1. Linhas introdutórias
Como definir-se o critério para decidir que atividades se sujeitam ao regime falimentar? Sob que premissas tal critério é pensado? Reflexões como essas não causariam tanta curiosidade no Direito brasileiro se não houvesse na lei vigente (lei 11.101/05): (1) nenhuma vantagem àquele que a ela se sujeita ou (2) polêmicas a respeito da possibilidade ou não de submissão de determinadas entidades a seu regime jurídico.
Sobre o primeiro aspecto, não há novidade em se dizer que as pessoas agem movidas por incentivos. Esses incentivos podem ser positivos ou negativos (há estímulo para que se faça ou se deixe de fazer algo) e volitivos ou acidentais (o legislador propôs um enunciado normativo pensando ou não em estimular seu efeito).
Sobre o segundo aspecto, por sua vez, há um componente de análise de risco. O empresário deve levar em conta as possibilidades de cada escolha e empreender esforços para diminuir tanto quanto possível as assimetrias informacionais (o que conduz a um processo decisório mais bem informado). O que é curioso nesse segundo aspecto é que a incerteza de exegese que será adotada pelo Poder Judiciário não raras vezes tem sido levada em consideração como variável da equação empresarial, como se se fizessem perguntas como (1) “compensa correr o risco de adotar o modelo X?” e (2) “caso adotado o modelo X e não aplicadas as consequências que se esperam de sua adoção, que vantagens e desvantagens se apresentarão?”.
A definição de que atividades se sujeitam ou não ao regime da lei 11.101/05 (aqui também referida como Lei de Recuperação de Empresas e Falências) está contida em seus artigos 1º e 2º. Como regra, sujeitam-se às suas disposições “o empresário e a sociedade empresária” (art. 1º), excluindo-se os entes mencionados no art. 2º. A interpretação jurisprudencial levou, no entanto, a novas reflexões sobre a legitimidade ativa.
2. Há paradigmas ou eles sempre estiveram em mudança?
O estabelecimento de um conjunto de regras (como o faz o Direito) tem por objetivo trazer certa previsibilidade sobre como lidar com fatos da vida. Crises são, por definição, eventos imprevisíveis. Discipliná-las é exatamente ter um plano de ação sobre o que fazer quando elas ocorrem. E, no que concerne à reflexão sobre quem pode requerer recuperação judicial, há regra. A questão que se põe é: essa regra confere previsibilidade ou há imprevisível dentro do previsível?
No ano de 2006, a Casa de Portugal ingressou com pedido de recuperação judicial, afirmando que a inadimplência dos convênios médicos agravou sua situação econômico-financeira e que tal fato justificaria o seu pedido. Conquanto o processamento tivesse sido deferido pelo juízo da 4ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro, e o seu plano sido homologado em 19 de dezembro do mesmo ano de 2006, o Ministério Público interpôs agravo contra a citada decisão homologatória, ao qual a 17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro deu provimento e, considerando a natureza associativa da entidade – isto é, não-empresária – entendeu-se inaplicável a ela o regime da Lei de Recuperação de Empresas e Falências. Foi, então, interposto o Recurso Especial 1.004.910/RJ, ao qual o Superior Tribunal de Justiça proveu em parte, para reconhecer que se tratava de hipótese em que o processamento da recuperação judicial devia ser deferido. O voto do Ministro Fernando Gonçalves adotou os seguintes elementos de convicção: (1) a função social da Casa de Portugal, por se tratar de “entidade que mantém um hospital, um asilo e um colégio, havendo notícia nos autos de que emprega por volta de seiscentas pessoas, disponibiliza à sociedade carioca mais de cem leitos, possui duzentos e setenta alunos matriculados, além de recolher impostos anualmente no montante de R$ 7 milhões (sete milhões de reais)”; (2) o plano de recuperação judicial está em andamento; (3) a finalidade maior da recuperação judicial é a preservação da atividade econômica e dos postos de trabalho, aplicando-se ao caso (diz o acórdão) a “teoria do fato consumado”.
Outro episódio de destaque é o pedido de recuperação judicial pela Associação Sociedade Brasileira de Instrução - ASBI e pelo Instituto Cândido Mendes – ICAM. O pedido foi deferido em 17 de maio de 2020, sob o entendimento de que pode até ser que a ASBI não possua “finalidade lucrativa, ou seja, pode não distribuir lucros aos seus associados, mas nada impede que tenha finalidade econômica, no sentido da extração de vantagens que sejam revertidas para a própria atividade ou serviço prestado, com vistas à realização dos fins institucionais da própria entidade1”.
Em 11 de março de 2021, o Figueirense Futebol Clube Ltda. e o Figueirense Futebol Clube ingressaram com pedido de tutela cautelar em caráter antecedente, arguindo que o art. 2º da lei 11.101/05 não excluiria as associações civis sem fins lucrativos (situação em que se enquadrava o Figueirense Futebol Clube) e que, por isso, seria possível utilizar-se da recuperação judicial.
