiva da decisão que decreta a falência, isto porque, entende-se que o legislador ao prever o cabimento de agravo de instrumento agiu de maneira lógico-sistemática ao processo falimentar, posto que a sentença que decreta a falência não põe fim, de fato, ao processo falimentar, pelo contrário, acaba inaugurando uma nova fase ao processo, a chamada execução coletiva.
Seguindo esse mesmo prisma, Marlon Tomazette discorre que:
[...] o uso do agravo de instrumento se justifica na medida em que o processo de falência tem que continuar a correr, produzindo-se todos os seus efeitos e praticando-se todos os atos necessários para se atingir sua finalidade última, que é o pagamento dos credores, de acordo com a ordem legal de preferência. Se houvesse apelação, os autos teriam que ser remetidos ao tribunal, impedindo o regular processamento do feito. Por isso, impõe-se a remessa de cópias dos autos ao tribunal, por meio do recurso de agravo de instrumento.
Diante do exposto, não resta dúvida de que a decisão que decreta falência é uma sentença constitutiva.
7 CABIMENTO DA AÇÃO RESCISÓRIA NA SENTENÇA QUE DECRETA A FALÊNCIA
Não obstante à polêmica relacionada à natureza jurídica da decisão que decreta falência, a 3ª turma do STJ no julgamento do REsp n. 1.780.442 entendeu de forma épica ser cabível o ajuizamento de ação rescisória para desconstituir a decisão que decreta a falência.
Nessa concatenação, é de grande valia analisar as nuances dessa decisão visando aprimorar o estudo científico tangente à natureza jurídica da decisão que decreta a falência.
7.1 AÇÃO RESCISÓRIA
A ação rescisória encontra guarida conceitual no art. 966 do Código de Processo Civil, sendo esta, uma ação autônoma de impugnação de decisão de mérito ou não, transitada em julgado.
Para Marco Antonio Rodrigues, a ação rescisória “[...] é uma ação cuja finalidade primordial é ser constitutivo-negativa, pois busca desconstituir uma decisão por determinadas razões, sejam de invalidade, sejam de injustiça”.
7.2 CABIMENTO DA AÇÃO RESCISÓRIA
Para que haja o cabimento da ação rescisória, é necessária a observância de alguns critérios, sendo eles: a) decisão de mérito ou não, transitada em julgado – esgotamento dos recursos – nos termos do caput do art. 966 e § 2º do CPC; b) observância do prazo para ajuizamento da ação rescisória e c) observância dos casos que comportam ação rescisório, sob a égide do art. 966 do CPC.
7.3 CABIMENTO DA AÇÃO RESCISÓRIA NA SENTENÇA QUE DECRETA FALÊNCIA
7.3.1 Breve Resumo do Caso
No caso em análise, uma sociedade empresária de produtos laticínios teve a falência decretada após protesto de título realizado por uma associação de produtos rurais. Alegando irregularidade no protesto dos títulos, dois sócios ajuizaram ação rescisória em face da sentença que decretou a falência.
Ao receber a ação rescisória, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais decidiu extinguir a ação sem resolução do mérito, alegando falta de interesse de agir, pois, o tribunal entendeu que o recurso cabível seria o agravo de instrumento e não uma ação autônoma de impugnação.
Os sócios recorreram ao STJ por meio de Recurso Especial, visando derrubar o entendimento do juízo a quo, que extinguiu o processo, por entenderem que a decisão que decreta falência possui natureza de sentença de mérito, sendo adequada a propositura de ação rescisória.
7.3.2 Análise do Relatório da Ministra Nancy Andrighi no Recurso Especial 1.780.442
A Ministra Nancy Andrighi, relatora do REsp em questão, ao interpretar o art. 99 da lei de Falência, destacou que,“o ato decisório que decreta a falência possui natureza de sentença constitutiva, pois sua prolação faz operar a dissolução da sociedade empresária, conduzindo à inauguração de um regime jurídico específico, o falimentar”.
Nesse sentido, aduziu a Ministra que:
A previsão legal do cabimento de agravo de instrumento para a hipótese de decretação da falência se deve ao fato de tal ação ser dividida em fases, havendo a necessidade de se manter o processo no juízo de origem, após a quebra, para o processamento da segunda etapa, quando ocorrerá a arrecadação dos bens do falido e a apuração do ativo e do passivo, com a finalidade de satisfação dos créditos.
Por fim, a Ministra Nancy Andrighi não só reconheceu a natureza jurídica da decisão que decretou falência da sociedade empresária, sendo esta sentença constitutiva, como também inaugurou o cabimento da ação rescisória em face desta sentença, quando transitada em julgado.