O juízo da Vara Regional de Recuperações Judiciais, Falências e Concordatas da Comarca de Florianópolis entendeu, no entanto, que a lei 11.101/05 se aplicaria somente “ao empresário e a sociedade empresária”, o que implicaria exclusão das associações civis sem fins lucrativos. Essa perspectiva se reforçaria, segundo o julgador, em razão da exigência do art. 51, inciso V, da lei 11.101/05, que determina que a petição inicial de recuperação judicial será instruída com “certidão de regularidade do devedor no Registro Público de Empresas, o ato constitutivo atualizado e as atas de nomeação dos atuais administradores”. Com base nessas considerações, o magistrado entendeu que “a associação civil não se enquadra no conceito de sociedade empresária, razão pela qual não possui legitimidade para requerer recuperação judicial2”.
Essa decisão foi objeto de recurso, no qual o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, de modo diverso do prolator singular, entendeu que o fato de o Figueirense Futebol Clube não o tornaria ilegítimo para requerer a submissão à lei 11.101/05, porque: (1) as associações civis não foram expressamente excluídas pelo art. 2º da citada lei; (2) o art. 27, § 13 da lei 9.615/98, estipula que as entidades de prática desportiva participantes de competições profissionais e as entidades de administração de desporto ou ligas em que se organizarem, independentemente da forma jurídica sob a qual estejam constituídas, equiparam-se às das sociedades empresárias; e (3) o Enunciado 534 do Conselho da Justiça Federal na VI Jornada de Direito Civil afirma que “as associações podem desenvolver atividade econômica, desde que não haja finalidade lucrativa”.
Em 9 de abril de 2021, foi apresentado pedido de recuperação judicial por dezesseis instituições integrantes do Grupo Metodista. A petição inicial se fundava nas premissas de não-exclusão pelo art. 2º da lei 11.101/05 e nos precedentes (entre outros) do Superior Tribunal de Justiça relativo à Casa de Portugal, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro relativo à ASBI e ICAM e do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina relativo ao Figueirense Futebol Clube.
Em 3 de novembro de 2022, o Instituto Salutem Vita, associação civil sem fins lucrativos, ingressou com pleito de tutela cautelar em caráter antecedente ao pedido de recuperação judicial. O processamento foi deferido em decisão de 16 de dezembro de 2022, sob o fundamento de que “a despeito de não possuir registro mercantil, a associação requerente exerce atividade econômica organizada para a produção e circulação de bens ou serviços para o mercado, sendo responsável pela geração direta e indireta de empregos tributos3”.
Esses cinco precedentes mencionados demonstram que a interpretação que se tem feito dos arts. 1º e 2º da lei 11.101/05 não é sempre literal. Nos termos da lei vigente, exige-se (no art. 1º) caráter empresário da sociedade em crise e excluem-se aquelas mencionadas no art. 2º.
Em outras palavras, uma interpretação literal deveria conduzir ao resultado de que se não há sociedade empresária, não há que se falar em submissão ao regime da lei 11.101/05.
3. Os estudos para mudança da lei 11.101/05: o conceito de agente econômico e a relevância do caráter de sociedade empresária
No final de 2016 foi divulgada a Portaria 467 do Ministério da Fazenda, constituindo um Grupo de Trabalho para reformas à lei 11.101/05. O resultado dessas reformas foi a edição da lei 14.112/204, que incorporou significativas mudanças na disciplina das empresas em crise, mas não alterou os arts. 1º e 2º, dos quais se tratou no item anterior.
No entanto, a minuta enviada pelo Grupo de Trabalho ao Ministério da Fazenda trazia um conceito mais amplo, o de “agente econômico”. Propunha-se que se consideraria agente econômico qualquer pessoa, física ou jurídica, que exerça ou tenha por objeto o exercício de atividade econômica em nome próprio, independentemente de inscrição ou da natureza empresário de sua atividade.
A proposta foi vetada sob o argumento de que se atrairia para o regime de recuperação judicial e falência todo o tipo de agentes privados, “mesmo que não tenham natureza empresarial ou finalidade econômica, tais como sociedades cooperativas, profissionais intelectuais, associações e fundações5”e traria mais prejuízos que benefícios.
O cerne das razões não-escritas do veto está no fato de se retirar como parâmetro o caráter de sociedade empresária, mais restrito e vinculado à atividade. Essa substituição (não-ocorrida) de empresário por agente econômico, envolveria, sim, a inserção de outra fattispecie6 (diferentemente do que ocorreu com a substituição de comerciante por empresário, quando da elaboração do Código Civil de 20027).
O conteúdo do perfil subjetivo dos dois conceitos (sociedade empresária e agente econômico) é distinto (basta se ver, por exemplo, o teor do art. 966, parágrafo único, do Código Civil e do art. 15 da lei 8.906/94), e, por isso, produz efeitos distintos.
Veja-se que um dos princípios adotados8 no projeto que deu ensejo à lei 11.101/05, fora o de separação dos conceitos de empresa e empresário, propondo-se que “não se deve confundir a empresa com a pessoa natural ou jurídica que a controla” e que “é possível preservar uma empresa, ainda que haja a falência, desde que se logre aliená-la a outro empresário ou sociedade que continue sua atividade em bases eficientes9”.
Ao se propor a introjeção do conceito de agente econômico, como fizera a proposta do Grupo de Trabalho, a mudança do espaço amostral abrangido na disciplina das empresas em crise seria impactante (sem se fazer juízo axiológico positivo ou negativo).
4. Mas que vantagens há em se pedir recuperação judicial?
O título desse tópico traz um pressuposto lógico decorrente do tópico 2, supra. Ora, se há pessoas jurídicas que, a rigor, não são sociedades empresárias, e, ainda assim, buscam a via da recuperação judicial, o regime jurídico da lei 11.101/05 não deve ser algo absolutamente negativo. Esse apontamento é relevante porque não são poucas as críticas doutrinárias que se faz à incipiência do mercado de ativos estressados no Brasil e às dificuldades de se obter crédito quando se ingressa com um pedido de recuperação judicial10.
Veja-se que ao se ingressar com pedido de recuperação judicial, há obrigações que são reputadas inexigíveis do devedor (art. 5º da lei 11.101/05, em que se menciona, basicamente, obrigações a título gratuito e despesas dos credores para ingresso na recuperação judicial).
Da mesma forma, o deferimento do processamento da recuperação judicial implica (art. 6º da lei 11.101/05): (1) suspensão do curso da prescrição das obrigações do devedor quanto aos créditos concursais, (2) suspensão das execuções ajuizadas contra o devedor, inclusive daquelas dos credores particulares do sócio solidário, relativas a créditos ou obrigações concursais, e (3) proibição de qualquer forma de retenção, arresto, penhora, sequestro, busca e apreensão e constrição judicial ou extrajudicial sobre os bens do devedor, oriunda de demandas judiciais ou extrajudiciais cujos créditos ou obrigações concursais.
Além disso, há entendimento acentuado no sentido de que no processo de recuperação judicial incumbe ao Poder Judiciário o papel de controle de legalidade (ou, como se prefere, combate a ilegalidades) no procedimento e nas condições do plano a ser proposto, mas não de juízo axiológico sobre o critério econômico adotado em suas disposições.
Conclusões
Ainda que, no que concerne ao tema legitimidade ativa, a lei 11.101/05 seja bastante objetiva, os episódios em que se foi além do seu conteúdo, para se permitir o processamento de recuperações judiciais a sociedades que, a rigor, não se revestiam de caráter empresário, não são desconhecidos.
O efeito de se conferir elasticidade hermenêutica11 à lei 11.101/05 (ou a qualquer outro diploma normativo) é o de se criar uma questão de avaliação do risco de dedução de determinados pleitos no Poder Judiciário. Em outras palavras, aumenta-se a carga de trabalho do Poder Judiciário na expectativa de se obter ou não uma determinada conformação jurídica, que, a rigor, não decorreria da interpretação direta da lei.
Esse efeito não é intrinsecamente ou automaticamente bom ou ruim. Todavia, a cada vez que se confere exegese ampliativa ou até mesmo contra legem deve se ter em mente a perspectiva indutora no processo empresarial de tomada de decisão. Em tal processo é importante separar-se o que são eventos outlier (aqui entendidos como absolutamente idiossincráticos e fora de uma curva de normalidade) do que é uma nova tendência interpretativa do Poder Judiciário.
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1. Disponível em: . Acesso em 16/12/22.
2. Disponível em: . Acesso em 16/12/22.
3. Disponível em: . Acesso em 28/12/2022.
4. Disponível em: . Acesso em 28/12/22.
5. Disponível em: . Acesso em 29/12/22."
6. Condição fática que, uma vez verificada, faz incidir a norma.
7. Cf. SALOMÃO FILHO, Calixto. A “fattispecie” empresário no Código Civil de 2002. In: Revista de direito mercantil, industrial, econômico e financeiro. São Paulo, n. 144, p. 7-15, out/dez 2006.
8. Há outros princípios no Parecer nº 534, de 2004 – Sobre o Projeto de Lei da Câmara nº 71, de 2003, que merecem ser lembrados: (1) recuperação das sociedades e empresários recuperáveis, (2) retirada do mercado de sociedades ou empresários não recuperáveis, (3) proteção aos trabalhadores, (4) redução do custo do crédito no Brasil, (5) segurança jurídica, (6) participação ativas dos credores, e (7) maximização do valor dos ativos do falido.
9. TEBET, Ramez, Parecer nº 534, de 2004 – Sobre o Projeto de Lei da Câmara nº 71, de 2003 (nº 4.376/93, a Casa de origem), de iniciativa do Presidente da República, que regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência de devedores pessoas físicas e jurídicas que exerçam atividade econômica regida pelas leis comerciais, e dá outras providências, Brasília, Senado Federal, 2005. Disponível em: . Acesso em 29/12/2022.
10. Sobre o tema, cf. DIAS, Leonardo Adriano Ribeiro. Financiamento na recuperação judicial e na falência. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.
11. Observe-se que normalmente, legislação falimentar não é contemplada nos relatórios subnacionais de Doing Business. Disponível em: . Acesso em 03/01/2023.